Frei Fernando de Araújo Lima
Diz o velho axioma: “A graça supõe a natureza”. Pelo menos, desde o Concílio de Trento, a doutrina da Igreja entende que as realidades da fé exigem o uso da razão e da liberdade para serem bem vividas. Assim, os Seminários para esclarecer o intelecto dos futuros presbíteros e a Catequese das crianças que atingiram a “idade da razão” combinam com a recomendação da aposentadoria dos bispos aos 75 anos de idade. Disso se pode deduzir que a natureza biológica e psíquica pode ajudar ou atrapalhar tanto a vivência da fé como o exercício de alguma missão dentro da Igreja.
Desse modo, não se sustenta mais a ilusão de que a graça de Deus, ao menos ordinariamente, se imponha sem a compreensão intelectual e aquiescência humanas. Afora a condição de milagres extraordinários, as maravilhas que Deus opera no ser humano ocorrem numa natureza que as compreende e acolhe livremente. Assim, Santa Maria, Mãe de Deus, quis entender: “Como se fará isso?…” Depois da explicação do Anjo, ela, sábia e generosa, proclama o seu “Sim”!
E a graça da Fé? Ou a virtude da Fé? Poderiam se integrar numa pessoa que não tenha condições de ter o “senso” dessa confiança? Faço idéia de que é, no mínimo, difícil. Afinal de contas, Deus não robotiza ninguém. A experiência hospitalar no exercício da clínica psicológica a mim deixou claro que os pacientes internados em “manicômios” não têm assistência religiosa nenhuma comparados aos pacientes de hospitais gerais e outros de especialidades não psiquiátricas. Portanto, tenho esta questão: o que fazer para ajudar os cristãos “que perderam” o senso da fé em Deus por causa de lesões cerebrais ou incapacitações de origem e manutenção psíquicas?
A essa altura da reflexão chego a algo instigante. Erick Erickson, prestigiado psicanalista americano, em suas sistematizações sobre o desenvolvimento psicossocial humano, informa que o produto da primeira fase deste é justamente a aquisição da confiança básica ou da insegurança, tanto em relação às circunstâncias que envolvem o bebê como em relação dele consigo mesmo. Para o psicanalista, essa experiência primordial do bebê é a base natural que servirá de suporte para a construção da fé na vida, nas outras pessoas, em si mesmo e em DEUS! É sabido que, na Psicologia, experiências de decepções e frustrações sucessivas e demasiadas em relação a expectativas específicas podem gerar no frustrado uma desconfiança crônica frente ao objeto e objetivo em questão. Isso pode resultar em desistência ou ataque (desculpa das “uvas verdes”) no tocante ao que se almejava e se desistiu. Ora, se essa dinâmica estiver presente na pessoa por toda a infância, poderá produzir uma insegurança básica e generalizada, isto é, a desconfiança fundamental como uma das características do indivíduo. Se, ainda na infância ou na puberdade, isso for compensado, essa mesma pessoa poderá construir a confiança como um dos seus aspectos individuais. Se houver dinamismos vivenciais que estabeleçam a primazia da segurança pessoal, poderá se construir uma fé tranquila, fértil e generosa na vida. A fé como dom de Deus se sobrepõe a isto que chamo de “fé na vida”.
Alguém pode se sentir fraco, mas não é a mesma coisa que desconfiado de tudo e de todos. Quem se sente fraco, mas confia, corre atrás do que pode lhe fortalecer, pois acredita que conseguirá. Em relação à fé em Deus, os estruturalmente inseguros talvez consigam vivê-la como “tábua de salvação”, mas será que tal fé que busca tão somente um grau de segurança que nunca se teve poderá ser forte o suficiente para suportar a cruz que a própria fé possibilita encontrar e abraçar? “Se alguém me quiser seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e me siga.” (Mt 16, 24). A fé abraça a cruz das incertezas cotidianas, a cruz da decepção na própria religião, a cruz da doença sobre a qual jamais pensou que o Bom Deus lhe permitiria ter ou a cruz de qualquer outro infortúnio que a proteção do Altíssimo sempre deveria livrar.
A fé preciosa – resistente, persistente, à prova de frustrações – existe nos indivíduos resilientes, isto é, pessoas que virtuosamente recuperam o equilíbrio perdido pela ameaça proveniente de qualquer realidade que poderia destruí-las e ainda, depois de restabelecidas, se põem a ajudar os outros a superarem situações semelhantes. Segundo os estudos mais atuais em Psicologia Social e Psicologia Positiva, essas pessoas têm em comum, nas suas histórias, a confiança recebida e a confiança depositada em alguém significativo de suas vidas, em função de quem lutam para a superação dos desafios que enfrentam.
Afinal, mais importante do que ter para onde voltar é ter para quem voltar. Em geral temos para onde voltar, mas nem todos têm para quem voltar. Esses achados recentes da Psicologia Social e da Psicologia Positiva reforçam a teoria de Erick Erickson sobre o desenvolvimento psicossocial humano e a aquisição da “fé fundamental”. Não basta ter apenas fé em si, é preciso também acreditar em alguém para quem sempre se volta: um membro da família, um amigo e principalmente, DEUS!
Quando a fé, tanto a que se tem na Vida como a que se tem em Deus, nasce e se mantém no âmago da alma, não será destruída pelas próprias fraquezas nem pelo mau exemplo de alguém ou de instituições, pois é “construída sobre a rocha”, o alicerce da própria subjetividade – os primórdios da história pessoal – que gerou em si mesmo o desejo de comunhão e de busca do gozo da unidade e da caridade, suas principais fontes. Às vezes, pode-se até mudar de situação, mas essa atitude fundamental de fé e comunhão/caridade persistirá em qualquer lugar ou estado de vida. Aí se tem fé em si mesmo e a fé no Outro por excelência – DEUS, que se ama e por quem se sente amado. É para Ele que o verdadeiro fiel volta sempre.
Portanto, nossa fé em Deus é depositada sobre nossa experiência de vida, notadamente do que podemos chamar “senso natural de fé”. Por outro lado, a experiência da fé em Deus, sobreposta a essa natureza propiciará mais qualidade de vida, intensificando o sentimento de confiança em Si, nas outras pessoas, na existência e finalmente no Pai de tudo – DEUS, alcançando, assim, cada vez mais a graça de viver e progredir e repetir com São Francisco Assis: “MEU DEUS E TODAS AS COISAS”.