Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

A Compreensão Franciscana do Homem

28/09/2010

Frei Vitório Mazzuco Filho, OFM

Queremos, neste artigo, refletir sobre o Homem: sua vida, história, projetos, ética, modelo, inspiração e sua postura neste milênio. O Homem no seu mistério, na sua busca, nos mais diversos horizontes de compreensão.

Vamos refletir partindo da compreensão franciscana do homem. Dizemos franciscana por nos espelharmos em Francisco de Assis, cuja vida é uma iluminação que nos pode dar o sentido maravilhoso da existência. Dizemos franciscana porque temos um modelo de grandeza.

Francisco é para nós uma imensa saudade de uma pátria distante do espírito, uma escolha essencial, uma reconquista dura e jovial de uma inocência perdida. Francisco é para nós a alegria de ser, uma loucura e escândalo, um pensamento ávido de realizações, uma palavra portadora de alegria, uma vontade criativa e criadora.

Não se pode compreender ou analisar a história de uma vida sem levar em conta o contexto, o “Sitz im leben”, as paixões, vícios e virtudes e as incontáveis experiências do tempo a que esta história se refere.

Não é nosso propósito reescrever ou recontar neste momento a história de Francisco, isto as tantas biografias, ensaios e análises já fizeram até com muita precisão, mas queremos destacar alguns pontos de sua vida, compreender um pouco mais de sua vida e do seu modo franciscano de viver. Como dizia o astrônomo francês Laland: “Aquele que compilou Regras para milhares de pessoas é certamente um personagem importante. A função de uma Ordem, assim Pobre e austera, realizada por um jovem de 25 anos é algo de extraordinário… e revela um gênio elevado, uma virtude singular, uma fervida devoção, uma eloqüência envolvente, um zelo infatigável, uma constância fora de comum”.

De onde vem esta força? Certamente de uma vida vivida de maneira apaixonada: um jovem nobre de ideais nobres, que soube fazer nascer, nos limites de sua encantadora Assis, um projeto de vida universal. Este jovem chamado Francisco soube estar aos pés de seu Senhor, escutar uma Inspiração, seguir e imitar, com isso arrastou atrás de si um grupo todo que jamais deixou de se renovar.

1. Francisco e seu substrato medieval
A humanidade só pode crescer na unidade das diferenças; por isso a sua história está repleta de diversidades que dão um colorido próprio a cada geração, com sua originalidade, com sua invenção, com seus riscos.

Compreender o passado é iluminar o presente e motivar o futuro. Nisto tudo existe uma descontinuidade, “a meditação do passado não é um vão esteticismo. Analisar as interrogações e as respostas, buscar a novidade do próprio tempo não é estéril nem inútil. Não se trata de imitar o passado, mas traduzi-lo; o que supõe um certo tipo de relação entre o agora, antes e depois”(1)

Uma pessoa deve ser sempre compreendida dentro de seu contexto histórico. Tantas vezes afirmamos que Francisco é expressão cristalina do mundo medieval. O que está por detrás desta afirmação? O impulso que as pesquisas de Paul Sabatier deram ao estudo do franciscanismo? A sua convicção de que “Francisco foi, por excelência, o Santo da Idade Média”(2) Como situar Francisco dentro desta época? Como compreender o medieval?

Ter a clareza do que significa o medieval é não deixar-se contaminar pelas ideologias que desejam usar o termo para reforçar suas posições, muitas vezes de um modo superficial, sem fundamentação histórica. Diz o próprio Sabatier que “o medieval constitui um período orgânico na vida da humanidade: como todos os organismos poderosos começou com uma longa e misteriosa gestação, teve a sua juventude, a sua virilidade, a sua decrepitude. O fim do século XII e o início do século XIII assinalam o seu definitivo desenvolvimento orgânico. São anos com a própria poesia, sonhos, entusiasmos, generosidade, audácia. O amor era abundante em sua força; por toda parte os homens tinham um só desejo: dedicar-se a alguma grande e santa causa” (3)

A Idade Média é um momento cultural, social, religioso, mítico, arcaico, motivo de escândalo e de interesse. Revelou possuir um centro, um cerne muito próprio, e, talvez, exatamente por causa disto nos legou uma vida cultural e espiritual de rara profundidade.

