Leonardo Boff
Como celebrar a páscoa, a vitória da vida sobre a morte, mais ainda, a irrupção do homem novo, no contexto de uma sexta-feira santa de paixão, dor e morte, que não sabemos quando acaba, sob o ataque do coronavírus à toda a humanidade?
Pesarosos, mesmo dentro desta pandemia, cabe celebrar a páscoa com reservada alegria. Ela não é apenas uma festa cristã mas responde a uma das mais ancestrais utopias humanas: o irromper do homem novo.
Sempre houve em todas as culturas conhecidas, desde a antiga epopeia mesopotâmica de Gilgamés, passando pelo mito grego de Pandora e chegando à utopia da Terra sem Males dos tupi-guarani a percepção de que o ser humano, assim como o conhecemos, deve ser superado. Ele não está pronto. Ainda não acabou de nascer. O verdadeiro homem está latente dentro dos dinamismos da cosmogênese e da antropogênese. Comparece como um projeto infinito, portador de potencialidades incontáveis que forcejam por irromper. Intui que só será plenamente homem, então, o homem novo, quando tais potencialidades se realizarem em plenitude.
Todos os seus esforços, por maiores que sejam, esbarraram numa barreira intransponível: a morte. Mesmo o mais velho, chega o dia em que vai também morrer. Alcançar uma imortalidade biológica, conservadas as atuais condições espacios-temporais, como alguns propõem, seria um verdadeiro inferno: buscar realizar o infinito dentro de si e encontrar apenas finitos que nunca o saciam. Sempre está na espera. Talvez o espírito mataria o corpo para poder realizar o infinito de seu desejo.
Mas eis que um homem se levanta na Galileia, Jesus de Nazaré e proclama: “O tempo da espera se esgotou. Aproximou-se a nova ordem a ser introduzida por Deus. Revolucionai-vos em vosso modo de pensar e de agir. Crede nessa alvissareira notícia” (cf. Mc 1,15: Mt 4,17).
Conhecemos a saga trágica do profético Pregador: “Veio para o que era seu e os seus não o receberam” (Jo 1.11). Ele que “passou pelo mundo fazendo o bem” (At 10,39) foi rejeitado e acabou pregado na cruz.
Mas eis que três dias após, mulheres foram, bem de madrugada, ao sepulcro e ouviram uma voz: “Por que procurais entre os mortos, quem está vivo? Jesus não está aqui. Ressuscitou” (Lc 24,5; Mc 16,6).
Eis o fato novo e sempre esperado: a alvissareira notícia se realizou. De um morto emergiu um ressuscitado, um ser novo. É o sentido da páscoa, a festa central do Cristianismo. Seus seguidores logo entenderam que o Ressuscitado era a realização do sonho ancestral da humanidade: acabou a espera. Agora é o tempo da vida plena sem a morte. Liberto do espaço e do tempo e dos condicionamentos humanos, o Ressuscitado aparece, desaparece, está presente com os andantes de Emaús, se mostra na praia e come com os apóstolos e é reconhecido ao partir o pão.
Os Apóstolos não sabem como defini-lo. São Paulo, o maior gênio do pensamento cristão, escolheu a palavra certa: “Ele é o Adão novíssimo” (1 Cor 15,45). O Adão não mais submetido à morte mas aquele que deixou para trás o velho Adão mortal.
Como que zombando, provoca São Paulo: “Ó morte, onde está a tua vitória? Onde está o espantalho com o qual amedrontavas os homens? A morte foi tragada pela vitória de Cristo (1Cor 15m55). Define-o como sendo “um corpo espiritual” (1 Cor 15,44), vale dizer, é concreto e reconhecível como o corpo humano, mas de forma diferente, com as qualidades do espírito. O espírito possui uma dimensão cósmica. Está no corpo, mas também nas estrelas mais distantes e no coração de Deus. O espiritual é entendido também como a maneira de ser própria do Espírito Santo. Ele está em tudo, move todas as coisas e enche o universo.
Um texto antigo, dos anos 50, do evangelho de São Tomé, diz belamente: “Levante a pedra e eu estou debaixo dela, rache a lenha e eu estou dentro dela, pois estarei convosco todos os dias até a plenitude dos tempos”. Levantar uma pedra exige força, cortar lenha demanda esforço. Mesmo aí está o Ressuscitado, nas coisas mais comezinhas de nosso cotidiano.
Em suas epístolas, especialmente aos Efésios e aos Colossenses, São Paulo desenvolve uma verdadeira cristologia cósmica. Ele “é tudo em todas as coisas” (Col 3,12); “a cabeça de todas as coisas” (Ef 1,10). O mesmo dirá,no século XX, na linguagem da moderna cosmologia, o palentólogo e pensador Pierre Teilhard de Chardin.
Devemos compreender corretamente a ressurreição. Não se trata da reanimação de um cadáver, como aquele de Lázaro que voltou ao que era antes e acabou morrendo. Ressurreição é a realização plena de todas as potencialidades abscônditas dentro da realidade humana. A morte não possui nenhum domínio mais sobre ele. Efetivamente é o nascimento terminal do ser humano, como se ele tivesse chegado na culminância do processo evolutivo ou o tivesse antecipado. Na forte expressão de Teilhard de Chardin, o Ressuscitado explodiu e implodiu para dentro de Deus.
A páscoa é a inauguração do homem novo, plenamente realizado. Vale para todos os humanos. Portanto, tal evento bem-aventurado não é exclusivo de Jesus. São Paulo nos assegura que nós participamos desta ressurreição: “Ele é as primícias (a antecipação) dos que morrem” (1Cor 5,20), “o primeiro entre muitos irmãos e irmãs” (Rom 8,29).
À luz desta festa pascal podemos dizer que a alternativa cristã é esta: ou a vida ou a ressurreição. Alegremente afirmamos e reafirmamos: não vivemos para morrer; morremos para ressuscitar.
Leonardo Boff é teólogo e escreveu A ressurreição de Cristo e a nossa ressurreição na morte, Vozes, muitas edições 2012.