Frei Jacir de Freitas Faria [1]
O texto sobre o qual vamos refletir é Is 35,4-7. Trata-se da profecia de Isaias (731-704 a.E.C.), homem que semeou, no reino de Judá, a esperança de que Deus iria intervir para salvar o seu povo do sofrimento imposto pelos governantes. Questões sociais e humanas causavam sofrimento e depressão em muitos.
Só quem já passou ou acompanhou pessoas com depressão sabe como é triste viver longos anos sem luz no fim do túnel. O nosso modo de viver contribui para a depressão. Vivemos numa sociedade fragmentada, dividida, que prioriza o fazer e o ter e, por isso, cultua o consumo. O ter está acima do ser. A depressão, além de outros fatores, encontra nessa realidade um campo fértil. O medo de não conseguir ter paralisa o ser.
Muitos dirão que a fé é fundamental para superar o medo que toma conta de um deprimido. Será por que temos medo? Qual é a história do medo? Já pensou nisso? Quais são os seus medos? Como a fé se relacionou com o medo na Baixa Idade Média (séc. XI -XV)? Nessa época, o ideal de vida era ser santo em meio a tantos pecados cometidos pelos mortais, e a morte que assolava em pandemias.
Isaías profetizou que Deus iria intervir. Com isso, os cegos, os surdos, os coxos e a terra árida voltariam a ver, ouvir, andar e jorrar! Que maravilha! Isso é tudo que um deprimido e um povo almejam. De Jesus, quase 800 anos depois de Isaías, é afirmado pelos seus interlocutores: “Ele tem feito bem todas as coisas: Aos surdos faz ouvir e aos mudos falar” (Mc 7, 31-37).
Ninguém pode afirmar que nunca teve medo. Ele é parte da constituição humana. Nascemos com medo. A criança chora ao sair do útero da mãe, pois ela se vê insegura diante do novo mundo.
Tomando consciência dessa realidade de morte, diferentemente dos animais, o ser humano vive num medo eterno. Jean Delumeau, citando Delpierre, diz: “O homem é o único no mundo a conhecer o medo em um grau tão terrível e duradouro”… “Sem o medo nenhuma espécie teria sobrevivido”.[2] Por outro lado, o medo paralisa as pessoas, impede o crescimento, pode ser usado como arma de domínio, controle. Pior ainda quando vem associado ao fator religioso, à fé.
No mundo antigo, o medo estava associado a divindades. Os gregos adoravam Deimos e Fobos, o primeiro representava o temor, e o segundo, o medo. Essas divindades estavam associadas e interferiam na vida das pessoas. Portanto, era necessário prestar-lhe culto para obter favores. Foi assim entre gregos e romanos.[3]
A Europa da Idade Média conheceu várias pestes que dizimaram populações inteiras, sendo as mais importantes a peste de Justiniano (séc. VI), a peste negra (1348-1351) e a peste de Marselha (1720). Essas epidemias, associadas às guerras, criaram situações de medo da morte e da peste nas populações.
A arte do italiano Buffalmacco, no cemitério de Pisa, no afresco “Triunfo da morte” retratou mortos sendo comidos pelos vermes, anjos bons e maus brigando pelas almas dos defuntos. Na peste negra, os mortos eram tantos que não se podia enumerá-los, escreveu o poeta Guillaume de Machaut.[4] A peste negra provocou mudanças no comportamento dos cristãos em relação à morte e ao morto. Não havia mais como prestar as devidas homenagens aos falecidos. Os cemitérios das igrejas lotaram rapidamente. O medo da peste imperava entre todos.
Ao longo da história, outros tantos medos aterrorizavam as pessoas: medo de lobos, da natureza, do mar, de cemitérios, das almas penadas, do Diabo, dos torturadores, do pregador (padre), etc. Frei Tito de Alencar Lima, torturado na época da repressão militar no Brasil, exilado na França, enforcou-se em uma árvore, em 1974, possivelmente por medo do torturador que carregava dentro de sua mente. Não conseguiu superar a situação. Infelizmente, muitos deprimidos não conseguem superar a dor da depressão, pois ela mais forte que a dor física.
O medo de almas penadas faz parte da cultura portuguesa e está associado à crença de que as almas que foram para o Purgatório, depois de um determinado tempo, poderiam voltar ao mundo dos vivos para penar, isto é, buscar soluções para situações não resolvidas.[5] Na tradição portuguesa acredita-se que “as almas daqueles que morrerem sem restituir o que devem voltar a este mundo, por favor de Deus, e imploram de algum amigo e parente que restitua a coisa roubada”[6]
Os medos da Idade Média ganharam força com a Inquisição na Igreja (séc. XIII-XVIII). Delumeau afirma que:
Uma ameaça global de morte se viu assim segmentada em medos, seguramente temíveis, mas “nomeados” e explicados, porque refletidos e aclarados pelos homens da Igreja… O discurso eclesiástico reduzido ao essencial foi com efeito este: os lobos, o mar e as estrelas, as pestes, as penúrias e as guerras são menos temíveis do que o demônio e o pecado, e a morte do corpo menos do que a da alma. Desmascarar Satã e seus agentes e lutar contra o pecado era, além disso, diminuir sobre a terra a dose de infortúnios de que são a verdadeira causa. [7]
Para Delumeau[8], o cristão era levado a ter medo de si mesmo, o que equivaleria a ter medo de Satanás, para não se tornar agente dele. Diante de uma angústia coletiva, o Juízo Final estabeleceria a punição para os culpados, os quais impediam a ação de Cristo no mundo. Para a inquisição, os culpados tinham nomes: turcos, judeus, heréticos, mulheres feiticeiras etc.
