Frei Carlos Josaphat, OP
As mulheres aparecem menos, entre autores e mestres espirituais. No entanto, são as mais numerosas e assíduas na escola vivida da oração. Esse contraste entre o ser e o aparecer bem pode servir de fio condutor para a nossa reflexão sobre as Santas Doutoras.
Nada de mais oportuno e mesmo urgente para a espiritualidade, hoje, do que falar das mulheres, da sua presença, ativa e orientadora, na caminhada do Povo de Deus. Cumpre começar reparando o grande erro e a grande injustiça. Não se trata tanto de reivindicação em benefício de nossas irmãs lesadas. Antes de mais nada, é uma questão de restabelecer a verdade. A Igreja não tem apenas “Pais” e “Doutores”. Em sua bondade e sabedoria, desde o começo e através dos tempos, Deus não cessou de suscitar “Mães” e “Doutoras” da Igreja. Elas vêm sempre contribuindo, de maneira discreta, porém efetiva, para a transmissão da vida e do conhecimento da fé.
É deveras importante ir às fontes da discriminação. Tanto mais que ela é também moeda corrente nos vários campos da cultura, das ciências, das artes, da filosofia e da teologia.
Se a gente pergunta: onde estão e o que fazem as mulheres na história passada e na vida atual da Igreja, as primeiras respostas, óbvias e espontâneas, não deixam de surpreender. Uma coisa dá logo na vista. A mulher, por ela mesma, levanta problema e constitui dificuldade. Um simples exemplo. Consulte-se um teólogo do gabarito de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) sobre a diferença sexual, sobre o significado divino e humano do casal. Esse nosso irmão, genial e carismático, entre todos, colocará a questão e dará a resposta em outros termos, que para ele sintetizam a tradição ou manifestam a evidência:
– Por que a mulher existe? Qual o sentido da mulher, ao lado do homem nas origens e no desenrolar do plano de Deus? (l)
Não é curioso? Que o homem exista, que seja um ator, mais ou menos qualificado, da história do mundo e da salvação, é um dado. Não se discute. Porém, a mulher é a diferença, que ai está a pedir explicação. Não é o momento de analisarmos o conteúdo e a qualidade da explicação, dada por teólogos e doutores. Hoje, pelo menos a teologia que conta, que vai seguindo a caminhada do Povo de Deus, toma logo outro ponto de partida. Recoloca a questão: falar de diferença sexual é estudar a condição de dois parceiros, que partem juntos e jogam juntos o mesmo jogo do amor e da felicidade.
Grandes progressos vêm sendo realizados. No entanto, não podemos perder de vista esta exigência primordial. Visamos uma reflexão objetiva sobre a presença e a atuação da mulher na história, sobretudo na História da Igreja e da Espiritualidade? Havemos, então, de começar a assumir uma atitude crítica diante do modo parcial, ostensiva ou sutilmente masculino, de viver e escrever essa história.
É preciso remontar ao paradigma masculino de fazer e de contar a história (2).
Um paradigma, para nós, é uma certa forma de escolher e dispor dados e valores, dando prioridade ao que se considera mais importante e mais significativo para chegar à compreensão de uma realidade. Em nosso caso, a realidade, para cuja explicação buscamos um paradigma, vem a ser o papel ou o significado atribuído à mulher na história e na atualidade da Igreja.
A Bíblia às voltas com o paradigma masculino
Quando Deus criou o mundo, Ele tinha as mãos livres. Fazia surgir as coisas, plantas, animais e seres humanos quais realizações concretas do seu lindo sonho de sabedoria, de beleza e amor. Ousemos dizer que a situação não é a mesma, quando o Senhor resolve nos dar a Bíblia, há cerca de quatro mil anos. Sua condição de autor ou de inspirador dos autores já se acha grandemente comprometida e limitada. Pois, a pedagogia divina aceita a humanidade tal qual ela é, e tal qual ela se fez ou se vai fazendo. A história vai ser contada e a mensagem vai ser transmitida, tendo em conta, entre outras limitações, a dominação universal do paradigma masculino.
