Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Antoine de Saint-Exupéry, a vida do espírito e a ética da Terra

04/02/2016

principe

Leonardo Boff

Se é verdade que os transtornos climáticos são antropogênicos, quer dizer, possuem sua gênese nos comportamentos irresponsáveis dos seres humanos (menos dos pobres e muito mais das grandes corporações industriais), então fica claro que a questão é antes ética do que científica. Vale dizer, a qualidade de nossas relações para com a natureza e para com a Casa Comum não eram e não são adequadas e boas.

Citando o Papa Francisco em sua inspiradora encíclica Laudato Si: sobre o cuidado da Casa Comum” (2015): “Nunca maltratamos e ferimos a nossa Casa Comum como nos últimos dois séculos… Essas situações provocam os gemidos da irmã Terra, que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo”(n.53).

Esse outro rumo implica, urgentemente, uma ética regeneradora da Terra. Esta ética deve ser fundada em alguns princípios universais, compreensíveis e praticáveis por todos. É o cuidado essencial, que é uma relação amorosa para com a natureza; é o respeito por cada ser porque possui um valor em si mesmo; é a responsabilidade compartida por todos pelo futuro comum da Terra e da humanidade; é a solidariedade universal pela qual nos entreajudamos; e, por fim, é a compaixão pela qual fazemos nossas as dores dos outros e da própria natureza.

Esta ética da Terra deve devolver-lhe a vitalidade vulnerada afim de que possa continuar a nos presentear com tudo o que sempre nos presenteou durante todos os tempos de nossa existência sobre este planeta.
Mas não é suficiente uma ética da Terra. Precisamos fazê-la acompanhar por uma espiritualidade. Esta lança suas raízes na razão cordial e sensível. De lá nos vem a paixão pelo cuidado e um compromisso sério de amor, de responsabilidade e de compaixão para com a Casa Comum.

O conhecido e sempre apreciado Antoine de Saint-Exupéry, num texto póstumo, escrito em 1943, Carta ao General “X” afirma com grande ênfase: “Não há senão um problema, somente um: redescobrir que há uma vida do espírito que é ainda mais alta que a vida da inteligência, a única que pode satisfazer o ser humano” (Macondo Libri 2015, p. 31).

Num outro texto, escrito em 1936, quando era correspondente do “Paris Soir”, durante a guerra da Espanha, leva como título “É preciso dar um sentido à vida”. Aí retoma o tema da vida do espírito. Para isso, afirma, “precisamos nos entender reciprocamente; o ser humano não se realiza senão junto com outros seres humanos, no amor e na amizade; no entanto, os seres humanos não se unem apenas se aproximando uns dos outros, mas se fundindo na mesma divindade. Temos sede, num mundo feito deserto, sede de encontrar companheiros com os quais condividimos o pão” (Macondo Libri 2015, p.20). E termina a Carta ao General “X”: “Temos tanta necessidade de um Deus”(op.cit. 36).

Efetivamnte, só a vida do espírito satisfaz plenamente o ser humano. Ela representa um belo sinônimo para espiritualidade, não raro identificada ou confundida com religiosidade. A vida do espírito é mais, é um dado originário de nossa dimensão profunda, um dado antropológico como a inteligência e a vontade, algo que pertence à nossa essência.

Sabemos cuidar da vida do corpo, hoje um verdadeiro culto celebrado em tantas academias de ginástica. Os psicanalistas de várias tendências nos ajudam a cuidar da vida da psique, de como equilibrar nossas pulsões, os anjos e demônios que nos habitam para levarmos uma vida com relativo equilíbrio.

Mas na nossa cultura, praticamente, esquecemos de cultivar a vida do espírito que é nossa dimensão mais radical, onde se albergam as grandes perguntas, se aninham os sonhos mais ousados e se elaboram as utopias mais generosas. A vida do espírito se alimenta de bens não tangíveis como é o amor, a amizade, a compaixão, o cuidado e a abertura ao infinito. Sem a vida do espírito divagamos por aí, desenraizados e sem um sentido que nos oriente e que torna a vida apeticida.
Uma ética da Terra não se sustenta sozinha por muito tempo sem esse supplément d’ame que é a vida do espírito. Ela nos convoca para o alto e para ações salvadoras e regeneradoras da Mãe Terra.

Leonardo Boff é ecoteólogo e escreveu “Saber cuidar: ética do humano-compaixão pela Terra”, Vozes 1999.

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