Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Desafios para educação face às mudanças na vida e na humanidade

23/03/2021

                                                                         Imagem ilustrativa: Canva (www.canva.com/pt_br/modelos)

Leonardo Boff *

A intrusão do coronavírus desde 2019, afetando pela primeira vez todo o planeta e cada uma das pessoas, não nossos animais domésticos como gatos e cachorros, tem um significado que é importante decifrar. Nada na natureza e em Gaia, nossa Mãe Terra, é sem propósito.

Que lição devemos aprender com esta pandemia? Para isso, não basta falar em ciência, tecnologia e todos os outros insumos. Mas devemos nos perguntar qual é o contexto do vírus? Ele não pode ser considerado isoladamente. É preciso identificar as condições que permitiram sua irrupção e sua devastação da espécie humana.

O Antropoceno e o Necroceno como contexto da Covid-19

O contexto da irrupção da Covid-19 reside no Antropoceno e no Necroceno. Em outras palavras, o motivo é a agressão sistemática que os seres humanos exercem contra a natureza e a Mãe Terra. Como muitos cientistas afirmaram: inauguramos uma nova era geológica: o Antropoceno. Ou seja, a grande ameaça à vida e até mesmo à vitalidade da Terra não se deve a um meteoro rasante que caiu no planeta, mas a nós, seres humanos.

Como não possuímos nenhum órgão especializado que garanta nossa subsistência – somos um ser biologicamente deficiente (Mangelwesen do antropólogo Arnold Gehlen) e também pelo fato não termos um habitat específico, temos que trabalhar a natureza e assim criar nosso oikos (casa, habitat) de modo a assegurar nossa existência e subsistência.

Nesse processo que criar nosso habitat, trabalhando a natureza, identificamos várias etapas. Nas primeiras fases da antropogênese, há milhões de anos, o ser humano teve uma relação para com a natureza de interação harmoniosa, respeitando seus ritmos. Mais tarde no neolítico, há cerca de 10-12 mil anos, passou a uma relação de  intervenção, com a gestão da água, com a irrigação e as culturas agrícolas e de animais, já rompendo a sinergia com a dinâmica da natureza. Depois, na era industrial, passou-se à agressão direta, explorando a natureza sem considerar suas possibilidades e limites, com a falsa premissa de que os recursos naturais são infinitos que permitiriam um desenvolvimento igualmente infinito. No entanto, uma Terra com bens e serviços finitos não suporta um projeto infinito. Apesar disso, continuamos a desconsiderar tais limites, querendo extrair da Terra o que ela já não pode mais nos dar (a Sobrecarga da Terra, o Overshoot). Esse processo de superexploração nos levou à fase atual de destruição da natureza. Não é mais o Antropoceno, mas o Necroceno, ou seja, a devastação massiva de formas de vida.

Estes são os  dados aterrorizantes fornecidos por Edward Wilson, um dos maiores biólogos atuais: a cada ano,  cerca de 100 mil espécies de seres vivos desaparecem, após milhões e milhões de anos de presença no planeta. Um milhão de outras espécies também correm grande risco de desaparecerem.

Aqui reside a causa da intrusão do coronavírus: a relação agressiva e danosa do ser humano com seu meio vital, destruindo as bases físicas, químicas, ecológicas que sustentam a vida. Por isso é válida a afirmação da Laudato Si’ do Papa Francisco: “Nunca maltratamos e prejudicamos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos” (n.53). E continua: “As previsões catastróficas não podem mais ser vistas com desprezo e ironia … ultrapassamos as possibilidades do planeta, de tal forma que o atual estilo de vida insustentável só pode terminar em catástrofe.” (n.161) Na outra encíclica Fratelli tutti, que é um aprofundamento do Laudato Si’, ele enfaticamente afirma “Estamos no mesmo barco: ou não salvamos todos ou ninguém salva” (n.32). Por isso, cobra “uma conversão ecológica radical” (n.5).

