Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

A vocação e o testemunho dos Protomártires do Marrocos e do jovem Fernando de Bulhões

03/07/2020

                                                                                                                                                                                                     Imagem: Piero Casentini

Victor Mariano Camacho

Na primeira metade do século XIII, diante do ímpeto das Cruzadas, o Cristianismo volta a valorizar mais do que nunca a santidade conquistada pelo martírio. Entretanto, a morte heroica em defesa da fé católica não seria mais aquela sofrida durante a perseguição do Império Romano, mas em decorrência do embate contra os muçulmanos. Enquanto entre os cavaleiros se promovia o conflito bélico, entre os religiosos a palma do martírio deveria vir por meio da pregação no Oriente.

Embora em diversos momentos o Papado apelasse pela cautela em relação à busca do martírio, durante o século XIII, com os movimentos de Vita Apostolica que ansiavam pelo retorno a um Cristianismo aos moldes do início da missão dos apóstolos, religiosos e até mesmo leigos se lançavam em terras conquistadas pelos muçulmanos com o intuito de, por meio do martírio, obterem a santidade.

Entre os Frades Menores, Ordem cuja forma de vida proposta pelo jovem Francisco Bernadone da cidade de Assis, aprovada por volta de 1209 pelo Papa Inocêncio III, não foi diferente. Aqueles que abraçavam a vida de austeridade, desapego e itinerância ansiavam obter a santidade por meio do seguimento ao Evangelho que também englobava entregar a vida pela fé em Cristo até as últimas consequências.

A Ordem de irmãos menores e penitentes se expandiu por várias regiões da Europa e logo buscou também promover missões entre os muçulmanos. O próprio Francisco chegou a ter contato com os sarracenos em 1219 durante sua viagem ao Egito, porém, em 1220, cinco minoritas tiveram outra experiência missionária, mas que desta vez culminou com o martírio. O episódio contribuiu também para o estabelecimento das primeiras fraternidades franciscanas em solo português.

A tradição do século XVI, narrada nas crônicas do português Frei Marcos de Lisboa, informa que no ano anterior ao estabelecimento dos frades em Portugal, em um Capítulo Geral, seis religiosos – Vital, Bernardo, Pedro, Adjunto, Otto e Acúrsio – teriam sido enviados ao Marrocos, a fim de pregarem a fé católica aos sarracenos. O primeiro deles, Frei Vital, que havia sido designado como o guardião da missão, adoeceu em Aragão, mas os outros cinco seguiram viagem. No caminho foram recebidos em Coimbra pela Rainha Urraca. Os frades se dirigiram para Sevilha, onde teriam pregado publicamente aos muçulmanos. O sultão os expulsou, enviando-os ao Marrocos.

Em Marrakesh, os missionários teriam se hospedado na casa do português Dom Pedro, que era irmão do Rei Afonso II. Novamente pregaram diante dos mouros e, após serem expulsos pelo califa, teriam retornado ao Marrocos, onde novamente proferiram exortações publicamente. Após serem despidos e surrados pela população local, foram decapitados. A monarquia portuguesa logo fomentou a devoção aos mártires minoritas. Desta forma, o Infante D. Pedro suplicou aos mouros que lhe entregassem os restos mortais dos religiosos mortos no Marrocos e os enviassem a Portugal.

O fato marca, portanto, a fundação das primeiras fraternidades franciscanas em Portugal. O estabelecimento da Ordem em Coimbra tem início a partir da doação de um antigo hospital de acolhimento de peregrinos dedicado a Santo Antão, em Olivais, pela Rainha Urraca, esposa de Afonso II. A fama e o testemunho daqueles homens simples despertaram a vocação de diversos jovens portugueses, sendo um dos primeiros o cônego regrante Fernando Martins de Bulhões.

