Frei João Fernandes Reinert
O presente texto quer ser uma tentativa de articulação entre cultura e fé, e suas implicações pastorais, no marco da ‘mudança de época’, expressão esta recorrente nos discursos e análises da realidade hodierna.
Em meio às atuais e profundas transformações em todos os níveis, sejam elas sociais, culturais, econômicas, religiosas, um novo ethos se impõe. Valores são ressignificados, paradigmas são reconstruídos, nova compreensão do ser entra em cena, inauguram-se possibilidades inéditas de relacionar-se com o Sagrado. Nem mesmo a fé, entendida como relação entre o ser humano com seu Deus, codificada em uma religião, está imune às alterações culturais ocorridas com o novo que bate à porta de nosso tempo. Dizer fé hoje, portanto, é perceber a emergência de uma nova relação com o transcendente.
Bento XVI dizia que vivemos uma crise da fé que afeta também o cristianismo. A verdade desta afirmação reside no fato da fé ser uma realidade encarnada, inculturada, o que significa afirmar que fé e cultura não são estranhas, ao contrário, se influenciam mutuamente. A fé só será pertinente se vivida a partir de um horizonte cultural. Fé não paira no ar; tem endereço, rosto, nome, raízes. Se a cultura potencializa a fé, pode fragilizá-la. A fé paga um preço caro quando assimila sem mais todos os elementos culturais vigentes. Daí a sempre tensão mas necessária relação entre inculturação da fé e evangelização da cultura.
Se o momento não nos permite aprofundar a influência cultural na fé, apontaremos brevemente alguns exemplos que podem clarear a questão. Se uma das principais marcas do atual momento histórico parece ser a primazia do ‘eu’, com fortes cores do individualismo em detrimento do ‘nós’, não nos é tão difícil captar o porquê de uma religiosidade por demais individualizada, afã de um contato direto com Deus, sem mediação do comunitário. Práticas religiosas individualistas, a passagem do institucional para o individual, da tradição para a adesão pessoal são apenas alguns acenos da ressignificação religiosa nas sociedades pós-modernas.
Na mesma perspectiva, uma cultura que prima pelo econômico, como eixo norteador e articulador das relações sociais, produz inevitavelmente uma tendência religiosa consumista, nas trilhas da prosperidade que estabelece relações comerciais com o divino.
Outro exemplo pode ser buscado no pluralismo, marca mais do que típica do momento, inaugurando a passagem do uno para o múltiplo, do estático para o móvel. Daí a tendência de uma vivência da fé também plural, com mistura de elementos das mais variadas religiões.
Posto isto, pode-se, então, sem maiores dificuldades, afirmar a crise da fé, cujos desafios pastorais são enormes, com destaque para o que é hoje uma das maiores urgências na evangelização: a transmissão da fé. Quando assistimos à crise das principais instâncias de transmissão de sentido, família, estado, educação, também a religião apresenta não poucas dificuldades para transmitir a fé (iniciação à vida cristã).
Outro dilema que angustia a todos nós: como formar comunidades, quando se impõe a chamada desinstitucionalização religiosa, isto é, a tendência cada vez mais acentuada da crença sem pertença, ou Deus sim, Igreja não?
Contudo, crise não significa caos, beco sem saída, mas possibilidade de transformação, metamorfose, e nascimento do novo. Nas sábias palavras de Edgar Morin, “metamorfose significa, simultaneamente, manutenção da identidade e transformação fundamental”1. Se evangelizar em tempos de mudança de época apresenta-se como que em dores de parto, é também gratificante porque pleno de possibilidades emergentes.
Sem condições de aprofundar a questão, recorremos novamente a alguns exemplos: a centralidade do indivíduo, a força da subjetividade, características do hoje da história, nos permite perceber que na evangelização a atenção ao indivíduo, a cada pessoa em sua particularidade não é pecado, ao contrário, é exigência evangélica no seguimento de Jesus, que sabia dirigir-se a cada pessoa em particular. A centralidade pós-moderna do eu pode abrir caminhos, portanto, para um projeto de evangelização que, em perspectiva comunitária, assuma a pessoa como paradigma evangelizador. Abrem caminhos para repensar estruturas pastorais que invistam na acolhida, na escuta, no ouvir. Em uma palavra, nos encontramos diante de reais chances de transformar o modelo de Igreja de massa em comunidades vivas, nas quais a valorização do indivíduo em chave comunitária seria questão primordial.
Quando uma das marcas culturais é a autonomia, a escolha, a decisão pessoal, é possível um projeto pastoral que dê mais atenção ao interlocutor da evangelização, ou seja, que o conduza ao uma decisão livre, corajosa e consciente de Jesus Cristo e de sua comunidade. Neste particular, a pedagogia catecumenal com seu caráter de progressividade na fé, marcada por etapas e ritos, apresenta-se com extrema atualidade, cujo investimento não pode ser opcional.
A centralidade do emocional e do subjetivo da cultura pós-moderna, se acarreta perigos à fé, traz chances inusitadas para a evangelização, quando por séculos esta foi marcada pelo racionalismo exacerbado. Permite-nos perceber que outros elementos são partes integrantes da fé, entre eles o sentimento, a expressão, o testemunho, na sadia distinção entre sentimento e sentimentalismo, emoção e emocionalismo. O perigo sempre são os extremos. Há de se evitar uma evangelização por demais racional, sem alma, e também recusar a tentação de caminhos açucarados que atingem tão somente o emocional.
Enfim, fé é uma realidade dinâmica, enraizada no tempo e no espaço. Resulta disto, a necessidade de uma evangelização que seja capaz de dialogar com a cultura, iluminando-a, e, ao mesmo tempo, permitindo ser por ela questionada. A evangelização será pertinente se ajudar o fiel a viver sua fé a partir de seu horizonte cultural, o que não significa assimilar tudo o que vem da cultura.
1. MORIN, Edgar. Rumo ao abismo: ensaio sobre o destino da humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011, p. 29.