Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

A partir da pequena porção chamada Porciúncula

02/08/2023

A partir da pequena porção – GENEROSIDADE

 “Queridos irmãos e filhinhos meus, vejo que o Senhor quer nos multiplicar; por isso acho coisa boa e religiosa adquirir do bispo ou dos cônegos de São Rufino, ou do abade do mosteiro de São Bento, alguma igreja pequena e pobrezinha onde os frades possam dizer suas Horas, e ter, junto dela, só alguma casa pequena e pobrezinha, construída de barro e ramos, onde os frades possam descansar e cuidar de trabalhos conforme as suas necessidades. (…) O abade ficou com pena, fez uma reunião sobre o assunto com seus irmãos e, como foi da vontade de Deus, concederam ao bem-aventurado Francisco e aos seus frades a igreja de Santa Maria da Porciúncula, a mais pobre que tinham. Também era a mais pobrezinha do que qualquer outra que havia nos arredores de Assis; o que fazia tempo que o bem-aventurado Francisco desejava. (…) O bem-aventurado Francisco ficou muito contente com o lugar concedido aos irmãos e principalmente porque a igreja tinha o nome da Mãe de Cristo, era uma igreja tão pobrezinha, e também pelo apelido que tinha, Porciúncula (…) E embora o abade e os monges tivessem concedido livremente ao bem-aventurado Francisco e a seus frades aquela igreja sem nenhuma exigência ou pagamento anual, todavia o bem-aventurado Francisco, como um bom e experimentado mestre que quis edificar sua casa sobre a pedra firme, isto é, a sua congregação sobre a grande pobreza, mandava todos os anos ele mesmo um cestinho cheio de peixinhos chamados lascas como sinal da maior humildade e pobreza” (cf. Compilação de Assis 56).

As Fontes Franciscanas conservaram a memória agradecida da primitiva Fraternidade Franciscana que, anualmente, levava um cesto de peixes aos monges beneditinos como forma de retribuir sua generosidade, cuidado e confiança traduzidas na cessão de um local para que os frades pudessem, como diz a legenda, “descansar e cuidar dos trabalhos”. A oferta do cesto de peixes foi revivida no último dia 11 de julho, Festa Litúrgica da Memória de São Bento, na cidade do Rio de Janeiro. Irmãos da fraternidade do Convento Santo Antônio se dirigiram ao Mosteiro de São Bento, o terceiro a ser construído no Brasil pela família beneditina no ano de 1592, depois de Salvador (1582) e de Olinda (1586).

Os frades foram acolhidos com fraterna amizade e lá ouviram do Abade a promessa de que no próximo dia de São Francisco (04/10) será a vez dos monges retribuírem a visita e levarem, como o estabelecido costume, um pouco de azeite para a Fraternidade do Largo da Carioca. O mesmo movimento se dá a partir da Fraternidade do Convento São Francisco, na cidade de São Paulo. Na frenética capital dos paulistas, os frades deixam o Convento do Largo São Francisco e descem até o Mosteiro de São Bento e repetem o gesto da entrega dos peixes, sinal de reconhecimento e gratidão.

A recordação deste singelo compromisso, proporciona o reencontro com um dos momentos mais significativos da história do Movimento Franciscano. Antes de se reportar ao Abade beneditino, Francisco havia pedido auxílio ao Bispo e aos Cônegos de São Rufino; ambos não atenderam ao pleito do Poverello. O Abade, por sua vez, compadeceu-se e fez um pedido a Francisco: “Irmãos, nós atendemos o que pediste; mas queremos que, se vossa congregação se multiplicar, este lugar seja a cabeça de todos vós”. O Movimento Franciscano se robusteceu e a Porciúncula passou a ser o lugar de referência para todos os que buscam fazer da sua vida a tradução eloquente do Evangelho de Nosso Senhor, conforme a inspiração de São Francisco de Assis.

A partir da pequena porção – FECUNDIDADE

Além de acolher os primeiros irmãos, nessa mesma porciúncula, Clara, depois daquele Domingo de Ramos, foi acolhida pelos frades e, ao ter seus cabelos cortados, iniciou seu vigoroso itinerário de consagração e aderiu ao modo de vida evangélica ali iniciado. Também se diz que os primeiros leigos a seguirem a vocação franciscana secular, o casal Luquésio e sua esposa Buonadona, partiram da Porciúncula para anunciar a todos a Paz e o Bem. Por isso, deste lugar se diz “é o fecundo berço da Ordem Franciscana”.

