Frei Marcos Antonio de Andrade
A evidência da fé…
O Novo Testamento fala tanto da dúvida como da fé. Os apóstolos não estavam muito surpreendidos pela dificuldade em acreditar, pois sabiam que ela estava predita pelos profetas. Paulo e João citam a palavra de Isaías: «Senhor, quem acreditou na nossa mensagem?» (Jo 12,38 e Rm 10,16). João acrescenta: «era o que Isaías tinha dito ainda: ‘Cegou-lhes os olhos e endureceu-lhes o coração, para que seus olhos não vejam, seu coração não compreenda’» (Jo 12, 39-40). Os quatro Evangelhos fazem referência a esta passagem do capítulo 6 de Isaías. O que podemos notar é que a fé não é evidente!
O Evangelho de João mostra a fé no pano de fundo do seu oposto. Desde o início Cristo é ignorado: «Veio para o que era seu e os seus não o receberam» (Jo 1,10-11). É verdade que a certa altura muitos seguiram Jesus. Mas, rapidamente, a maioria deixa de acreditar nele: «Muitos discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele» (Jo 6,66). Jesus não tenta agarrá-los. Constata: «Por isso é que vos disse: ‘Ninguém pode vir a mim se não lhe for concedido por meu Pai’» (Jo 6,65). Cristo não procurou suscitar a adesão através da persuasão, pois a fé tem uma profundidade que ultrapassa a inteligência e as emoções. Enraíza-se nessas profundidades onde «o abismo chama outro abismo» (Sl 42,8), onde o abismo da nossa condição humana toca no abismo de Deus. «Ninguém pode vir a mim, se o Pai, que me enviou, o não atrair» (Jo 6,44). A fé nasce inseparavelmente da atuação de Deus e da vontade humana. Ninguém acredita se não quiser. Também ninguém acredita sem que Deus o permita.
Se a fé é um dom de Deus e se nem todos acreditam, será que Deus afasta alguns? Na passagem onde João cita Isaías sobre a impossibilidade de crer, também transmite uma palavra de esperança de Jesus: «E eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim» (Jo 12,32). Elevado sobre a cruz e elevado na glória de Deus, Cristo «atrai» como o Pai «atrai». Como é que ele faz para atingir todos os seres humanos? É impossível dizê-lo. Mas por que não havemos de confiar nele no que diz respeito àquilo que nos ultrapassa?
Até à última página, o Evangelho de João mostra a fragilidade da fé. A dúvida de Tomé tornou-se proverbial. Mas o que é decisivo é que, sem acreditar, permanece na comunidade dos crentes – e evidentemente, estes não o expulsam! Tomé espera, o Ressuscitado mostra-se a ele, e ele acredita. Depois Jesus diz: «Porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram!» (Jo 20,29). A fé não é um feito. Vem inesperadamente, ninguém sabe como. É uma confiança que se espanta com ela própria.
A fé enquanto abertura radical ao Mistério
Diz Leonardo Boff num de seus livros: “A fé consiste fundamentalmente numa atitude radical de abertura para o Mistério de nossa existência e de sua acolhida amorosa, modificando o caminhar humano. Crer em Deus é um modo de viver a vida como confiada, entregue, colocada em Suas mãos; é uma maneira de totalizar todas as nossas experiências e interpretar o mundo, vendo-o a partir do desígnio de Deus e ligado umbilicalmente à Sua divina realidade.”
Este é o sentido originário de crer, como um existir em confiança e abertura, mas uma abertura iluminada por um Tu absoluto, uma “Luz na qual vemos a luz” (Sl 36,10). Esse tu comungado e amado deixou sua obscuridade misteriosa e se fez nosso irmão em Jesus Cristo, Deus encarnado. Crer, significa abrir-se, deixar-se orientar, acolher a santa humanidade de Jesus de Nazaré na qual encontramos o Absoluto Mistério, sentido de nosso viver e morrer.