Esse paradigma envolve e impregna o jeito de representar e compreender a Deus, a religião, a sociedade, o amor, o casal, a família e tudo o mais. A Revelação divina e as Escrituras, que no-la transmitem, terão de negociar com o machismo reinante. Hão de insuflar novos princípios e energias renovadoras, capazes de levar ao paciente triunfo sobre esse paradigma matreiro. A primeira explicação nos é dada pela própria Bíblia. Esse deslize se insinuou feito uma serpente. Introduziu um pecado fundamental que semeou a confusão e embaçou a beleza divina do casal humano. Lá veio a dominação do homem (varão) sobre a mulher, situação injusta e deselegante, que ela acabou aceitando, ao menos como mal inevitável. “Ruim com ele, pior sem ele!”, como diz o amargo ditado popular.
Por isso, uma exegese, feita de rigor e de fineza, chegará a resumir a história e a pedagogia bíblicas em termos de casamento e de aliança. Deus se empenha em restabelecer o casal humano em uma aliança de amor. Ao mesmo tempo, assume o papel de esposo, firmando com a humanidade uma aliança perfeita. Dessa aliança divina o matrimônio amoroso é a imagem e o sacramento. Estará presente, qual força transformadora, no coração do Povo de Deus, em marcha através da história.
Todas as queridas Mães e Mestras da Igreja, de que nos vamos ocupar, fizeram desse plano carinhoso de Deus o centro e a razão de ser de suas vidas. Cada uma delas, personificando e simbolizando a Igreja, assume com muito amor e responsabilidade a qualidade de Esposa de Cristo.
O sopro renovador do Evangelho
O Evangelho vem efetivar e acelerar o projeto de Deus. E aí o paradigma masculino vaí aparecer em toda a sua força e toda a sua astúcia. Tenta entravar ou pelo menos retardar a marcha libertadora da Verdade divina.
Jesus surge como Mestre em Israel. As mulheres são as primeiras na escuta e na fidelidade. Jamais traíram, ofenderam ou abandonaram o Mestre.
De início, convém insistir sobre esta simples evidência, elas são discípulas. Elas “seguem a Jesus”. São as mais prontas a crer. Com um realismo gracioso, como se fosse a tarefa delas, as mulheres se empenham em prover do necessário a comunidade itinerante do Mestre. Pois, este não mais trabalha de carpinteiro. E retira os Apóstolos das suas profissões lucrativas. Uma equipe feminina se constitui, então, para financiar e sustentar discretamente a pregação do Reino (cf. Lc 8,1-3).
Quando os homens falham ou hesitam, as mulheres são escolhidas e enviadas como mensageiras da Boa-Nova, da Ressurreição. São, assim, colhidas de surpresa. Pois, no momento da maior crise, se veem investidas da delicada prerrogativa de serem as “apóstolas dos Apóstolos” (cf. Mt 28,10; Mc 16,7; Lc 24,9; Jo 20,17-18). No entanto, não são oficialmente destacadas para integrarem o grupo dos Doze. Não serão tidas como “Apóstolas” pregadoras da fé e fundadoras de Igrejas. O mundo religioso e profano de então não as teria aceito.
Convém situar esse ensino em seu contexto histórico, que lhe dá o primeiro sentido. Jesus se reconhece e proclama enviado, primeiro para salvar seu povo judeu. Guarda o simbolismo das doze tribos e dos doze patriarcas, ao “edificar a sua Igreja” e ao escolher seus Doze Apóstolos. Acomoda-se, de fato, ao modelo histórico e tradicional em Israel. Esse modelo estava bem enraizado no paradigma masculino, no que diz respeito à autoridade e ao ensino da religião, bem como à constituição da sociedade. Levando à perfeição “a Lei e os Profetas”, o Evangelho não podia realizar, de imediato, a implosão do judaísmo vigente. A força inovadora do Reino haveria de trabalhar, qual fermento ativo e paciente, levedando a mentalidade, os costumes e as instituições da velha humanidade.
Nesse primeiro momento, a grandeza da mulher é realçada na novidade primordial do Evangelho. Ele põe em relevo sua vocação e sua fidelidade à escuta, à contemplação, à difusão discreta e eficaz da Palavra salvadora (3).
A figura de Maria é ao mesmo tempo singular e exemplar dessa vocação contemplativa e escondidamente apostólica da mulher (cf. Lc 1,46-55; 2,19; 2,51; At 1,14).
