Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Fornalha de Fogo, Inferno e Infernos: Um imaginário perigoso!

30/07/2024

“Eles serão lançados na fornalha de fogo” (mt 13,36-43)

O texto sobre o qual vamos refletir é Mt 13, 36-43, cuja temática é a do joio e do julgamento divino. A passagem termina falando de uma fornalha de fogo. O que é isso? Por que a sua identificação com o inferno? Você sabia que existe diferença entre inferno e infernos? A partir de Mt 13,36-43, permita-me refletir sobre o imaginário do inferno no judaísmo e no cristianismo. Para tanto, demonstrarei a evolução dos três termos que a Bíblia utiliza para definir Infernos e Inferno. São elas: Sheol, Hades e Geena.

Sheol: Infernos, o lugar escuro e subterrâneo onde moram os mortos

Sheol é um termo hebraico com sentido incerto. Esse termo pode derivar do termo hebraico Xaal: pedir; do acádico Xilan: região onde o sol desaparece e, consequentemente, a entrada dos Infernos; também do acádico Xuaru: cidade da Babilônia, onde se venerava o deus Tamuz, cidade que levou o nome de Infernos. Na Bíblia, Sheol aparece 65 vezes, e é traduzido por Infernos. Isaías, profetizando maldições, fala do Sheol como lugar de goelas abertas, para onde descem a nobreza, a plebe e o seu tumulto, e lá eles exultam (Is 5,14). Ideia seguida por Pr 1,12: maus companheiros serão tragados vivos pelo Sheol, e Hab 2,5 que fala das goelas abertas do Sheol. Além das goelas abertas, os Infernos estão localizados num lugar situado nas profundezas da terra, como atesta Dt 32,22 ao afirmar que o fogo da ira de Deus está ardendo e queimará até o mais fundo do Sheol. Também o Sl 30,10; Ez 28,8; Jó 26,5; 38,16, etc. falam do Inferno como um buraco localizado no mais profundo da terra, um lugar sem luzes. Para lá descem todos e não podem mais subir. “Como a nuvem se dissipa e desaparece, assim quem desce ao Sheol não subirá jamais”, afirma Jó 7,9. É também do livro de Jó a afirmativa de que o Sheol é lugar de encontro de todos os mortais (Jó 30,23). Os Infernos tinham lugar para justos e maus. Lázaro, como fala Jesus em Lc 16,23-26, estava no seio de Abraão, o lugar dos bons, já rico estava sendo torturado em outra parte do Sheol. Sepultura é também outro entendimento bíblico para Sheol (Sl 30,10; Ez 28,8). 

Hades: a tradução grega para Infernos

Hades, tradução grega da LXX do termo hebraico Sheol, significa também o último e definitivo lugar de descanso para todos os mortos, os Infernos. Na mitologia grega, Hades é o deus dos Infernos, onde estavam os mortos. No Novo Testamento, Hades tem o mesmo significado de Sheol como Infernos, lugar subterrâneo para o qual devem descer bons e maus (Mt 11,23; 12,40; Lc 10,15; Ef 4,9). Por exemplo, Mt 11, 23, falando da cidade de Cafarnaum, afirma: “E tu, Cafarnaum, por acaso te elevarás até o Céu? Antes, até o Inferno descerás” (Mt 11,23). No Hades estão os bons e os maus, conforme At 2,27.31; Rm 10,7; I Cor 15,5; Ef 4,9; Ap 6,8; 20,13 e Lc 16,19.31. Ao falar do julgamento das nações, Ap 20,13 diz que o Hades e a Morte entregaram os mortos que neles estavam, e cada um foi julgado conforme a sua conduta. 