Os filósofos humanistas na metade do século XV cunharam o termo latino: “Médio Evo”, composto do adjetivo “medius” que significa: meio, isto é, aquilo que está no meio; e do substantivo “eavum”, que quer dizer: longo espaço de tempo, idade, época. Do ponto de vista literário indica, portanto, uma época de meio. Esta “Idade do Meio” indica o período entre a antiguidade e o seu tempo, uma não-antiguidade em meio a duas épocas, com uma característica exclusiva: uma particular visão de mundo ancorada no transcendente, capaz de impregnar em profundidade cada extrato social (4).

A historiografia também situa a “media aetas” entre o período que vai da morte do Imperador Constantino (306-337) até o saque de Constantinopla pelos turcos (1453); ou da época do feudalismo até a Revolução Francesa (1789). Hoje, aceita-se mais seguramente o espaço histórico da Queda do Império do Ocidente (476) até a descoberta da América (1492), isto se pensarmos numa delimitação cronológica. (5)

Porém, nós queremos entender aqui a Idade do Meio como uma idade nuclear, isto é, um período onde a humanidade viveu um MEIO, um ESSENCIAL, uma RAIZ, uma IDENTIDADE. E foi justamente Francisco quem melhor captou este núcleo da humanidade.

Para compreender a inspiração franciscana é preciso ter bem claro o significado desta época. Ao viver intensamente seu momento histórico, Francisco o transformou de simples história em história espiritual. Como diz Hermógenes Harada: “Todas as épocas e períodos da humanidade possuem suas superfícies e seus subterrâneos profundos. Francisco, não ficou na superfície, mas foi à raiz, ao centro energético de tudo, e aí captou todas as suas forças. Existe um período hoje: permanecermos na superficialidade e não sermos capazes de captar as energias que brotam do subterrâneo da nossa atualidade”.

Francisco, porque viveu bem o particular de sua época, torna-se universal, e “continua a provocar interesse e ocasiões celebrativas” (6) No concreto de sua história ele vive o Núcleo Absoluto, a essência do humano e do divino, por isso desperta uma atração, é amado e estudado, “se escrevem bibliotecas inteiras” (7), mas nele haverá sempre algo para se descobrir: “Francisco não necessita de biógrafos. Estes dispõem de sete séculos, e nenhum deles ainda soube penetrar plenamente o segredo da sua personalidade. Mas é verdade o contrário: Os biógrafos precisam de Francisco! Cada geração sente a necessidade de fornecer a “sua” versão do “seu” Francisco, de interrogar-se sobre o que ele tem a dizer-lhe” (8).

A precisão e a distância cronológica não são necessárias quando se faz o confronto com um homem assim, “em quem é imersa, de modo excepcional, a natureza humana nos seus impulsos constitutivos, na densidade ontológica, nas formas existenciais inéditas, mas que, no encontro com a realidade, é constrita a re-explicar-se em tempo propício” (9)

Francisco atravessa o tempo sempre sugerindo, sempre sendo um pólo de atração. Como diz E. Balducci: “Desejaria conduzir os leitores a reconhecerem em Francisco aquele excesso de humanidade que, quando aparece, vem acolhida com admiração, entre as pretensões do homem histórico, e que hoje tem diante de si condições aptas para fornecer-lhe carne e sangue. Sendo assim, o fenômeno Francisco sai do âmbito especializado da hagiografia e entra naquele da antropologia, sai do espaço sagrado e entra no espaço leigo” (10)

Na diversidade da sociedade medieval, entre nobres, mendicantes, guerreiros, camponeses, monges, jograis, ricos e pobres, existe um modelo de Homem? A resposta é afirmativa. Poucas épocas da história tiveram, como este período, “a convicção da existência universal e eterna de um modelo humano” (11).

A busca deste modelo está presente na interrogação de Frei Masseo: “Por que a ti, por que a ti, por que a ti?”( I Fioretti, 10).

Neste mundo que se torna sempre mais o da exclusão, marcada pela legislação dos Concílios, decretos, do direito Canônico e pela prática, exclusão dos judeus, dos leprosos, dos hereges, dos homossexuais, onde a Escolástica exalta a natureza abstrata e ignora o universo concreto, Francisco proclama, sem o menor ranço de panteísmo, a presença divina em todas as criaturas. Entre o mundo monástico banhado em lágrimas e a massa dos despreocupados mergulhados em ilusória euforia, ele propõe o rosto alegre e sereno daquele que sabe o que é realmente uma serenidade existencial. “É o contemporâneo dos sorrisos góticos” (12).