A Mãe de Jesus e da Igreja tem sido venerada e exaltada, à porfia, e com razão, pela piedade, pelos mestres da teologia e da espiritualidade.
O Papa João Paulo II coloca seu pontificado sob a especial proteção de Maria: “Totus tuus“, “Todo teu”, é a divisa do seu brasão. São conhecidos os seus ensinamentos através de encíclicas e documentos especiais. E quase todos os grandes pronunciamentos seus terminam por uma invocação a Maria. No entanto, essa piedade e esse ensinamento maravilhosos nem sempre se empenham em discernir, no Mistério de Maria, esta dupla dimensão da Encarnação salvadora:
– a sua divina vocação de colaboradora privilegiada do Amor divino, no serviço e na humildade;
– e as condições sócio culturais de submissão da mulher, que a excluíam de toda função de governo, na sociedade civil e religiosa daqueles tempos.
A mulher, gestos e símbolos de amor
As duas irmãs, amigas de Jesus, Marta e Maria, se projetam qual modelo, contrastado, porém complementar, da verdadeira acolhida da Palavra e da Pessoa do Mestre. Após a Parábola do Bom Samaritano e o ensino da Oração do Senhor, o Evangelho de Lucas nos descreve, em leves pinceladas, o lar acolhedor e as duas irmãs devotadas, Marta e Maria (Lc 10,38-42).
Marta que se afadiga no serviço, Maria à escuta tranquila da Palavra, são as duas faces do mesmo rosto evangélico ou o duplo ritmo amoroso do coração da mulher. Confirmadas pelo testemunho do Evangelho de João (cf. Jo 11-12), assim aparecem as duas irmãs, através da tradição patrística e da história da espiritualidade. Simbolizam as duas atitudes básicas do dom de si, pelo serviço e pela contemplação.
Também no Evangelho de João se destaca e se desdobra, em projeção lenta, esse filme de amor, que é a história da Mulher Samaritana. Seus olhos se abrem diante desse Judeu tão diferente, que não a exclui e até suprime toda a discriminação. Sente que a vida dela se desvenda e um novo projeto de amor se anuncia. Reconhece o Messias, se torna a apóstola, a evangelista do seu povo (cf. Jo 4,1-42).
Nas narrativas das duas unções, os gestos de duas mulheres são postos lindamente em relevo. Aí igualmente se acentuam, talvez com maior força, os traços característicos da vocação e da realização da mulher. Ela se converte de todo o coração, fascinada pela beleza de Deus, resplandecendo no homem Jesus. Antes de apresentar a equipe de mulheres salvas por Jesus e que se colocam a seu serviço (cf. Lc 8,1-3), Lucas desdobra carinhosamente a cena da pecadora, audaciosa no seu amor puríssimo e escandaloso (cf. Lc 7,36-50). Na casa do fariseu Simão, estarrecido, a mulher marginalizada não apenas se intromete no banquete. Ela se põe a lavar os pés de Jesus com suas lágrimas, a ungi-los com o seu perfume e a enxugá-los com os seus cabelos. À socapa, passou a ocupar o primeiro plano naquele episódio. E na história da salvação.
Em Betânia, nas vésperas da Paixão, antecipando-se “com o bálsamo, para a sepultura”, Maria unge agora os pés que marcham para a cruz. Ela inunda a casa e o mundo todo com o mais precioso dos perfumes (cf. Mt 26,6-13; Me 14,3-9; Jo 12,1-11). Os homens não podem deixar de protestar. Racionais e calculistas, condenam, em nome da economia, o desperdício de tão valiosa mercadoria, certamente importada.
Esses episódios evangélicos são carregados de simbolismo. Fisgadas, transfiguradas pelo Amor, que revela toda a sua força e beleza nesse único Homem perfeito, que aí está, as mulheres se rendem totalmente. A Ele elas se consagram com o seu jeito feminino de ser e de se dar. Com toda a deferência e imenso carinho, ajoelhadas aos pés d’Ele, envolvem o Bem-amado com os cabelos, com o perfume, o beijo e as lágrimas. Elas realizam, na plenitude do Evangelho, a sublimidade amorosa do Cântico dos cânticos. Elas abrem os caminhos que serão seguidos por Santa Teresa e Santa Catarina, e serão cantados pelos poemas extáticos de São João da Cruz.
