Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
Desejo ver o lado traspassado daquele que, abrindo o coração, fez ali um abrigo para mim, tomou-me consigo e rasgou diante de meus olhos um caminho para a casa do Pai onde somente Deus pode estar.
Karl Rahner
♦ Um dos momentos mais impressionantes da liturgia da Sexta-feira Santa é, sem dúvida, o da Adoração da Cruz. O celebrante, diante do povo, desvela um grande crucifixo e canta por três vezes; “Eis o lenho da cruz no qual pendeu a salvação do mundo”. E toda a assembleia se joelha reverentemente. Sempre que chega a primeira sexta-feira do mês, voltamo-nos para o alto da cruz e, interiormente, nos prostramos diante daquele que conhece nosso nome e nos quer um bem incomensurável. “Não existe maior amor do que dar a vida pelos seus”. Somos dele. Morremos para o homem velho. Ressuscitamos com ele. No regime da fé, a vida do Ressuscitado circula em cada um de nós e à nossa volta respiramos a presença do Amado. Karl Ranher, em páginas admiráveis sobre a Sexta-feira Santa, fala do mistério amoroso da cruz (cf. Karl Ranher, L’homme au miroir de l’année chrétienne, Mame, Paris, p. 127-139).
♦ Vem à nossa mente, neste contexto, uma curta e densa oração de São Francisco de Assis, inspirada em textos de São Paulo: “Nós vos adoramos, santíssimo Senhor Jesus Cristo aqui e me todas as igreja do mundo e vos bendizemos porque pela vossa santa cruz remistes o mundo”. Cruz da dor sem limites e de um infinito e indescritível amor.
♦ Um lado rasgado, trespassado… lado do coração. Quando falamos em coração vamos além do músculo quase central situado em nosso peito e que distribui sangue e vida. Pensamos aqui nessa parte mais íntima de nós mesmos. Thomas Merton assim explica o conceito de “coração”: “Refere-se à base mais íntima e profunda de alguém. Trata-se de um santuário interior, onde a autoconsciência ultrapassa a razão analítica e desabrocha em confrontação metafísica com o Abismo do incognoscível e, contudo presente – alguém que no dizer de Santo Agostinho é mais íntimo a nos do que nós somos” (cf. A oração contemplativa, p.51)
♦ Um lado rasgado que expõe o melhor de Jesus, um ser único que veio e vem dizer que a pupila dos olhos do Senhor nos acompanha, mesmo nos momentos de forte neblina existencial e mesmo quando nosso coração e o coração do mundo cria ídolos, esquece que o Amor precisa amado, como dizia São Francisco. Sim, eis o lenho da cruz do qual pendeu a salvação do mundo.
♦ Há os que passam diante da cruz. Passam e nada mais. Seus olho mal e mal se pousam no homem preso ao madeiro. Isso não lhes interessa e fica difícil ao discípulo do Amado furar esta casca dura e chegar à brecha do coração contrito, desse espaço interior nosso que poderia ser susceptível ao amor se deixasse de dançar em torno de quimeras e ilusões. Os que decidem permanecer diante da cruz experimentam um vigor insuspeitado. Passam a ter as batidas de seu interior no mesmo ritmo das batidas do Coração de Jesus. Passam a dar a vida pelos outros e não nos esqueçamos “não existe maior amor do que dar a vida pelos outros”.