Ser o nascedouro do Movimento Franciscano já faria da celebrada igreja um lugar de destaque. Mas a história reservou a ela muito mais. Antes de ser casa dos franciscanos, já era casa da Mãe de Deus, a Senhora dos Anjos.  Ninguém sabe ao certo como a igreja foi construída. Diz-se que foi erguida por peregrinos que voltavam da Terra Santa e haviam trazido de lá algumas pedras da casa de Nossa Senhora, e tais pedras teriam sido usadas na construção. Outros tantos afirmam que, nalguns momentos, anjos podiam ser vistos por ali; eles vinham do céu e se juntavam aos louvores e preces que a partir daquele lugar sagrado clamavam a intercessão de Nossa Senhora.

Os anjos são a comunicação do próprio Deus. Os anjos, em coros, também indicam os mais elevados louvores à divindade. Foi um anjo que ouviu o sim de Maria, quando ela recebeu o convite para ser a Mãe do Salvador.  Foram os anjos que, com alegria e festa, acolheram Maria no céu de corpo e alma, depois de tanta fidelidade vivida aqui na terra. A mãe pobre, do Cristo pobre sempre teve a companhia dos anjos. O jeito do céu e seus anjos cuidarem da vida da Mãe do Salvador evidencia a predileção de Deus pelos pequeninos e por aqueles que, com liberdade, fazem a sua vontade. A postura obediente de Maria, a Virgem do Sim, e a pobreza por ela experimentada, encantavam a São Francisco. Por isso, o santo de Assis, que não queria ter nesta terra propriedade qualquer, não se aborreceu por sua Fraternidade ter feito morada na casa de Santa Maria dos Anjos. A legenda registrou seu contentamento: “O bem-aventurado Francisco ficou muito contente com o lugar concedido aos irmãos e principalmente porque a igreja tinha o nome da Mãe de Cristo, era uma igreja tão pobrezinha, e também pelo apelido que tinha”. Ainda mais, afirmava “o Senhor aí mostrou e lhe foi revelado nesse lugar, que a Bem-aventurada Virgem ama esta igreja mais do que todas as outras igrejas desde mundo que ela ama” (cf. CA 56).

Por ter em conta que Santa Maria dos Anjos era “forma e exemplo de toda a religião”, Francisco dizia que os irmãos nunca deveriam abandonar a Porciúncula e, se um dia, fossem expulsos pela porta, deveriam retornar pelas janelas. Ordenar aos frades para não arredarem o pé de Santa Maria dos Anjos é afirmar que para não esquecer onde se quer chegar, é mister ter sempre presente o ponto de partida. Não abandonar Santa Maria é ter, constantemente, diante dos olhos o exemplo de pobreza e fidelidade da Mãe do Senhor, e confiar na sua materna intercessão. Estar na Porciúncula é regar com diligência a flor que desabrochou no coração dos que desejam viver o Evangelho de Nosso Senhor.

Santa Maria dos Anjos é lugar original. Santa Maria dos Anjos é fonte revigorante. Por isso, num momento de oração nesta igrejinha, São Francisco de Assis foi inspirado a pedir que Santa Maria dos Anjos fosse também lugar do perdão: então ele disse “peço que a todos quantos arrependidos e confessados, venham visitar esta igreja, lhes seja concedido amplo e generoso perdão, com uma completa remissão de todas as culpas”. O perdão reconstitui os laços que nos unem a Deus. O perdão tem o dom de nos devolver a integridade original. O perdão tem o condão de esvaziar nosso coração da inveja, da ganância, da intolerância, da violência, do desânimo, do medo, da mentira e da morte. O perdão é dom que revigora em nós a capacidade de recomeçar sempre de novo.

A partir da pequena porção – RECOMEÇO

A integridade genuína, o esvaziamento e a capacidade de retomar a caminho não se constituem como faces daquela convocação apresentada por Francisco em seu Testamento: “Comecemos, irmãos, pois até agora pouco ou nada fizemos”? A vida da pobreza vivenciada e proposta pelo Movimento Franciscano é a via do perdão. Destarte, muito oportunamente, a celebração da Porciúncula, que fala das origens franciscanas, se associa à celebração do Perdão de Assis. Ao pedir ao Santo Padre que a Porciúncula pudesse ser lugar dispensador das mesmas indulgências auferidas seja em Roma, seja na Terra Santa que, por distância e insegurança do caminho impediam os pobres de alcançá-las, Francisco descortina novo horizonte de compreensão e vivência da relação pobreza e perdão.

