Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Francisco, o Santo-Alegria

20/09/2002

Frei Hipólito Martendal

1. Introdução – Tenho a impressão de que em nossos dias fala-se mais em felicidade do que em alegria. Sinto certa apreensão, pois isso representa certa banalização mais abrangente. Você entra numa lojinha qualquer para comprar um par de meias, ou umas cuecas e já sorridente vendedora o trata por “meu amor”. Ser amado e feliz passou a ser uma obrigação universal. Pobres dos melancólicos, dos abatidos, dos deprimidos! Felicidade parece-me algo tão beatífico! Lembra conquista definitiva, realização, plenitude.

2. São Francisco e a alegria – Francisco declara bem-aventurados os frades que vivem situações àquelas às quais o Evangelho qualifica de bem-aventuranças. Em geral são declarações dele a respeito de quem procede evangelicamente, como nas suas Admoestações diz: “bem-aventurado aquele que nada retém para si”. Neste sentido encontrei – só nos escritos atribuídos a Francisco – 12 vezes a expressão bem-aventurado (s) e uma vez “felizes” como sinônimo de bem-aventurados. Na verdade são promessas de felicidade se os frades conseguirem realizar determinadas propostas evangélicas. Quando Francisco lida com o dia-a-dia de seus irmãos e refere-se às qualidades e virtudes para a boa vivência da fraternidade, para o sucesso na luta contra Satanás e a eficiência da evangelização, ele fala 19 vezes em alegria.

3. Alegria como virtude – Não é muito fácil transformar a alegria em virtude, pois alegria parece constituir-se apenas de uma emoção primária agradável, fruto da posse de coisas desejadas. O problema está naquilo que se deseja. A alegria do Tio Patinhas por encontrar mais uma mina de ouro não é virtuosa, pois é fruto de sua desmedida cobiça e poderá incentivar outros a se entregarem ao materialismo.

Francisco, por sua vez, acabara de romper com o pai ganancioso e com a riqueza de que podia usufruir na família. Procurava em seu íntimo uma forma de viver mais de perto o ideal do Evangelho e do modo de ser do próprio Cristo. Numa missa ouve aquela passagem na qual Jesus envia seus discípulos a pregar. Depois pede ao sacerdote que lhe explique a leitura. Diante do quadro dos enviados “sem bastão”, sem dinheiro, sem reserva de pão, sem calçados”, ocupados unicamente em pregar o Reino de Deus e a penitência, Francisco tem uma iluminação. Segundo Tomás de Celano, ele exclama: “É isso que eu quero, isso que procuro, é isso que DESEJO DE TODO CORAÇÃO”.

Ora, quem consegue conquistar “aquilo que deseja” de todo o coração, só pode experimentar uma alegria correspondente. É o que Jesus afirma ao comparar o Reino a um tesouro. Quem o encontrar abre mão de TUDO o que possui e, “cheio de alegria compra aquele campo” (Mt 13,44). Para chegar ao TESOURO, Francisco teve que perder tudo. Enquanto ia perdendo, já sentia o coração enchendo-se de alegria. A conclusão disso foi claríssima para ele: a alegria é o certificado de qualidade da evangelização. Só é bom discípulo e bom anunciador do Reino quem não conseguir esconder aos demais – por causa da alegria irreprimível – que ele encontrou algo realmente extraordinário.

4. Desdobramentos da alegria – São Francisco está a uns cinco meses de sua morte. Seu corpo reduziu-se a uma ruína humana. Não consegue mais escrever. O sofrimento físico é atroz e torturante. Dita assim mesmo um testamento com suas últimas recomendações. Depois pede que Frei Leão escreva o que ele tem a dizer sobre aquilo que considera ser a ALEGRIA PERFEITA. Francisco imagina duas situações. Na primeira chegam mensageiros anunciando sucessos inimagináveis de sua Ordem nos mais diversos recantos da Terra. “Digo-te – afirma ele – que em tudo isso não está a verdadeira alegria”. Na segunda Francisco imagina-se numa emergência hipotética. Ele próprio, o fundador da Ordem, volta para o conventinho da Porciúncula, “sua” casa-mãe, todo machucado, esgotado pela fadiga e quase morto pela mais violenta nevasca. Bate muitas vezes na porta. Por três vezes, o porteiro abre, xinga Francisco de todas as formas. Conclui o santo: “Pois bem, se eu tive tido paciência e permanecer imperturbável, digo-te que aí está a verdadeira alegria, a verdadeira virtude e salvação da alma”.

Por muito tempo, por mais que isso impressionasse, eu imaginava que era o tranvasar da expressividade dramática da alma latina, italiana, de Francisco. Mas, eis que em um de seus biógrafos encontrei a explicação. Francisco não se ligava no conteúdo da ofensa de quem o agredia. Concentrava-se na desordem do coração e pecado do ofensor. Em vez de ficar ofendido, enchia-se de cuidados e compaixão pelo irmão agressivo.

5. Pretensão – Deus e Jesus Cristo tornam-se cada vez mais a única e avassaladora paixão de São Francisco. No altar desta paixão, ele sacrifica tudo, inclusive todos os outros possíveis projetos e desejos. É isso que ele entende por POBREZA. Sobra só um desejo irresistível: imitar em tudo seu Cristo-Paixão, sem sofrer menos que Ele “pela salvação de todos”. Assim, Francisco desenvolveu uma blindagem protetora contra todas as adversidades, todas as injustiças, toda forma de sofrimento. Todo sofrimento é sempre invadido pela luz e significado que brotam de seu CRISTO-MODELO. Ocorre uma verdadeira transubstanciação da dor e do sofrimento. Adquirem uma nova natureza. Aí fica difícil saber onde termina Francisco e onde começa Cristo. Nesta comunhão, os contornos e as figuras de ambos se embaralham nossos olhos. Então toda sorte de sofrimentos simplesmente o fazem sentir-se mais perto, mais identificado com seu divino mestre e modelo, sua única paixão. Isso realimenta e purifica sua indefectível alegria.

Por isso seus contemporâneos afirmavam que Francisco era outro Cristo.

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