Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Discernimento libertador

19/02/2019

                                                                                              Imagem ilustrativa (fonte: Wikimedia Commons)

 

Pe. Ademir Guedes Azevedo, cp

Infelizmente, estamos assistindo ao crescente abismo entre ricos e pobres. Este cenário não acontece somente em países pobres, onde os ricos são a pequena classe dominante, mas se vê também nos países desenvolvidos que cruzam os braços para não dar oportunidade aos milhões de migrantes que perambulam pelas várias cidades e regiões. Perambulam e não encontram um lugar que lhes forneça as condições para estabilizar a vida. Nicanor Perlas, ativista e ambientalista filipino, chama tal fenômeno de globalização de elite, a qual é marcada por três tipos de crescimentos, a saber: 1. crescimento sem piedade, porque não tem coração para com os pobres; 2. crescimento sem futuro, porque não oferece trabalho digno e 3. crescimento sem raízes, porque nos separa das raízes dos nossos valores e das nossas tradições (veja-se, por exemplo, a cruel perseguição que os povos indígenas do Brasil vem enfrentando). A globalização de elite passa um pente fino nas manifestações das culturas locais, fazendo que as novas gerações não conservem a memória histórica e o pior de tudo: em nome da falsa ideia de progresso, as grandes potências mundiais fazem o que querem com a cultura local.

A famosa globalização de elite também tem um magistério religioso e a sua classe sacerdotal se manifesta hoje por meio dos novos messias do Youtube, os quais se travestem de um cristianismo mais natural que revelado, ou seja, apresentam um Deus do confronto, sustentado por fórmulas rígidas e preceitos morais que não têm nada a ver com as bem-aventuranças. O magistério dos youtubers religiosos, que legitima a globalização de elite, não apresenta a figura de Deus a partir da ótica da amizade, como alguém que pretende dialogar e entrar, respeitosamente, na história dos homens e a esses revelar a misericórdia. O recurso a uma religião natural, e não revelada, plasma um cristianismo burguês que confirma um futuro de glória, mas apenas para os detentores de uma verdade que se baseia num magistério da letra, nunca do Espírito. Em outras palavras, a nova onda dos messias do Youtube está tirando um elemento fundamental do cristianismo: o amor ao próximo.

Qualquer que seja a religião, se esta não mantém relação lúcida com a cultura e os seus dramas, está condenada a cair na armadilha do fundamentalismo ou terrorismo. De um lado, estão seus representantes emitindo sentenças e juízos partidários. Formando uma religião dos puros, a casta sacerdotal dos youtubers não inclui os pobres e marginalizados. Baseados sempre em divagações medievais, para eles o Evangelho vem substituído por uma falsa hermenêutica dos documentos da Igreja e das encíclicas papais. É essa a nova epistemologia da ideologia religiosa que ganha repercussão no espaço virtual hodierno. A questão crucial que está esquecida é que nós não vivemos mais em tempos de cristandade. O filósofo canadense, Charles Taylor, em sua monumental obra Uma Era Secular, dirá que hoje o ato de crer é apenas uma alternativa, dentre tantas outras. Toda tentativa de homogeneização da fé é destinada ao terrorismo. Crer é, portanto, uma escolha que porta a uma decisão livre e madura.

Diante disso, dois importantes critérios colaboram para um reto discernimento do cenário de confusão e de fanatismo religioso de extrema direita que estamos presenciando. O primeiro critério é cristológico libertador, ou seja, quando ouvimos a casta religiosa dos youtubers ou mesmo quando ouvimos, infelizmente, irmãos sacerdotes ou qualquer que seja o líder religioso falar de Jesus, devemos lançar a pergunta: qual é a imagem de Deus transmitida por eles? Trata-se daquele Deus revelado por Jesus, ou seja, um Deus próximo e misericordioso ou um deus que justifica a ideologia da elite, gerando a divisão? Talvez um exemplo concreto nos ajuda a ilustrar este primeiro critério. Conta-se que Nelson Mandela quando estava deixando a prisão, alguns lhes disseram: agora você pode fazer a sua vingança. Mas, no silêncio do seu coração, Mandela dizia: “Quando eu saí em direção ao portão que me levaria a liberdade, eu sabia que, se eu não deixasse a minha amargura e o meu ódio para trás, eu ainda estaria na prisão”. Esta é a luz! É exatamente esta a fidelidade ao Deus que Jesus revelou! Por isso, aqueles que dizem ser custódios de um magistério da verdade, mas incitam a violência e a divisão, deturpam a imagem de Deus.

O último critério de discernimento está ligado aquilo que o Papa Francisco repete tantas vezes: o verdadeiro cristão procura tocar a carne sofredora de Jesus. Todo aquele que prega o nome de Deus, seja nas plataformas virtuais seja nos púlpitos das igrejas, precisa ter no mínimo uma prática caritativa concreta. O que se assiste hoje, contudo, parece ser o que já acontecia no tempo de Jesus. Os sacerdotes do Templo de Jerusalém sabiam todas as verdades da Torá, mas exploravam os pobres pedindo doações de animais para a expiação de pecados. E assim, a pequena classe dos doutores da lei aumentavam as terras do templo, tirando proveito dos pobres. Jesus por sua vez, pregava fora do templo nas aldeias e tocava as feridas humanas, curando e acolhendo. Com a parábola do bom samaritano inaugurou definitivamente este dogma de fé: toda relação com Deus precisa passar por ele (Jesus) e pelo próximo.

Estes dois critérios creio que sejam a base para frearmos os efeitos desumanos da globalização de elite e da sua mais cruel representação religiosa que é aquela promovida pelo magistério dos novos messias, sobretudo aqueles do mundo virtual.

Imagem: reprodução da estátua de Nelson Mandela na sede da ONU


Pe. Ademir Guedes Azevedo é missionário passionista e mestrando em teologia fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana.

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