Na mesma direção vai a Carta da Terra de 2003, um dos documentos mais importantes nascidos de baixo, a partir de uma consulta a milhares de pessoas de todas as partes do mundo e de todas as classes sociais e assumida pela UNESCO como uma contribuição para uma nova educação, que afirma em seu primeiro parágrafo: “Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher seu futuro… Nossa escolha é: ou formamos uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscamos nossa destruição e a  destruição da diversidade da vida”. 

Para encerrar esse cenário ameaçador convém citar a última frase de um dos maiores historiadores do século XX, o inglês Eric Hobsbawn, em seu conhecido livro-síntese “A era dos extremos” (1994). «O futuro não pode ser a continuação do passado … O nosso mundo está em perigo de explosão e implosão … Não sabemos para onde vamos. No entanto, uma coisa é certa: se a humanidade deseja um futuro que valha a pena, não pode se basear no prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nesta base, falharemos. E o preço do fracasso, isto é, da alternativa à mudança da sociedade, é a escuridão » (p.562). Em outra parte do livro, ele fala sobre nossa autodestruição.

O que nos está salvando diante da intrusão da Covid-19

Como se há de interpretar a Covid-19 neste contexto dramático? Ela representa um sinal enviado pela Mãe Terra para nos dizer: “Vocês não podem mais continuar com essa agressão e com esse espírito de destruição contra mim,  caso contrário lhes enviarei severos  e danosos sinais”. A Covid-19 é um contra-ataque da Terra contra o tipo de civilização humana que criamos, que implica uma  perigosa devastação do sistema da vida e do sistema da Terra. Caso não mudarmos,  poderemos ir ao encontro do pior ou de um caminho sem retorno.

Por outro lado, ficou claro: o que nos está salvando não são os mantras do sistema vigente: o lucro ilimitado, a competição desenfreada, o individualismo generalizado, a exploração feroz dos bens e serviços da natureza, o Estado mínimo e o mercado acima da sociedade.

O que nos está salvando são os valores ausentes ou vividos apenas privadamente na cultura do capital: a vida em sua centralidade, a solidariedade, a interdependência de todos com todos, o cuidado uns dos outros e da natureza, um Estado suficientemente apetrechado para atender às demandas humanas e da sociedade dos humanos e não das mercadorias. Todos esses valores são aqueles que não fazem humanos enquanto humanos. Na encíclica recente Fratelli tutti esses valores são universalizados com alternativa ao paradigma vigente.

A partir des quadro dramático coloca-se claramente a questão: Como deve ser nossa educação diante desses desafios, radicalizados pela presença letal do coronavírus? Podemos continuar como antes? O pior que nos pode acontecer é voltar à situação anterior, com uma dupla e perversa injustiça: uma ecológica com a devastação dos ecossistemas e com as ameaças que pesam sobre o nosso futuro, e outra social por um pequeno grupo que controla quase toda  a riqueza e os fluxos financeiros fazendo com que grande parte da humanidade viva na pobreza até na miséria, morrendo antes do tempo. A consequência lógica é que temos que mudar se quisermos sobreviver. Ou então, dar razão a Sigmunt Bauman que nos advertiu pouco antes de sua morte: “ou damo-nos  as mãos e todos colaboramos ou então vamos aumentar o cortejo daqueles que caminham na direção de seu própria sepultura”.

A nova situação da humanidade desafia a educação

Se isso for verdade, significa que nossa educação deve assumir também mudanças e novas diretrizes, princípios e valores para estar à altura dos desafios do momento presente. A Carta da Terra diz bem: “Como nunca antes na história, o destino comum nos conclama a buscar um novo começo” (Conclusão). Repare-se: não se fala simplesmente em melhorar, mas em buscar um novo começo. “Isso requer” – continua a Carta da Terra, na mesma linha  da Laudato Si’ e Fratelli tutti “mudanças na mente e no coração; requer um novo sentido de interdependência global e responsabilidade universal … só assim chegaremos a um modo de vida sustentável (note-se não se diz um desenvolvimento sustentável, mas um modo de vida sustentável) em nível local, nacional, níveis regional e global”.