A escolha pela pobreza deveria luzir com intensidade em todos os âmbitos da vida da Fraternidade. A forma de vestir, o jeito de trabalhar, e até as habitações deveriam falar da escolha fundamental pelo seguimento do Cristo pobre. Por isso, ao se estabelecer em Santa Maria, o grupo dos frades pôde ver contemplado aquilo que desde sempre pretendeu: “Também era a mais pobrezinha do que qualquer outra que havia nos arredores de Assis; o que fazia tempo que o bem-aventurado Francisco desejava”.

A partir da Porciúncula os irmãos foram tecendo relacionamentos que deram corpo à sua forma de vida. A partir da igreja que tinha o nome da Mãe de Cristo, aquela igreja tão pobrezinha conhecida pelo apelido de Porciúncula, a primitiva comunidade passou a constituir-se como Ordem, como os verdadeiros “Cavaleiros da Dama Pobreza”, arautos do perdão e da reconciliação.

A partir da pequena porção – SEM NADA DE PRÓPRIO

“A Regra e vida dos Frades Menores é esta, a saber: observar o santo Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo vivendo em obediência, sem nada de próprio e em castidade”. A primeira frase da forma de vida proposta por São Francisco de Assis explicita o fundamento e a identidade da Ordem que nascia. Os conselhos evangélicos presentes em todas as demais famílias religiosas já existentes ganha conotação original, especialmente o voto de pobreza apresentado por Francisco como o modo de viver “sem nada de próprio”. Assim, a autenticidade da vida consagrada a partir do matiz franciscano supõe radicalidade evangélica, escuta atenta da vontade de Deus, pureza de coração e uma vida “sem nada de próprio”.

O empreendimento para conseguir desposar a Pobreza, ideal experimentado pela Fraternidade primitiva, envolveu os irmãos num redobrado esforço por alcançar o cume da montanha onde se encontrava encarcerada a dama de gradíssima beleza.  O conto cavaleiresco relatado pelo “Sacrum Commercium” oferece a dimensão da importância da pobreza na vida franciscana. A orientação para que os irmãos escolhessem estar entre os menores do seu tempo e sentissem satisfação por esta aproximação também atesta a maneira de olhar a pobreza como medida da realização do projeto da fraternidade: “E devem alegrar-se quando convivem com pessoas vis e desprezadas, com pobres e fracos e doentes e leprosos e os que mendigam à beira da estrada” (RnB 9,2). Diversos textos das Fontes Franciscanas atestam que Francisco se envergonhava quando encontrava alguém mais pobre do que ele: “A miséria desse homem é uma grande vergonha para nós, e repreende muito a nossa pobreza. O companheiro respondeu: Por que, irmão? E o santo, com voz de lamento: Escolhi a pobreza como minha senhora e toda minha riqueza, e ela está brilhando muito mais nesse homem. Ou não sabes que por todo o mundo correu nossa fama de pobres por amor de Cristo? Pois esse pobre está provando que isso não é verdade” (2Cel 84). O sentimento de vergonha, mesmo que inicialmente possa abater o ânimo, pode também servir como medida a ser alcançada por todos os que almejam a perfeição evangélica; perfeição alcançada quanto mais dedicação houver por amor a Cristo.

Embora tenha nutrido infinito amor por ela e a tenha buscado com todas as suas forças, São Francisco de Assis não inventou o conceito de pobreza. Aliás, tal conceito está enraizado nas origens do Cristianismo e pode ser considerado um dos principais elementos que identificam e sustentam a vida consagrada. A austeridade e rígida disciplina, marcas da herança deixada pelo eremitismo dalguns Pais e Mães da Igreja, apontam para a escolha da pobreza como um sinal da opção pelo Reino. Na mesma esteira, a vida cenobítica que, diferentemente da escolha pela solidão do ermo é experimentada em comunidade, exigia o esforço de todos os membros para garantir a sobriedade no modo de vida e a fidelidade à pobreza. Tanto o eremitismo, como o cenobitismo, que marcaram a expansão do Cristianismo florescente nos primeiros séculos, passaram por graves crises e, entre idas e vindas, foram revisitados na Idade Média, especialmente pelos movimentos pauperísticos que imprimiam um caminho de retorno ao Evangelho.

O dinamismo de retomada da radicalidade evangélica foi experimentado por Francisco e a comunidade franciscana primitiva. A resistência a tais movimentos com flagrante teor reformador e que eram, inclusive, acusados de flertar com heresias, ganhou corpo na Igreja. Diante disso, a aprovação da Regra Franciscana (1223), bem como a confirmação do privilégio da pobreza conferido às Damas Pobres (1228), toma um vulto de importância destacada para o florescimento do Movimento Franciscano. Inapelável virtude para Francisco e seus irmãos, o tema da Pobreza gerou muitas controvérsias. Para manter viva a intuição do Movimento Franciscano de testemunhar o Evangelho através de uma autêntica vida de pobreza é necessário um renovado e criativo empenho para deixar transparecer, cada vez com maior nitidez, que a disposição para uma “vida sem nada de próprio”, uma vida a partir da fraternidade e da minoridade, são os sinais mais lúcidos da identidade franciscana.