O jovem Fernando, nascido em Lisboa, no seio de uma família abastada, já na infância estudou na Sé de sua cidade natal. Depois, tornou-se cônego ao ingressar no mosteiro de São Vicente e, após passar um tempo nesta casa, solicitou a sua transferência para o mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra. Embora tivesse tido uma formação teológica sólida, ao que parece, o lisboeta era um sonhador, muito mais do que ser religioso e presbítero, desejava ser santo, o que o fez solicitar a dispensa dos seus superiores para então ingressar na Ordem dos Frades Menores.

Concedida a dispensa, fez seu noviciado entre os minoritas no Mosteiro de Santo Antão, onde alterou seu nome para Antônio e, em seguida, lançou-se em uma missão no Oriente para que, assim como os cinco confrades martirizados no Marrocos, ele também pudesse alcançar a santidade por meio da defesa da fé cristã. A sua tentativa, entretanto, mostrou-se frustrada devido a uma enfermidade no percurso da sua viagem e uma tormenta que fez com que sua embarcação rumasse para o Sul da Península Itálica. Depois disso, vai para o Norte da região onde viveria o resto de sua breve vida.

Antônio, depois de Francisco e Clara, um dos maiores santos da família franciscana, provavelmente pouco contato teve com o Poverello de Assis. Ao que tudo indica, existe a possibilidade de terem se encontrado brevemente por ocasião do Capítulo Geral de 1221 em que o frade português estivera presente. Talvez, Antônio tenha tido conhecimento da Ordem onde acabara de ingressar muito mais por meio do martírio dos seus irmãos do Marrocos do que propriamente pela figura do assisense. Contudo, o que é necessário destacar em sua vida é a providência de Deus.

Se os cinco frades não tivessem passado por Portugal em sua viagem ao Oriente, talvez Antônio continuasse cônego e provavelmente morreria com o nome de Fernando. No entanto, a vocação e os desígnios de Deus não se explicam. O fato é que, em 1220, ele vestiu o hábito simples em forma de cruz e abraçou a forma de vida evangélica aos moldes de Francisco.

Como frade menor, Antônio contribuiu para a formação intelectual de seus confrades e aprimorou a ação pastoral dos religiosos da Ordem: lecionou noções elementares de Teologia na casa de estudos gerais em Bolonha, instruindo aqueles que fossem pregar (uma exigência do papado). Outra contribuição foram seus Sermões Dominicais e Festivos para todo o ano litúrgico que serviram de manuais de pregação para os minoritas.

Depois de desempenhar a função de custódio em Limognes, no Sul da França, pregando em diversas missões promovidas pelo papado na região, seus últimos dias de vida transcorreram em Pádua, no Norte da Península Itálica, onde pregou intensamente durante a Quaresma de 1231, vindo a falecer prematuramente em junho do mesmo ano.

Se não alcançou sua santidade no Oriente, assim como os cinco Protomártires do Marrocos, Antônio deu sua vida ao Evangelho, consumindo não só a sua mente, mas também seu corpo. Com uma saúde frágil, morreu aos 36 anos, aclamado pelo povo de Pádua como santo, o que fez o Papa Gregório IX reconhecê-lo como tal em menos de um ano.

Hoje, um dos santos mais famosos e populares da Igreja e uma das figuras mais importantes da Família Franciscana, Antônio, outrora Fernando, nos ensina que nem sempre é possível que tudo o que foi planejado em nossa vida se concretize. Propósitos e desejos são necessários, pois são essenciais para manter viva a chama da vocação. Todavia, vocação nada mais é que se entregar à vontade de Deus para que sejamos operários na edificação do seu Reino.

Victor Mariano Camacho
Doutorando em História Comparada pela UFRJ

Para saber mais:

GRANDON, Patrício. Santo Antonio nas Fontes Franciscanas e sua inserção no pauperismo evangélico-minorítico das origens. In: FILHO, Joaquim Mamede (ed). Antônio, homem evangélico na América Latina. Santo André: O Mensageiro de Santo Antônio, 1996.
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VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental. Lisboa: Estampa, 1995.
VITA PRIMA DI S. ANTONIO, o “Assidua” (c. 1232). Padova: Edizioni Messagero, 1981.

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