O que significa mudar de mente? É ver a Terra, não como um baú de recursos para nosso uso e desfrute, mas como um superorganismo vivo que organiza sistemicamente todos os fatores para se manter vivo e produzir permanentemente vida a toda a comunidade da vida. É a Mãe Terra, conforme foi decidido pela ONU em importante sessão de 22 de abril de 2009: este dia já não é mais o Dia da Terra, mas o Dia da Mãe Terra, uma mãe que devemos tratar com amor, carinho e com cuidado.

O que significa mudar seu coração? Significa, como bem diz Laudato Si’: “escutar ao mesmo tempo o grito da Terra e o grito dos pobres” (n.49). Não basta a razão instrumental -analítica, fria e calculista; é preciso sentir no coração a realidade circundante; é preciso “ter ternura, compaixão e preocupação pelos seres humanos” (n.91) e por todos os seres, “como o sol, a lua, o cedro e a florzinha, a águia e o pardal e outros seres”(n.86).

O que significa ter um novo senso de interdependência global?  A Laudato Si’ esclarece belamente: “Tudo está relacionado e todos os seres humanos estão juntos como irmãos e irmãs em uma peregrinação maravilhosa que  une também com ternura afeição o irmão sol, a irmã lua, o irmão rio e a mãe terra” (n.92). A afirmação básica da física quântica é: tudo é relação; nada existe fora do relação porque todos estão relacionados uns com os outros em todos os momentos e circunstâncias. O universo não é feito pelo conjunto dos corpos celestes, mas pelo tecido das relações que eles mantêm entre si.

O que significa nutrir uma responsabilidade universal? Para a  Laudato Si’ significa “a consciência amorosa de não estar desligado das outras criaturas, de formar com os outros seres do universo uma preciosa comunhão universal … é sentir que precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade pelos outros e pelo mundo ”(nº 229). Terra e humanidade têm o mesmo destino comum que pode ser bem-aventurado ou trágico, dependendo das práticas dos seres humanos.

Tudo isso tem a ver com o tipo de educação que deve ser desenvolvida, enriquecida e reinventada para ajudar a criar um mundo necessário e não só possível, no qual coexistam os diversos mundos culturais, com seus valores, tradições e caminhos espirituais, na mesma e a única Casa Comum, a natureza incluída.

Jacques Delors, anos atrás, então secretário geral  da UNESCO propôs alguns marcos para a educação no século 21. Ele dizia que “é preciso aprender a conhecer, aprender a pensar, aprender a fazer, aprender a ser e aprender a conviver”. Tudo isso é irrenunciável. Mas temos que ir mais longe em face dos desafios que nos são apresentados pela realidade global profundamente mudada.

Como dizia a filósofa  Hannah Arendt: “Podemos nos informar ao longo e toda vida sem nunca nos educar”, ou seja, não basta acumular informações. Hoje, praticamente tudo se encontra no Google. Temos que nos educar com essa informações para sermos mais humanos, mais sensíveis, mais fraternos e cuidadosos para com todas as coisas e garantir um futuro bom para todos, para a nossa civilização, para a vida e, portanto, para a Mãe Terra.

Marcos para uma educação adequada para o tempo atual

Alguns pontos são importantes e decisivos para uma educação adequada à situação da humanidade e da Terra. Não é o lugar para aprofundá-los, mas para colocá-los como um desafio à reflexão.

O primeiro é o resgate da razão cordial ou sensível. Somos seres fundamentalmente de sensibilidade mais do que  de racionalidade. É por isso que devemos desenvolver, como diz Laudato Si’, “uma paixão pelo cuidado do mundo, uma mística que nos encoraje, que dê ânimo e sentido à ação pessoal e comunitária” (n. 216). Ajudam-nos as reflexões que estão sendo feitas atualmente sobre o resgate desta dimensão cordial que enriquecerá a inteligência racional (cf. Os direitos do coração, Paulus, 2015).