A novidade evangélica e a velha mentalidade
As mulheres são, portanto, valorizadas e realçadas na novidade do Evangelho.
Logo de início, a comunidade eclesial se mostra maravilhosa e exemplar em sua solidariedade fraterna. No entanto, ela vai procurando os modelos de sua organização, dentro dos limites do que era historicamente possível. Não vê como desgarrar-se da velha tradição. Esta se acomoda grandemente à mentalidade judaica, grega e romana da época. A mulher não instrui, menos ainda preside a assembleia.
Assim, já na época apostólica, se inicia o paradoxo da história da cristandade: as que mais e melhor contemplam, menos falam e menos escrevem sobre a contemplação.
A compreensão profunda do Evangelho, neste ponto, pode condensar-se nestas duas proposições:
– De maneira original e criativa, Jesus elevou ao máximo a vocação e o ministério da mulher, abrindo caminho para que a nova Eva realize plenamente a igualdade e a diferença complementar na Nova Aliança.
– O triunfo sobre a mentalidade de discriminação e exclusão é uma exigência primordial da mensagem de Jesus. Mas ela só se vai realizando muito lentamente. No entanto, é esse triunfo que permitirá a concretização do modelo evangélico da vocação feminina, de perfeita igualdade na santidade e no ministério. O que acarretará uma grande riqueza de dons e uma maior eficácia apostólica para a Igreja.
“Conversando com os Pais e Mães da Igreja”
Tal é o titulo simpático de uma pequena coleção de estudos de Patrologia (4). Quer salvar do olvido total as poucas mulheres que são apenas mencionadas, quando se narra a história dos acontecimentos, das instituições e doutrinas que formaram a comunidade nos primeiros séculos do cristianismo.
Pois, o paradoxo (ou o escândalo) da idade apostólica continua e se agrava na era patristica. Ao lado da multidão dos “Padres” ou “Pais”, umas poucas “Mães da Igreja” sobrevivem na literatura. É verdade que sempre se reconhece, assim muito de raspão, que a transmissão da fé, bem como a vida de oração, tenham sido asseguradas de fato por maravilhosas mestras escondidas. Porém, os ensinamentos delas ficaram ocultos ou foram sistematicamente ocultados, pelos contemporâneos e pelas gerações ulteriores.
Alguns exemplos, entre os mais simples e conhecidos, podem ilustrar essa curiosa conjunção da missão importante e do caráter pouco visível das “Mães da Igreja”.
Assim, São Basílio, seu irmão, São Gregório de Nissa, o amigo de ambos, São Gregório de Nazianzo emergem como figuras eminentes, em seu tempo (séculos IV e V) e através de toda a história eclesiástica. Porém, pouco se fala de Santa Macrina, a antiga, avó de Basílio e de Gregórío de Nissa. Ora, foi ela quem formou toda a família na fé e na piedade. Ou ainda, apenas se menciona Santa Macrina, a jovem, neta da precedente, a qual exerceu uma influência decisiva sobre os irmãos que são venerados como notáveis “Padres da Igreja”. No entanto, só conhecemos as duas grandes “Mães” da Igreja, as duas santas Macrinas, através dos escritos de Basílio e de Gregório de Nissa. Este último, ainda bem, sentiu-se no dever de escrever uma biografia da irmã (5).
Algo de semelhante se pode dizer de Santa Melânia, igualmente neta de uma homônima, uma grande espiritual e uma mulher de ação, uma espécie de fundadora, que prefigura um pouco a vocação itinerante de Santa Teresa (6). Como não mencionar Santa Sílvia (morreu em torno de 592), a mãe e educadora de S. Gregório Magno, Papa de 590 a 604? O filho refulge como um dos luminares da Igreja, enquanto a mãe permanece na penumbra.
Santa Mônica entrará na história, graças a seu filho Santo Agostinho, que a enaltece, sobretudo no Livro IX das “Confissões”. E por que não lembrar aquela, de quem Agostinho nem mesmo nos deixou o nome, mas a quem ele amou verdadeiramente e que o amou de maneira extraordinária? Ele se viu forçado a deixar a bem-amada, que lhe dera um filho. Ela prometeu então a Cristo não mais se ligar a outro homem. Agostinho declara que não conseguiu imitá-la logo. E guardou, por muito tempo, uma imensa ferida. Era a saudade daquela que foi o seu primeiro e, talvez, único amor. Não se trata de uma reles concubina. É a mulher que soube amar o único homem de sua vida. Não é tocante esse seu
voto a Cristo de jamais pertencer a um outro, depois de ter amado Agostinho e de ter sido por ele relegada (7)?