2. A Religião como modelo
Nesta sociedade, dominada pela religião, o modelo que aparecia do humano vinha sempre definido a partir da religião, e, “em primeiro lugar, pela mais alta expressão da ciência religiosa: a teologia”. (13) O Homem era conhecido a partir da sua capacidade de crer e participar de uma estrutura de inspiração eclesial. Eram poucos os que negavam a Deus, embora não se possa ignorar as reações anticlericais, as contestações doutrinais existentes. Sabatier afirma: “Os conservadores de nosso tempo, que se voltam para o século XIII como a idade de ouro da fé imposta, cometem um estranho engano. Se é o século dos santos por excelência, é também aquele dos heréticos”(14)

Religião era uma palavra forte e significativa. Francisco mesmo a tomou como um lugar existencial. Podemos encontrá-la em inúmeras citações das Fontes Franciscanas, por exemplo: “Esta é a santa Ordem dos Frades Menores, a maravilhosa Religião de homens apostólicos, digna de ser imitada”. (15)

Estar dentro de uma estrutura religiosa, para o medieval, era moldar um comportamento. Entra-se numa organização para trabalhar um modo de ser. É definir bem o lugar do encontro. É não perder a própria identidade e não ter dificuldades com certos esquemas tais como: superior, súdito, servo, obediência etc. Entrava-se ali para fazer uma experiência e testar uma coerência de vida. A organização era respeitada como vontade de Deus e esta falava nos princípios herárquicos. O medievalista Lê Goff diz que “sob o plano social e político, o homem medieval obedecia superiores, clérigos, reis, senhores, chefes municipais. Sob o aspecto intelectual, mental, religioso, obedecia tudo o que o cristianismo histórico lhe impunha: Bíblia, os Padres da Igreja, os Mestres…”(16) A autoridade tinha um valor abstrato e superior. A grande virtude exigida tinha bases religiosas e chamava-se: obediência.

Francisco integrou-se neste espaço cultural e estrutural de regras, votos e fidelidade e até privações, para submeter-se e cumprir o que havia prometido.

3. A luta entre o bem e o mal
O medieval não foi um personagem tranqüilo. Estava sempre em luta, numa luta que ia além das suas possibilidades; luta entre o Bem e o Mal, entre Deus e o Demônio. Por isso mesmo não se acomoda, está sempre em estado de batalha. É preciso limpar dentro de si e na vida aquilo que não é bom, é necessário chegar a uma retidão de vida. Não adianta lutar por uma ordem externa se o interior não tiver conquistado a própria harmonia. Com isto podemos entender por que nesta fase da história florescem os ascetas, monges e penitentes.

Ao eliminar os vícios se nasce para uma postura mais nobre, mais livre, mais digna e muito mais transparente. Esta realidade encontramos no testemunho dos textos franciscanos, num modo muito simples de mostrar como a comunidade primitiva franciscana, vencendo “este gênero de espíritos malignos”(RnB 3,1), ia firmando a sua vida num ideal muito grande. Superar tentações, pecados, demônios… pertence ao caminho da perfeição, é um processo de ir aparando arestas: “Todos os irmãos se ocupem ardorosamente em trabalhos honestos, pois está escrito: Entretém-te sempre nalgum bom trabalho, para que o demônio te encontre ocupado” (RnB 7,10) .

4. O “Homo Viator”
Outra característica do medieval é aquela de sentir-se um viandante, um peregrino, sempre a caminho, sempre em viagem neste mundo, na sua vida, no seu espaço, no seu tempo. É o “Homo viator” que procura o seu destino de vida e de morte e vai andando, segundo suas escolhas, rumo à eternidade. Le Goff nos lembra que na paisagem medieval “paradoxalmente até o monge caminha, ele que, ligado por vocação à clausura, vai frequentemente pelas estradas. No século XIII, os frades da Ordem dos Mendicantes, com Francisco à frente, estavam sempre “in via”, na estrada, como nos seus conventos” (17)

O medieval é um peregrino por excelência, por vocação, por essência, por risco. Os três lugares mais importantes de peregrinação eram: Jerusalém, Roma e Santiago de Compostela, sem contar os outros inúmeros santuários. Cada ser humano era um peregrino em potencial com toda a sua riqueza simbólica. A estrada torna-se lugar para medir a estabilidade, a moral, a salvação, o espírito errante, missionário, vagabundo. (18)

5. A Penitência: Um Caminho para eliminar os excessos
Para Francisco e seus primeiros companheiros a penitência é uma carta de identidade porque está integrada num projeto de vida: eliminar o próprio egoísmo para deixar transparecer o Senhor, como ele mesmo diz no Testamento de 1226: “Foi assim que o Senhor concedeu a mim, Frei Francisco, iniciar uma vida de penitência”.