Em segundo lugar, sentir-se parte viva e consciente da natureza, criando laços de amor, afeto, comunhão e cuidado com cada ser da natureza: não queimar nada, não derrubar florestas, não poluir o ar e os solos, permitir a regeneração da natureza dando-lhe descanso e cuidado. Nisso, os povos originários são nossos mestres, pois sentem-se parte da natureza e a tratam com reverência e sumo cuidado.

Em terceiro lugar, aprender a conviver com a diversidade. Através da mídia global, entramos em contato com tantas culturas e valores humanos diferentes que vão além dos nossos da cultura ocidental. Então, não permitir que as diferenças se transformem em desigualdades, mas entender que podemos ser humanos de maneiras diferentes e aceitá-las, como válidas e não apenas tolerá-las. Assim, podemos construir uma verdadeira fraternidade sem fronteiras. Como se canta entre nós: “A alma não tem fronteira, nenhuma vida é estrangeira”.

Em quarto lugar é incorporar uma ética do cuidado necessário. O cuidado pertence à essência da vida e principalmente do ser humano. Sem cuidado, não sobrevivemos (veja-se o meu Saber cuidar, Vozes 1999 e O cuidado necessário, 2013) Tudo o que amamos, nós também cuidamos e tudo o que cuidamos, também amamos. O cuidado deve ser incorporado não como um ato, mas como uma atitude fundamental em todas as áreas da vida, cuidando de si, do outro, do nosso espírito, do tipo de sociedade que queremos, cuidando dos ecossistemas, cuidando da Mãe Terra.

Finalmente, desenvolver uma dimensão espiritual da vida. Vivemos dentro de uma cultura que cultiva excessivamente os valores materiais em vista do consumo humano. Pouco desenvolvemos o que é especificamente humano: a nossa dimensão espiritual, feita de valores intangíveis mas que são essenciais como o amor incondicional, a solidariedade, a compaixão, a capacidade de perdão e reconciliação, a abertura ao sagrado da natureza, a Deus que está continuamente criando e sustentando tudo. O ser humano pode abrir-se a esta dimensão e acolher de forma consciente o Ser que faz ser todos os seres. O resultado é que nos tornamos mais humanos, mais sensíveis, mais solidários, mais comprometidos com a salvaguarda da vida e da justiça especialmente dos mais empobrecidos e feitos injustamente  invisíveis, sentindo-nos filhos e filhas da Mãe Terra e irmãos e irmãs de todos os outros humanos. Igualmente de todos os seres da criação.

Tudo começa com a educação. Sua tarefa essencial é construir a identidade do ser humano e hoje reinventá-la para poder enfrentar os desafios colocados pelas mudanças da própria Terra e da humanidade globalizada. Como disse o grande educador Paulo Freire: “A educação não muda o mundo. A educação muda as pessoas que vão mudar o mundo ”.

Este é o desafio de toda educação: transformar as pessoas e o mundo a salvar. Para isso temos que cultivar a esperança profundamente descrita na Fratelli tutti: “Uma realidade enraizada no profundo do ser humano, independentemente das circunstâncias concretas e dos condicionamentos históricos em que vive” e que nos permite ter sonos de outros mundos possíveis e melhores (n.55).

São inspiradoras  as palavras finais do Papa Francisco na Laudato Si’: “Irmãos e irmãs, caminhemos cantando; que nossas lutas e nossa preocupação com este planeta não tirem a alegria da esperança ”(n. 244).


Esta foi um palestra ministrada em espanhol via internet aos Irmãos Maristas de Compostela da Espanha e de Portugal no dia 16/03/2021 tendo como referência a ecologia integral da encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco.

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