E que grandes cristãs, maravilhosas espirituais, vemos em torno de S. Jerônimo (347-420): as duas viúvas, Marcela e Paula, bem como a filha desta última, a virgem Eustóquia. Elas ajudam esse grande homem, difícil e impetuoso, a encontrar o seu equilíbrio espiritual e afetivo, a trabalhar na exegese das Escrituras, a fundar os conventos em Belém. Ele ocupa o primeiro plano na história. Elas são lembradas apenas por causa do “Doutor das Escrituras”. Nossas referências são precisamente as “Cartas” dele. Digamos de passagem: estas foram lidas por Santa Teresa e exerceram grande influência sobre a sua juventude (8).
Em resumo, as “Mães da Igreja” transmitiram a fé e a doutrina, foram o sustentáculo dos grandes “Pais da Igreja”. Mas quase não lograram escrever. Ou pouco nos foi transmitido do que produziram. Uma dessas peregrinas, que visitavam as comunidades, confiou ao papiro suas impressões sobre a liturgia e a vida da Igreja de Jerusalém. Seu texto se salvou do olvido geral. Uns a chamam de Etéria, outros de Egéria ou até mesmo de Sílvia. Não se guarda direito nem mesmo o nome dessa raríssima escritora da época patrística (9).
“A mulher no tempo das catedrais e das cruzadas”
A mesma lei da fidelidade constante e fecunda, porém escondida ou desconhecida, perdura e cresce na Idade Média. Alguns exemplos romperam a barreira e testemunham a permanência desse valioso magistério feminino. A presença da mulher na cultura e até na política é um dado histórico geralmente ignorado ou até mesmo ocultado. É o que mostram os livros de Regina Pernoud, evocados no título desse parágrafo (10).
Ela mostra Santa Clotilde convertendo Clóvis, orientando os destinos da França.
Revel-nos a primeira educadora e o primeiro manual de educaçáo, escrito por Dhuoda, uns sete séculos antes de Rabelais e Montaigne, e mais de um milênio antes de Rousseau. Como o próprio nome de Dhuoda, o seu “manual” permanece desconhecido. Dá provas, no entanto, de muita originalidade, de um bom conhecimento da psicologia infantil. É uma mãe que escreve para o filho. Trata o menino com carinho e com certa deferência. Propõe ao discernimento e à opção dele os caminhos do bem e da virtude. Com lucidez e fineza, muito feminina, quer educar, inculcando a beleza do verdadeiro amor.
No crepúsculo da Idade Média, quando emergem as estruturas e ambiçóes dos Estados modernos, a historiadora estabelece um paralelismo sugestivo. Aproxima Catarina de Sena (1347-1380) e Joana d’Arc (1412-1431), separadas por pouco mais de meio século de distância. Sem sair da sua “cela interior”, as duas grandes guias carismáticas indicam rumos certos aos chefes e às sociedades, desnorteados pelas ambições e pela violência.
Mas essas, e outras mulheres, que contribuíram para a formação cultural e espiritual do Ocidente, pouco aparecem na grande história, tecida nos moldes masculinos. Nestes, predominam as proezas machistas, as guerras, as conquistas, os negócios (11).
As Mães e Fundadoras através dos séculos
Através dos séculos, persiste o “patriarcalismo”, mesmo nas famílias religiosas femininas. Aí se perpetua o culto aos fundadores, enquanto as fundadoras vão ficando na penumbra. E não são elas que animam e dão a verdadeira
originalidade às comunidades?
Reparem esses santos “casais”, em que as auréolas dos “Pais” eclipsam os rostos das “Mães”. Vejam São Domingos. Valoriza imensamente as mulheres. Mostra-se muito amigo e atencioso. Mas quem conhece a Fundadora das primeiras Monjas Dominicanas que, aliás, precederam a fundação da Ordem dos Frades Pregadores? Pode-se contabilizar uma ligeira vantagem para Santa Clara, que não ficou de todo ofuscada pela glória do humilde São Francisco de Assis. Mais perto de nós, qual a Fundadora das Irmãs Auxiliadoras, cujo Pai é São João Bosco? Este deu a seus filhos o nome de Salesianos, em honra de São Francisco de Sales. É um lindo gesto de humildade que, no entanto, fica sempre no gênero masculino.