Geena: de lugar geográfico a escatológico transcendental e Inferno

Geena é a forma grega para o nome aramaico do vale do Hinom ou vale do Filho de Enom (Ben-Enom) que aparece em vários textos do Antigo Testamento e do Novo Testamento. A LXX traduziu o termo por Geena. Esse substantivo passou por várias evoluções semânticas. Jeremias, antes do Exílio da Babilônia 587-536 a.C., defendendo a punição de Deus para Jerusalém, menciona o vale do Ben-Enom como lugar da ira e punição de Deus, lugar de matança (Jr 7,30–8,3; 19,7). Já no pós-exílio, Isaías 66,22-24, mesmo não citando o vale do Ben-Enon, esse lugar passa a ser lugar escatológico da punição dos apóstatas: “Eles sairão para ver os cadáveres dos homens que se rebelaram contra mim, porque o seu verme não morrerá e o seu fogo não se apagará”. Essa visão de Geena como lugar escatológico de punição, com o tempo deixou de ser um lugar geográfico perto de Jerusalém e passou a ser confundido com Sheol. À Geena foram atribuídas a escuridão do Sheol, bem como a imagem de fogo que queima e suplicio. Assim, Geena ganhou um sentido transcendental. No Novo Testamento, Geena é o Gê-Hinnom, o lugar de fogo. “Melhor é entrar com um olho só na Vida do que, tendo dois olhos, e seres atirado na Geena de fogo”, atesta Mt 18,9. É também de Mt a visão de Geena é o lugar de julgamento (Mt 23,15.33). Mc 9,43.45 fala da Geena como fogo inextinguível, bem como onde o verme não morre. Outros termos sinônimos de Geena são também utilizados no NT, como fornalha (Mt 13,42); lago de fogo que arde como enxofre (Ap 19,20; 20,10.14). Ap 21,8 profere uma sentença: “Quanto aos covardes, porém, e aos infiéis, aos corruptos, aos assassinos, aos impudicos, aos mágicos, aos idólatras e a todos os mentirosos, a sua porção se encontra no lago ardente de fogo e enxofre, que é a segunda morte”.

Geena, de lugar geográfico a escatológico transcendental, passou a ser um lugar de suplício para os condenados. Dessa ideia surgiu a visão de Inferno na Idade Média, que chegou até os nossos dias.

Inferno ou Infernos?

Infernus é substantivo latino e significa ‘o que está debaixo’. Ínferos é o plural de ínfero e, portanto, corresponde aos ‘infernos’. Na verdade, Infernos e Inferno são duas expressões correlatas para dois atos diferentes. Segundo tradição de fé Jesus desceu aos Infernos e o condenado desce ao Inferno. Quando Jesus desce aos Infernos (ínferos), suas portas se abrem para Ele, mas quando o condenado desce, as portas do Inferno se fecham atrás dele para sempre. A passagem da compreensão de Infernos para Inferno como lugar de suplício deve-se, como vimos acima, ao uso da terminologia Geena. Assim, o judaísmo conhece essa imagem de Inferno. Jesus era conhecedor dessa tradição e fez uso dela nos seus ensinamentos:

 “Temei antes aquele que pode destruir a alma e o corpo na Geena” (Mt 10,28); “No fim do mundo: o Filho do Homem enviará seus anjos eles apanharão do seu Reino todos os escândalos e os que praticam a iniquidade e os lançarão na fornalha ardente. Ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt 13,41-42); “Longe de mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o Diabo e para os seus anjos” (Mt 25,41).

Poderíamos tomar outros exemplos de textos bíblicos que mostram esse modo de conceber o Inferno. A descida de Cristo aos Infernos tornou-se expressão de fé para dizer que Ele foi até a parte inferior da terra e dela também se tornou Senhor (1Pd 3,19-22; Ef 4,9). Jesus venceu a morte, os Infernos (Sheol e Hades) deixam de existir, ‘mas aqueles que não conhecem a Deus e não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus serão vingados com uma ruína eterna, longe da face de Deus’, é o que afirma a segunda carta aos Tessalonicenses, 1,8-9. O Inferno, com isso, está posto. Os Infernos, com traços de Geena, torna-se Inferno, onde impera Satanás. Essa visão perdurou no cristianismo até os mil anos, quando se acreditava que Satanás estaria aprisionado. “Quando se completarem os mil anos, Satanás será solto de sua prisão e sairá para seduzir as nações dos quatro cantos da terra” (Ap 20,7-8).

