Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

A porção feminina de Deus

04/09/2014

maria_deus

Leonardo Boff

                        Certa madrugada insone, retomei meu  trabalho costumeiro ao computador. De repente, pretendi ter ouvido, não sei se do mundo celestial ou se de minha mente em  estado alterado, uma voz, em forma de sussuro, que me dizia: “Filho, vou te revelar uma verdade que estava sempre lá, no meu evangelista Lucas, mas que os olhos dos homens, cegados por séculos de patriaracalismo  não podiam enxergar”.

“Trata-se da relação íntima e inefável entre Maria e o Espírito Santo”. E a vozcontinuava sussurrando: “Aquele que é terceiro, na ordem da Trindade, o Espírito Santo, é o primeiro na ordem da criação. Ele chegou antes  ao mundo; só depois veio o Filho de Deus. Foi o Espírito Santo, aquele mesmo que pairava sobre o caos primitivo e que de lá tirou todas as ordens da criação. Pois desse Espírito Criador, se diz pelo meu evangelista Lucas: “virá sobre ti, Maria, e armará sua tenda sobre ti; por isso, o Santo gerado será chamado Filho deDeus”. “Armar a tenda”, como sabes, significa morar definitivamente. Se Maria, perplexa, não tivesse dito o seu “sim”, faça-se segundo a tua palavra, o Filho não ter-se-ia encarnado e o Espírito não ter-se-ia feminilizado”.

“Vede, filho, o que lhe estou dizendo: o Espírito veio morar definitivamente nesta mulher, Maria. Identificou-se com ela, se uniu a ela de forma tão radical e misterirosa que dela começou a se plasmar a santa humanidade de Jesus. O Espírito de vida produziu a vida nova, o homem novo, Jesus. Para ti e para todos os fiéis é claro que o masculino através do homem Jesus de Nazaré foi divinizado. Agora, vá lá no evangelho de São Lucas e constatarás que também o feminino, através de Maria de Nazaré, foi divinizado pelo EspíritoSanto.  Ele armou sua tenda, quer dizer, veio morar para sempre nela. Repare que meu evangelista João diz o mesmo doFilho:  ‘Ele armou sua tenda em Jesus”.

“Não é o Espírito”, sussura a mesma voz, “que toma o profeta para alguma missão específica e cumprida, termina sua presença nele. Com Maria é diferente. Ele vem, fica e não a deixa mais. Ela é elevada à altura do Divino Espírito Santo. Daí que logicamente, ‘o Santo gerado será chamado Filho  de Deus’. Somente quem foi elevado à altura de Deus pode gerar um Filho de Deus. É o caso de Maria. Não sem razão, é a “bendita entre as mulheres”.

“Filho, eis uma verdade que deves anunciar:  por Maria Deus mostrou que além de ser Deus-Pai é também Deus-Mãe com as características do feminino: o amor, a ternura, o cuidado,  a compaixão e a misericórdia. Estas virtudes estão também nos homens, mas elas encontram uma  expressão mais visível nas mulheres”.

“Filho: ao dizeres Deus-mãe descobrirás a porção feminina de Deus com todas as virtudes do feminino. Não deves esquecer nunca que as mulheres jamais traíram Jesus.Foram-lhe fiéis até ao pé da cruz. Enquanto os homens, os discípulos, fugiram, Judas o traiu e Pedro o negou, elas mostraram um amor fiel até o extremo. Elas, antes dos apóstolos, foram as primeiras a testemunharem a ressurreição de Jesus, o fato maior da história da salvação”.

“O feminino de Deus não se esgota em sua maternidade, mas se revela no que há de intimidade, de amorosidade, de gentileza e de sensibilidade, perceptíveis no feminino”.

“Não permita que ninguém, por nenhuma razão, discrimine uma mulher por ser mulher. Aduza todas as razões para respeitá-la e amá-la, pois ela revela algo de Deus que somente ela pode fazer, sendo junto com o homem, a minha imagem e semelhança. Reforce suas lutas, recolha as contribuições que traz para toda a sociedade, para as Igrejas e para um equilíbrio entre homens e mulheres. Elas são um sacramento do Deus-Mãe para todos, um caminho que os leva à ternura  de Deus. Oxalá as mulheres assumam sua porção divina, presente numa companheira delas, em Maria de Nazaré. Mas o dia virá em que cairão as escamas que encobrem seus olhos. E  então, homens e mulheres, nos sentiremos também divinizados pelo Filho e pelo Espírito Santo”.

Ao voltar a mim, senti na clareza de minha mente, o quanto de verdade me tinhasido comunicado. E comovido, enchi-me de louvores e de ações de graça.


Leonardo Boff, teólogo e escritor, escreveu  O rosto materno de Deus, Vozes 1999.

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