A partir da pequena porção – TESTEMUNHO E MISSÃO

À pobreza como ideal de vida para os irmãos e irmãs de São Francisco de Assis, se contrapõe o empobrecimento que desumaniza e ofende de morte o planeta Terra, nossa Irmã e Mãe. Milhões de pessoas no mundo inteiro são empurradas, involuntariamente, para abaixo da linha que define as condições mínimas necessárias para a vida conservar dignidade. Diante desta tormentosa realidade, o Papa Francisco, em uma missa para encerrar o 27º Congresso Eucarístico Nacional da Itália (Setembro 2022), alertou: “As injustiças, as disparidades, os recursos da terra distribuídos de forma desigual, os abusos dos poderosos contra os fracos, a indiferença ao clamor dos pobres, o abismo que cavamos todos os dias, gerando marginalização, todas estas coisas não nos podem deixar indiferentes”. E complementou: “Deus pede então uma conversão eficaz: da indiferença à compaixão, do desperdício à partilha, do egoísmo ao amor, do individualismo à fraternidade”.

Não é preciso recorrer a planilhas e estatísticas oficiais para perceber o escandaloso crescimento do empobrecimento em diversos países, especialmente aqueles do “Sul Global”. A opinião pública mundial e o senso comum já acostumados a assistir, anestesiados, ao ignominioso desfile de corpos famélicos em campos de refugiados nos países africanos ou na Ásia, ultimamente passaram a ser incomodados com o alarmante avanço da pobreza em regiões outrora prósperas. Sistemas econômicos transnacionais têm promovido grande concentração de riquezas e exploração dos recursos naturais, à custa da globalização do empobrecimento. A promoção de conflitos armados e o intencional desprezo por busca de apaziguamento têm servido para o fortalecimento de comportamentos privatistas e a manutenção de estruturas que legitimam a supremacia de povos e países, de grupos e organizações.

Nas análises dos relacionamentos sociais tem sido bastante recorrente a utilização do termo “Aporofobia”; sua etimologia promove a junção de termos gregos que remetem a duas palavras em português: pobre e aversão. O comportamento que este neologismo identifica contém uma agressividade sem par, afinal, ele não apenas se contrapõe ao sentimento de solidariedade e cuidado que poderia nascer no relacionamento com os pobres, mas é sustentado pela rejeição que não permite perceber que a pessoa em situação de pobreza não representa perigo, e também pelo sentimento de ódio que aponta para comportamentos violentos com vistas a eliminar aquele que, simplesmente por existir, se faz uma ameaça.

A globalização do empobrecimento e a Aporofobia são apenas dois dos muitos sinais de que vivemos uma sociedade doente. A lucidez do pontificado inaugurado pela eleição do Papa Francisco reconstitui a relevância do papel da Igreja Católica nas discussões e na participação de organismos que podem assumir a tarefa de encontrar, antes que seja tarde, medicina e cura para esta doença que dizima os povos e o planeta como um todo. Ao escolher o nome de Francisco, o papa trouxe à baila a dimensão e o poder revolucionário do Movimento Franciscano. O vigor transformador da experiência de São Francisco de Assis e seus primeiros companheiros e companheiras permitiu o reflorescimento da Igreja. A evidente inspiração franciscana dos escritos papais, com destaque às Encíclicas Laudato si’ (2015) e Fratelli Tutti (2020), emprestam a voz aos pobres e pessoas de boa vontade que ousam sonhar uma “Terra sem Males”.

O tempo é agora. A realidade impõe aos irmãos e irmãs de São Francisco de Assis a corajosa decisão de voltar a Santa Maria dos Anjos. O anseio por revisitar a história revigora os passos vindouros e, certamente, nos levará a perceber a importância de voltar a ter em grande conta a preciosidade do tesouro escondido no campo, pelo qual vale a pena deixar tudo para adquirir aquele campo. O compromisso renovado com o Evangelho deixará mais iluminadas as escolhas das instituições que estão postas para promover o carisma franciscano. O reencontro com a identidade original dará a todos a leveza e a coragem para que, desapegados de tudo, possamos galgar a montanha onde habita a Senhora Pobreza.


FREI PAULO ROBERTO PEREIRA, OFM

MINISTRO PROVINCIAL
Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil

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