As imagens usadas na Bíblia para descrever o Inferno são todas simbólicas. O fogo que devora simboliza a absoluta frustração humana e o seu total distanciamento de Deus. Diante de tal situação, só resta ao ser humano chorar e ranger os seus dentes, na escuridão de uma vida sem utopias, no exílio de opção feita por ele mesmo. 

Na Baixa Idade Média, visto que a Parusia não havia acontecido, a caracterização do Inferno tornou-se forte na Igreja e na sociedade. O sofrimento no Inferno é descrito nas artes. A mais famosa delas é o Inferno de Dante Alighieri (1265-1321), presente na épica obra da literatura italiana, Divina Comédia.

Dante descreve o Inferno em nove estágios. Em cada um deles padecem pecadores em um sofrimento eterno, com exceção dos que estão no primeiro estágio, o Limbo, pois esses são os que não foram batizados. Os do segundo estágio são luxuriosos, e na sequência: gulosos, avarentos, irados, hereges, violentos, maliciosos e fraudadores, e os traidores. As penas para cada um dos grupos são: arrebatadas contínuas de ventos e furacões; chuva de granizo e neve; cães que devoram suas carnes; ter que empurrar continuamente pedras pesadas e grandes; estar mergulhados e se autoflagelando nas barrentas e sanguinárias águas do rio Estige; estar sepultados em túmulos que estão constantemente pegando fogo; estar mergulhados nas águas ferventes do rio Flegetonte; ser transformados em árvores, perseguidos por cães, cobertos de areia escaldante e fogo caindo do Céu como se fosse chuva, castigados por açoites; estar atolados em buracos com os pés para fora sendo queimados; ter os rostos virados para trás; ser castigados por demônios que os espetam e os mergulham em um poço de piche fervente; ser castigados com pesadas capas de chumbo dourado; estar em um eterno ciclo onde são picados por cobras, morrem e nascem para serem picados novamente; ser perseguidos por demônios armados de espadas; ser castigados com úlceras e feridas que ardem totalmente envolvidos em chamas e estar com gelo até a cabeça. 

Diante de tantas e terríveis punições, ninguém suportava nem pensar em ser enviado para o Inferno. Cascudo, falando do Inferno, afirma: 

O Inferno é a imagem que nos foi trazida pelo colono português, grelhas ardentes, caldeiras borbulhantes, chumbo derretido, banhos de fogo, espetos, garfos, espontões, espadas vermelhas, instrumentos de suplício singular para esses incorpóreos.  

Na Idade Média, o contato com a morte nas grandes epidemias, as relações com os mortos nos cemitérios e nas igrejas pareciam suficientes para uma relação tranquila da morte com os viventes. No entanto, quando a Igreja, no fim da Baixa Idade Média, muda o foco nessa relação, isto é, ela acentua o Inferno como lugar de castigo, de danação eterna, a morte passa a ser um pretexto para falar do Inferno. O que passa a importar é o medo do Inferno, precedido de um Juízo Final. As imagens macabras da morte atordoavam as mentes dos fiéis entre os séculos XIV e XV. A Igreja Católica criou a Pastoral do medo. 

Leonardo Boff, procurando distinguir o Inferno dos Infernos ou ínferos – os lugares baixos –, acrescenta que “Inferno é a radical ausência de Deus, a situação dos que a si mesmos e voluntariamente se isolaram de Deus e de Cristo”. No entanto, os justos brilharão como o sol no Reino de seu Pai. Quem tem ouvidos, ouça!


Frei Jacir de Freitas Faria

Imagem: O Inferno de Dante- Autoria: Dante Alighieri da obra Divina Comédia

Disponível em: <http://www.stelle.com.br/pt/index_comedia.html . > Acesso em 15 jul. 2024.

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