Desta frase do Testamento podemos ver que penitência significa aquela reviravolta que leva o homem “de uma vida instintiva centrada sobre o seu próprio eu, para uma vida inteiramente sujeita e abandonada à vontade e senhoria de Deus”(19)

Para o frade primitivo ser penitente é sair do mundo secular e entrar mais no espaço do divino, individualmente ou dentro de um grupo:

“Diziam: ‘De onde sois?” Ou então: ‘A que Ordem pertenceis?’ E eles respondiam com simplicidade: “Somos penitentes e viemos da cidade de Assis’”(3Comp 37)

Com um modo original os frades primitivos se integravam na concepção penitente da época: engajar todo o seu próprio ser, canalizar o sentimento, exercitar a vontade.

O fazer penitência está no cerne do ideal de Francisco, no seu pensamento, na sua ação. Através da penitência molda a sua existência para entregá-la totalmente ao Senhor. (20)

6. O “Santo Propósito”
O espírito de aventura, um sonho movente, um impulso, um ainda não-ser mas querer-ser, querer dar o melhor de si, ia criando um vigor próprio:

“O que pensais de mim? Ainda serei venerado pelo mundo inteiro!”(3Comp 2,4)
“Sei que hei de me tornar um grande príncipe” (Idem, 2,5).

“Dissestes a verdade, eu estava pensando em escolher uma esposa, a mais nobre, a mais rica e a mais bela que jamais vistes” (Idem, 2,7)

Assim viveu Francisco, como os heróis dos romances cavaleirescos, imaginando, avançando a olhar apenas em frente, imerso em pensamentos profundos, confiando nos sonhos, abandonando-se à Providência, “andando sem ter pra onde, mas sabendo um porquê”(21)

Quem parte para a conquista quer encontrar e provar alguma coisa: a si mesmo, seu valor, seu destino. Por isso consegue dialogar com o mais profundo, entrar numa espécie de transe, tentar decifrar o núcleo, o enigma escondido. Esta busca se transforma numa conquista superior. É a procura do Santo Graal. O Santo Propósito. A verdade transformadora de Francisco é o modo como ele acreditava apaixonadamente no seu projeto.

7. A “Floresta dos símbolos”
O medieval está sempre empenhado em decifrar. Gosta do simbólico e nele vive imerso. O símbolo está presente na arquitetura eclesial, nas cerimônias, nas formalidades políticas, nas bandeiras e estandartes, nos emblemas, nas armas, nas legendas, em todas as alegorias.

Este aspecto é sempre direcionado para o espiritual, nada pode destruí-lo porque se orienta para a luz. Faz parte deste núcleo humano e lhe abre tantas portas de compreensão. Esta é a diferença entre o medieval e o moderno. Nós, hoje, pela displicência quanto ao valor simbólico das coisas, esvaziamos e mecanizamos o sentido de tudo. Naquele tempo o símbolo conferia, mesmo às palavras, um fervor todo especial, contemplativo, desvelado (22).

Com esta visão do Homem vai vivendo a sua tensão, sobretudo as duas tensões fundamentais: fé e a realidade do mundo, a imanência e a transcendência. Francisco viveu isto em sua carne e espírito e inculcou esta tensão em seus frades, e de um modo quase exclusivo e transcendente. Esta era a sua “Weltanschauung”, a alegoria da realidade mundana, transitória e caduca, suspensa entre o nada e a nova realidade escatológica. Esta é a expressão simples e genuína da esperança franciscana (23).

8. A nobreza de costumes
Na vivência medieval e, de um modo específico, no ideal cavaleiresco, destaca-se a nobreza. O que é ser nobre? Por que dizemos que ser nobre foi uma tônica e uma procura durante a juventude de Francisco?