A Igreja influenciava diretamente na cultura, na arte, na sociedade do medo. Os pregadores incutiam medos na sociedade. Esperar uma outra vida, para além do medo, era a tarefa incessante de cada cristão. Recorrer à proteção divina por meio de anjos e protetores foi o caminho encontrado na religiosidade popular, criando, na Idade Média, a devoção a Nossa Senhora da Boa Morte, bem como a de São José, o patrono da Boa Morte. A tradição diz que se o fiel rezar uma Ave-Maria todos os dias para Nossa Senhora da Boa Morte, três dias antes de sua morte, ela virá para lhe avisar. Com isso, o medo da morte é aliviado.
Entre os séculos XVI e XVIII, os pregadores da Igreja, membros das ordens religiosas dos capuchinhos, lazaristas, jesuítas, redentoristas, dominicanos e de tantas outras, usavam os púlpitos das igrejas, os cemitérios e os teatros para desenvolver a pastoral do medo. Medo de morrer e ir para o Inferno, medo da morte. Verdadeiras histerias coletivas podiam decorrer dessas acaloradas pregações sobre a morte. [9] Delumeau afirma:
Tratou-se, portanto, de uma angústia vivida no seu auge e que a pastoral quis comunicar às populações. Então, inevitavelmente, caiu-se na tática; foram procurados os meios próprios para impressionar; foram utilizados ‘truques’ capazes de reforçar a autoridade dos pregadores e tornar verossímil essa mistura de culpabilização, de ameaças e de consolações que constituiu durante séculos o tecido habitual da pregação.[10]
Para incutir o medo da morte, pregadores utilizavam crânios em seus sermões. Medo da morte, do julgamento divino e danação eterna no Inferno formam uma trilogia perfeita nessa época. Imaginava-se uma catástrofe final no dia do advento de Nosso Senhor Jesus Cristo para o julgamento. Haveria fogo vindo do Céu e todos os males saindo do mar, local em relação ao qual havia um medo generalizado, pois nele estavam as potências infernais.[11]
O medo da morte entra em descrença no século XVIII, época das luzes, da razão, a qual, sendo despertada, colocaria fim aos monstros do medo e do pavor da morte, como retrata a famosa pintura “O sono da razão”, do espanhol Francisco Goya.[12] Nessa época, o mercado toma conta da sociedade. A humanidade ganho novos rumos até os nossos dias, nos quais predomina o ter em detrimento do ser.
Com tanto avanço da medicina, o medo medieval da morte passou, mas muitos pregadores atuais estão retomando esse discurso de medo, revigorando a pastoral do medo, com discurso em favor de um modelo medieval de santidade. Tenhamos muito cuidado para não nos deixarmos ser influenciados por eles. Isso também pode nos levar à depressão! É tempo de esperançar e não de maus agouros. Quem está deprimido, criai ânimo! Lute com você e por você! Deus está conosco! Ele tudo pode! Você pode!
[1] Doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de doze livros e coautor de quatorze. Destaque para: O medo do inferno e arte de bem morrer: da devoção apócrifa da Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte, Petrópolis: Vozes, 2019. Último livro: Os murais do Santuário de Santo Antônio, de Divinópolis (MG) na perspectiva do Três na Trindade e na Crucifixão de Jesus. Belo Horizonte: Província Santa Cruz, 2024. Caso se interesse por aulas sobre Bíblia e apócrifos, inscreva-se no nosso canal no YouTube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos ou https://www.youtube.com/c/FreiJacirdeFreitasFariaB%C3%ADbliaAp%C3%B3crifos
[2] DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente 1300 – 1800: uma cidade sitiada. 3. reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 19.
[3] Ibidem, p. 20-21.
[4] SCHMITT, Jean-Claude. Un tempo di sangue e di rose: pensar la morte nel Medievo Cristiano. Bologna: Dehoniane, 2015. p. 7-10.
[5] PARAFITA, Alexandre. O Maravilhoso Popular: contos – lendas – mitos. Lisboa: Plátano Editora, 2000.
[6] VACONCELLOS, J. L. Tradições Populares de Portugal, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986.
[7] DELUMEAU, História do Medo no Ocidente, p. 32.
[8] Ibidem, p. 32-33.
[9] DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo: a culpabilização no Ocidente (séculos 13-18). Bauru: EDUSC, 2003. v. II, p. 31.
[10] Ibidem, p. 11-12.
[11] DELUMEAU, História do Medo no Ocidente, p. 41-52.
[12] BRAET; VERBEKE, A morte na Idade Média, p. 23.