Bem se compreendem as queixas que Santa Teresa dirige a Jesus sobre a condição da mulher na Igreja. São significativas do drama vivido de uma mulher, toda possuída de Deus e plenamente inserida no seu tempo e na compreensão do seu povo. Apoiando-se em São Pedro de Alcântara e na sua própria experiência, ela manifesta sua convicção de que o “Senhor dispensa suas mercês mais às mulheres do que aos homens” (Vida, 40, 8). Alude à incapacidade das mulheres para falar e à interdição paulina nesse sentido. Daí conclui que elas hão de se esmerar por se afirmar pelas obras (Caminho, 15,6). Uma ponta de ironia transparece, quando compara o antifeminismo vigente e os dons que Deus prodigaliza a “mulherzinhas fracas e ignorantes”. Está a par da vigilância da Santa Inquisição, que suspeita de suas visões e doutrinas. Professa plena fidelidade ã Igreja e total confiança no seu Mestre divino. Porém, discretamente, denuncia as injustiças que oprimem a mulher.
Destaquemos outro exemplo: Santa Luísa de Marillac, “Mãe e Mestra” das Filhas da Caridade, as quais figuram na história como “fundadas por São Vicente de Paulo”. Ninguém quer negar a importância extraordinária de São Vicente, na vida da Igreja e da espiritualidade. Ele ajudou poderosamente Luísa de Marillac a se libertar de suas incertezas e angústias interiores. Aliás, essas hesitações são atribuíveis, em grande parte, aos sentimentos excessivos de dependência feminina, inspirados pelo clima cultural e espiritual, que a asfixiava. O Santo diretor vem levá-la a se realizar em sua autonomia espiritual, encontrando a sua missão de fundadora, de mãe e mestra das Irmãs de Caridade.
Estas têm de fato pai e mãe. Ele se faz presente, de vez em quando, marcando suas filhas com sua palavra e seu exemplo prodigioso. Porém a mãe, Santa Luísa, forma, dia e noite, as filhas e as comunidades. Ela inspira e redige as formas de vida comum. E se mostra uma verdadeira doutora em espiritualidade e até mesmo na teologia. Vive e ensina a oração, como fruto da caridade e fonte da ação, do dom de si aos pobres e aos enfermos. Quando São Vicente fala, uma Irmã sempre anota o que ele diz. As palavras de Santa Luísa amoldam a vida de suas filhas. Mas não passam à posteridade. Ela era a primeira a achar natural essa discriminação, em favor do “Padre Vicente”.
E assim, por conta da humildade, se perdem as palavras de sabedoria, que saem da boca da mulher.
Uma constelação no céu feminino
Nossa reflexão vai se concentrar sobre algumas dessas Santas Doutoras. Destacamos uma constelação apenas, nesse imenso firmamento da espiritualidade feminina.
É difícil escolher. Perdoem-nos todas as que vão ficar relegadas. Procuraremos aprender a rezar e a lutar em companhia e na escola de Santa Catarina de Sena, de Santa Teresa d’Ávila, de Santa Teresinha, Santa Edith Stein e da Bem-aventurada Isabel da Trindade.
Não há quem não admire os encantos e a irradiação dessas grandes mulheres. Teresa é a grande mãe e mestra do Carmelo. Que riqueza de doutrina e de experiência! Teresinha parece oferecer-nos um seguro e gracioso atalho, para avançarmos rumo à “Montanha do Amor”. Isabel da Trindade é muito atual para a nossa caminhada rumo a este novo milênio. Pois nos conduz ao centro da contemplação, ao mistério da Comunhão Trinitária. Edite Stein trilhou as veredas da Filosofia. Dá-nos o exemplo da contemplação no seio da modernidade. Na “Ciência da Cruz”, procura conciliar audaciosamente a mística de João da Cruz, a filosofia de Tomás de Aquino e a fenomenologia de Edmundo Husserl.