A Legenda dos Três Companheiros mostra de um modo preciso a naturalidade nobre de Francisco: “As virtudes naturais foram os degraus de que a graça divina se serviu para o elevar a ideais mais nobres” (3Comp 3,3).

A alegre, mas não decadente juventude de Francisco, foi o prelúdio natural de um ideal maior, de propósito sobrenatural que vai emergindo com muita espontaneidade e dedicação. Uma liderança carismática, uma jovial fraternidade, um modo de amar apaixonado, uma nobreza de sentimentos, são marcas deste período de sua vida (24).

Falamos de nobreza de costumes. O que isto significa? É um termo que quer mostrar algo mais do que uma simples herança, um título, uma tradição familiar do assim chamado padrão de sangue azul.

Quando se fala de nobre, neste contexto, quer se revelar uma identidade não jurídica, mas existencial, um modo de ser daquele que tem postura nobre, daquele que é naturalmente nobre.

Não é um humano qualquer, um humano que se encontra com o banal. É algo muito mais forte, mais vigoroso. É aquele que possui um projeto de vida e o persegue com todas as suas forças. Quem tem um projeto de vida muito concreto sempre tem algo para transmitir, possui um atração muito especial, revela este humano nobre. Afirma Delort: “O nobre se distingue dos outros por um gênero de vida, por uma mentalidade toda particular, por saber morar, saber vestir, saber exprimir um sentimento, por acreditar em laços edificantes, por inspirar-se em heróis e ter um modelo de vida, por saber ocupar-se, pelo espírito de combate” (25).

Ser nobre é dar um sentido a tudo o que se faz. É não gastar e desgastar a vida por pouca coisa, é ter uma medida de grandeza. “A grandeza de uma época depende da quantidade de pessoas capazes de sacrifícios qualquer que seja o objeto destes sacrifícios… Dedicação é sua palavra de ordem! Dedicação é não apenas garantia de um soldo seguro. Com que coisa começa a grandeza? Com a empenhada entrega a uma causa… a grandeza é uma ligação entre um determinado espírito e uma determinada vontade” (26)

Ser nobre é ter uma ambição sadia. Não é uma vontade egoísta, porém é uma vontade que visa uma plenitude. Se quer ser, tem que ser o melhor! O entusiasmo aparece como uma força, como um sonho, um impulso. É um fenômeno sonhar, querer, buscar! Isto caracteriza a nobreza de Francisco: este impulso interno para algo que vale a pena viver, algo em que vale a pena investir. É tão convicto de seu sonho, de seu ideal, que não se sente ofendido quando um companheiro de prisão o considera louco. Mesmo nesta situação não perde a sua postura de nobre. Ser nobre é ser transparente, sereno, não agressivo, ser cada vez mais nítido e seguro naquilo que se quer.

9. O ser discípulo
O discípulo é aquele que está no movimento de refazer o Mestre, é aquele que, diante do Mestre, está sempre disposto ao aprendizado. Copia não para multiplicar, mas para descobrir a originalidade única do Mestre:

“Irmão, prometi fazer tudo o que fizeres, por conseguinte, convém que me conforme em tudo contigo” (Sp 57).

Todo o caminho de Francisco foi um engajamento em causas nobres. Reúne mais do que qualquer outra figura na história espiritual, porque soube expressar interioridade e humildade, uma indômita energia de querer seguir, uma heróica potência de ação, necessária para completar o humano e um desígnio que vai além do humano (27).

O engajamento numa grande causa é que chamamos de discipulado. No coração da experiência do Grande Outro fazer a própria experiência. É o colocar-se aos pés de um mestre e predispor-se a acolher aquilo que é digno de alimentar uma vida.

Ilustremos isto com um texto de Facchinetti: “Os amigos ideais entre os companheiros de apostolado de Francisco, encontramos naqueles frades devotos que o seguiam, discípulos fiéis e admiradores do Mestre. Recolhiam-se com ele na solidão dos ermos e das florestas, compreendiam-se perfeitamente em espírito, imitivam generosamente seus exemplos, viviam a sua mesma vida de extrema pobreza, com ardor seráfico, com simplicidade profunda, em oração contínua e austera penitência, numa fraternidade recíproca, em perfeita alegria, o seu esforço incessante era imitar e chegar à perfeição segundo os vestígios do Pai Seráfico, e procurando reproduzir, neles mesmos, o mais fielmente possível, as virtudes do seu Grande Guia Espiritual” (28)