Crer é mais que um confiar-se radical e ontológico ao Tu divino; é também abrir-se e acolher o que Ele nos tem a dizer, seu projeto histórico sobre o homem, sua revelação sobre o destino do mundo. O que Ele nos tem a dizer o auscultamos em nossa consciência; com sentidos afiados por Sua luz o descobrimos nos sinais dos tempos e na história que Ele fez com um povo. Isso é testemunhado pelas Sagradas Escrituras, interpretadas à luz da história da fé cristã, história que culminou no caminho concreto de Jesus de Nazaré vivo, morto e ressuscitado.
Essa atitude de abertura e acolhida, por um lado universal e por outro concreta, constitui uma manifestação do que seja graça em cada homem. Porém, esta graça não se restringe a uma dimensão pessoal, ela se desdobra numa dimensão eclesial e social. Em última análise, é por causa da fé que nós somos responsáveis pelo tipo de sociedade, de fraternidade, de Província, de Ordem, de Igreja e da qualidade de vida criadas ao nosso redor. Se elas dão margem à emergência de Deus ou O abafam com sua prepotência. A emergência, a transparência e a epifania da fé se dá nas obras (Tg 2, 14-18).
A fé enquanto resposta do ser-humano
A fé é compreendida como a resposta que o homem dá com responsabilidade a uma proposta, decifrada como sendo a revelação do próprio Deus na vida concreta. Ela deve exprimir a nossa assunção de forma livre para uma realidade que é fundamento e destinação. O homem exprime essa sua experiência por várias formas: pelo culto, por símbolos, por fórmulas doutrinais e por organizações religiosas. A religião é a fé institucionalizada, e a fé é o núcleo e a substância da religião.
Embora geralmente a fé seja vista como uma religião, porque trata da relação com esse Absoluto a que se chama Deus, esta noção não se revela muito útil para a captar no seu carácter único. Será ela então uma espiritualidade? Sim, no sentido em que oferece um caminho pessoal e vivido de aprofundamento do sentido da existência. É uma peregrinação nas pisadas de Cristo, e coloca forçosamente o peregrino em relação com todos aqueles que estão no mesmo caminho. Sabemos que não pode haver fé sem religião, mas pode contudo haver religião sem fé! Basta observarmos o legalismo, o ritualismo, o dogmatismo, o sacramentalismo, etc.
Mas a fé é quase nada, mal se discerne – pequena como um grão de mostarda, diz Jesus (Lc 17,6). Ao mesmo tempo, é «mais preciosa que o ouro» (1Pd 1,7), «santíssima» (Jd 20). A fé pertence às virtudes teologais, nos diz o Catecismo: «são infundidas no homem com a graça santificante, tornam-nos capazes de viver em relação com a Trindade e fundamentam e animam o agir do cristão, vivificando as virtudes humanas. Elas são o penhor da presença e da ação do Espírito Santo nas faculdades do ser humano» (CIC 384). Segundo S. Paulo «A fé, a esperança e a caridade permanecem para sempre. Porém, a maior delas é a caridade» (1Cor 13,13), pois «a Fé atua pelo amor» (Gl 5,6). No séc. VII, Máximo, o Confessor, identifica a fé com o reino de Deus: «A fé é o reino de Deus sem forma visível, o reino é a fé que tomou forma segundo Deus». E acrescenta que a fé realiza «a união imediata e perfeita do crente com Deus em quem crê».
O fundamento da fé
“Ressuscitou!” Este é o fundamento da nossa fé, a razão da nossa esperança e o motivo da nossa caridade: «Se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a nossa fé» (1Cor 15,14). Sem esta experiência, a cruz de Jesus e as nossas seriam uma tragédia e a vida cristã um absurdo. A partir dela, ao contrário, podemos cantar com a liturgia: “O Crux, ave, spes unica” (Salve, ó cruz, nossa única esperança). O Crucificado «ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras» (1Cor 15,4). Eis aqui o núcleo central da nossa fé e do kerigma primitivo: «Tanto eu como eles, eis o que proclamamos» (1Cor 15,11). A ressurreição é o grande “sim” de Deus Pai a seu Filho e, nele, a nós, por isso é também o tema do anúncio e o fundamento da nossa fé.