Com o seu “Diálogo”, Catarina de Sena é uma fonte universal nos jardins da Igreja. É citada e venerada por todas as outras Santas Doutoras dos tempos modernos.
Sua doutrina e seu exemplo inspiraram, muito particularmente, a Santa Teresa em seus começos. Em momentos e em formas diferentes, ambas abrem diante de nós todo o universo da contemplação e da ação. Ensinam-nos o amor ao Cristo na sua Paixão e na sua Glória, e a total consagração à Igreja, reconhecida em seu mistério e em sua precariedade.
São Santas Doutoras e Reformadoras
Razões mais práticas confirmam a nossa escolha dessa constelação de mestras espirituais. Duas já foram declaradas Doutoras pela Igreja: Catarina de Sena e Teresa d’Ávila bem merecem essa distinção pioneira, que é o começo da reparação de uma longa e triste injustiça histórica. Santa Teresinha a consagrou, logo após a sua morte, como a mais segura e graciosa Doutora espiritual. Isabel da Trindade e Edite Stein, seguidoras e irmãs espirituais de Teresinha, deixaram-nos escritos densos e claros e uma doutrina de grande atualidade e profundeza.
Dispomos assim de um conjunto doutrinal coerente e acessível, bem como de uma constelação de doutoras, muito unidas e muito originais em suas vidas e em seus ensinos.
Finalmente, o critério mais decisivo ainda. Selecionamos aquelas que melhor conhecemos e que parecem exercer alguma fascinação sobre quem as conhece.
Singela homenagem às esquecidas ou ocultadas
Na América Latina e em nosso país, verificamos a mesma lei da presença escondida ou ocultada das Santas Doutoras, à semelhança do que se passou nas comunidades apostólicas e patrísticas. O imaginário piedoso e artístico dos tempos coloniais parece sugestivo. Deixou em nossas velhas igrejas uma imagem muito simbólica: Santa Ana, sentada, com a Bíblia aberta sobre os joelhos, ensinando à sua filhinha, Maria, os caminhos de Deus e da vida.
É a condensação do grande processo histórico de transmissão da fé, da catequese e da espiritualidade do nosso povo. As “Mães e Mestras da Igreja” lá estavam, qual força tranquila do amor, suprindo as falhas e ausências das estruturas eclesiásticas precárias, embora sempre mais vistosas.
Símbolo da espiritualidade feminina, de amor contemplativo e de serviço dos pobres é a leiga (dominicana) Santa Rosa de Lima (1586-1617).
Bem que gostaríamos de desdobrar a ladainha, evocando algumas mestras de espiritualidade em nossos dias. É mais fácil lembrar aquelas que escreveram: uma Simone Weil (1909-1943), pensadora, profundamente religiosa e comprometida com os graves problemas humanos de nosso tempo. Ou Gertrude von Lefort (1876-1971). Convertida em 1926, difundiu na Alemanha e pelo mundo a mensagem da graça, da contemplação e da missão espiritual da mulher no mundo moderno. E um estilo mais popular, Madalena Delbrêl (1904-1964). Está aí uma espiritual militante, empenhada na vida de oração e no apostolado em meio operário, ao lado do Padre Loew. São pioneiras na preparação do Vaticano II, o conceito libertador, grandemente emperrado, infelizmente, pelo egoísmo clerical e masculino.
Paradigma feminino
Em clima de discrição e de luta, vê-se, assim, emergir, através da história, um paradigma feminino de santidade, de contemplação e de dom de si no serviço e no apostolado.
Ele tem algo de essencial e permanente, que jorra da própria Palavra e se nutre da graça do Espírito. É o primado da fé vivida no segredo, no dia a dia, no encontro com Deus, fonte e objeto constante de amor. Ele é reconhecido no rosto do próximo e na intimidade de uma oração, que cola com as miudezas da existência cotidiana.
Esse paradigma continua comprometido por falhas e imposições, vindas do caráter demasiado masculino da sociedade e da Igreja. Lembrar as “Santas Doutoras” é exaltar esse paradigma feminino de santidade e contemplação, no que ele tem de evangélico. E é também ter a coragem de proclamar quão necessária e urgente é a verdadeira libertação da mulher, em relação a todo machismo social, cultural e espiritual.