Não era apenas um seguir como estar fisicamente junto, mas era repetir em sua vida o modelo e a experiência de seu mestre e senhor. Imitar é método, é aceitar o convite de fazer e refazer junto e exercitar-se naquilo que o Mestre exige…

10. Francisco e as criaturas
Todos conhecemos o Cântico do Sol de Francisco de Assis, um marco e símbolo da sua relação mística com o cosmos e a reabilitação da matéria. Neste Cântico celebra a fraternidade cósmica da criação, e novamente, com sua aguçada sensibilidade, nos lega mais uma jóia da poesia religiosa popular. Um momento poético de rara inspiração! É um canto que brota da felicidade, da felicidade de amar, de ver, de sofrer, da capacidade de perdoar. Neste Cântico, Francisco mostra-se de um modo muito autêntico, é muito disponível em desvelar o seu ser.

É a expressão direta e imediata de louvor ao Senhor através da mediação da realidade criatural. Nele aparece Francisco que se inebria de seu Senhor, deixa-se iluminar por ele, deixa-se cuidar. Canto de maravilha e encantamento!

É o hino de quem caminha, de quem é peregrino que passa e vê, extasia-se mas não toma posse. É o cavaleiro bêbado de símbolos e de mitos! É o trovador que sente a limitação de suas palavras, e, na impossibilidade de dizer, convoca todo o cosmos…

É o canto do servo que se reconhece quase um nada diante da Grandeza de seu Senhor, por isso torna-se submisso, humilde, consangüíneo de todo o ser criado…

11. A cortesia como virtude: nobreza de atitudes
Falemos da cortesia… Quem viveu a realidade e a fantasia das legendas cavaleirescas conhece o reino da cortesia. É muito difícil dar uma definição exata da cortesia, pois é todo um vasto mundo de significados.

Diz o poeta: “uso di corte, quando ne lê corti anticamente lê virtudi e li belli costumi su’usavano” (Dante, Convívio, II, X, 8). Este é o ponto de partida para a compreensão: os costumes e usos da corte para se trabalhar a virtude. Isto compreende uma série de valores: lealdade, generosidade, prodigalidade, fineza no trato, atenção devota à pessoa do outro, gênio do gosto, comunidade dos que amam o belo.

Os trovadores iam de castelo em castelo cantando o amor-cortês. Os cavaleiros andavam na sua busca influenciados por este modo de viver. Francisco certamente ouviu demais falar desta virtude bastante presente nas gestas dos paladinos, nos romances do ciclo do Rei Artur, nos contos narrados por sua mãe. A cortesia entra na sua mística: “Mansidão, gentileza, paciência, afabilidade mais que humana, liberalidade que ultrapassa seus recursos, eram sinais de sua natureza privilegiada que anunciavam já uma efusão mais abundante ainda da graça divina neles”( LM, 11)

Este texto é uma espécie de “semântica da cortesia”, que vai preparando um quadro de objetiva disponibilidade para a santificação. Francisco era cortês por natureza; isto fazia com que estivesse sempre preocupado pelos direitos dos outros, repartindo tranqüilidade e alegria.

Suas atitudes causavam grande impacto num tempo cheio de ódio, lutas e cobiça. Mesmo ali mandava a lei do mais poderoso e competitivo. Neste contexto ele apresenta uma proposta nova de relacionamento mais prático. A cortesia dos nobres estava presente nas canções e idéias, a de Francisco era imediata e desinteressada.

Francisco tinha sonhado repetir as empresas de Carlos Magno e Artur; depois da conversão não renega aqueles que foram os seus ideais de juventude e, com muita sensibilidade, soube colher os aspectos mais nobres da cavalaria para fixar-lhes uma nova ordem, em que o perdão substitui a vingança, o amor substitui o ódio, o espírito de dedicação o orgulho, a sede de paz e de justiça os saques e acúmulos, a humildade substitui a opressão do comando (29).

Em Francisco, a cortesia não é uma etiqueta, uma norma de civilidade social, mas é a expressão insubordinável e inevitável de seu sentimento interior: é o modo como o outro deve ser amado de um modo verdadeiro. É um relacionamento de respeito, retidão e sinceridade.

Conclusão
No modelo de Francisco podemos ver a compreensão franciscana do Homem; não sem certa dificuldade, porque o homem moderno, frio, calculista, cético… tem dificuldades em medir-se com o ardor e paixão, emoção, pobreza, doçura e rudez de um modelo assim. Mas existe o confronto, pois como diz Agostinho Gemelli: “O homem de nosso tempo procura e encontra em Francisco algo de que tem sede”.

Para os que amam o seu lado natural e ecológico, ele é um homem primitivo. Para os que amam a reflexão, ele representa o fervor das palavras contra a aridez dos discursos. Para os de sensibilidade estética, ele é um jeito novo, um pão caseiro. Para a História e a Mística, ele é uma fonte inesgotável, um provocador espiritual e um sempre novo modo de conceber a vida.

Termino citando um teólogo franciscano que nos recorda que: “Diante de Francisco descobrimo-nos imperfeitos e velhos. Ele aparece como o novo e o futuro por todos buscado, embora tenha vivido há 800 anos. Mas este sentimento é sem amargura, pois sua mensagem encerra tanta doçura que o medíocre se sente convidado a ser bom, o bom a ser perfeito, e o perfeito a ser santo. Ninguém fica imune à sua convocação vigorosa e ao mesmo tempo terna”(30).

Bibliografia
(1) H.J. Stiker, Um créateur em son temps: François d’Assise, CHR 80 (1973) 416-430
(2) P. Sabatier, Vita di San Francesco d’Assisi, Milão, Mondadori, 1978, 34
(3) Ibidem
(4) H. Fuhrmann, Guida al Medioevo, Bari, Laterza, 1989, 2-3
(5) C. Ciranna, Riassunto di Storia Medievale, Roma, Ed. Ciranna, 1984, 3.
(6) F. Cardini, Francesco D’Assisi, Milão, Mondadori, 1989, 24.
(7) Ibidem
(8) Ibidem
(9) E. Balducci, Francesco d’Assisi, Florença, Ed. Cultura della Pace, 1989, 5.
(10) Ibidem
(11) J. Le Goff, L’Uomo Medievale, Roma-Bari, Laterza, 1983, 3
(12) Id. Francisco de Assis entre as Inovações e a Morosidade do Mundo Feudal, Concilium 169 (1981) 14.
(13) J. Lê Goff, L`Uomo Medievale, 3-4
(14) P. Sabatier, Vita, 32.
(15) G. da Vitry, L’Ordine e la Predicazione dei Frati Minori, FF, 2229.
(16) J. Le Goff, L’Uomo Medievale, 37.
(17) Ibidem, 8
(18) G. B. Ladner, Homo Viator: Medieval Ideas on Alienation and Order, Speculum 63 (1967) 235.
(19) K. Esser, Origini e Inizi del Movimento e dell’Ordine Francescano, Milão, Jaca Book, 1975, 197
(20) R. Pazzelli, San Francesco e il Terz’Ordine. Il Movimento Penitenziale Pré-francescano e francescano, Pádua, Ed. Messagero, 1982.
(21) F. Cardini, Francesco, 52
(22) Sobre os símbolos medievais, cf. M. M. Davy, Introduzione al Medioevo, Milão, Jaca Book, 1981; G. de Champeaux-S. Sterckx, I Simboli del Medio Evo, Milão, Jaca Book, 1981
(23) S. Nicolosi, Medioevo Francescano, Roma, Borla, 1983, 229-230.
(24) F. D’Anversa, L’allegra giovenezza di San Francesco, IF, 4 (1926) 273.
(25) R. Delort, La Vita quotidiana nel medioevo, Roma-Bari, Laterza, 1989, 144.
(26) Esta é uma “afirmação de Jacob Burckhardt, defendendo a grandeza do Mundo Medieval como a nossa “real existência”. Texto citado por H. Fuhrmann, Guida ao Medioevo, 24.
(27) A. Chiappelli, L’Anima eroica di Frati Francesco e l’Italia, RI (1927) 46. 
(28) V. Facchinetti, San Francesco d’Assisi e l ‘amicizia cristiano, Quaracchi, 1923, 117.
(29) P. Anasagasti, La cortesia, prioridad del Pobrecillo, CF, 22 (1988) 36-42
(30) L. Boff, São Francisco de Assis: Ternura e Vigor, Petrópolis, Vozes, 1981, 181.

Este artigo foi publicado na “Revista Grande Sinal”, publicação da Editora Vozes da Província da Imaculada Conceição do Brasil, em 1991.

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