Hoje, a emancipação e a promoção da mulher têm tudo a ganhar indo ao encontro das “Santas Doutoras”. A felicidade passa por essa corrente de fidelidade radical ao Evangelho inspirando audácia crítica e inovadora diante das rotinas da cristandade. E por que não dizer? Temos que contar com a força tranquila da mulher, para nos opormos à sedutora globalização consumista e concentracionária, devastadora da terra, exploradora e opressora dos pobres.
Artigo publicado na Revista Grande Sinal, revista de espiritualidade da Província da Imaculada Conceição do Brasil, editada pela Ed. Vozes
Frei Carlos Josaphat nasceu no dia 4 de novembro de 1921, em um Vilarejo chamado Patos, Patos do Abaeté. Ingressou no Seminário Menor de Diamantina (MG) aos 12 anos. Depois foi para Petrópolis fazer os estudos de Filosofia e Teologia, até sua ordenação sacerdotal em 08.12.1945. É doutor em Teologia, professor emérito da Universidade de Friburgo, na Suíça, onde por 27 anos ensinou uma ética de inspiração evangélica no prolongamento de Tomás de Aquino. Na sua vida universitária, em seus escritos, em diversos encontros e múltiplas conferências a preocupação de Frei Carlos se concentra nos problemas sociais, nos desafios éticos, da civilização científica e tecnológica especialmente as relações da ética e do cristianismo com os desafios da modernidade e da pós-modernidade. É o que se vê pela análise de suas principais obras publicadas no Brasil e no Exterior. Aos 96 anos, está em plena atividade.
(1) Tal é, em substância, o conteúdo da “Questão 92”, da 1ª Parte da Suma Teológica de Santo Tomás. Em tennos equivalentes, ela é colocada pelos mestres e doutores medievais, que prolongavam a problemática de Santo Agostinho, em seu Comentário literal do Gênesis.
(2) Assumimos e prolongamos a noção de paradigma de Tomás Samuel KUHN, em: “The Structure of Scientific Revolutions”, Chicago, University of Chicago Press, 1962. Ed. MORIN aplica e alarga essa teoria em diferentes estudos. Referimo-nos especialmente a “Le paradigme perdu: la nature humaine” (1975); “La méthode. La nature de la nature” t. 1 (1977); t. 2: “La vie de la vie” (1980), todos da Ed. du Seuil, Paris. Essas e outras obras de Ed. MORIN se encontram em tradução portuguesa, na Coleção Biblioteca Universitária. Publicações Europa-América, Mem Martins, Portugal.
(3) O Apóstolo Paulo proclamará o grande princípio fundador, renovador e unificador: “Batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo. Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher. Todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl 3,27-28).
(4) Veja-se o I Volume desta coleção, com o mesmo título, do Padre Marcelo Rezende Guimarães. Ed. Vozes. Petrópolis 1994.
(5). Ver S. GREGÓRIO DE NISSA, “Vida de Santa Macrina”, na coleção “Sources chrétiennes”, nº 170. Ed. du Cerf, Paris.
(6) Consulte-se, na mesma coleção, citada na nota precedente, nº 90: “Vida de Santa Melânia”.
(7) Ler, nas “Confissões” de SANTO AGOSTINHO, Livro VI, nº 25, a história, apenas delineada, daquela que mostrou ao jovem Agostinho um amor total, prefigurando a atitude de Heloísa diante de Abelardo. Em português, pode-se recorrer à tradução de Maria Luiza Jardim Amarante, Ed. Paulinas, 5ª ed., 1984, p. 154.
(8) Cf. TERESA DE JESUS, “Vida”, cap. 3. nº 7; “Obras Completas”, Ed. Loyola 1995. p. 36.
(9) O texto e a apresentação de sua “Peregrinação” se encontram na coleção patrística citada na nota 2, nº 21.
(10) REGINA PERNOUD, “La femme au temps des cathédrales” (1980) e “La femme au temps des croisades” (1990), ambos pela Ed. Stock, Paris. Conhecemos a tradução do segundo livro: “A mulher no tempo das cruzadas”, Papirus Editora, Campinas, SP, 1993.
(11) Não se estranhe o emprego insistente que fazemos do termo “machismo”. Ele já vem consagrado pelo uso do Papa João Paulo II, desde a Exortação apostólica “Familiaris consortio”, de 22/11/81, nº 25.