Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

A falta da justa medida: o DNA de nossa cultura

11/07/2024

 

Para onde quer que dirijamos nosso olhar o que mais salta aos olhos, é a falta de medida, o excesso, o exagero, a ausência do caminho do meio, o nem demais e o nem de menos, o desequilíbrio em praticamente em todos os campos.

A justa medida é testemunhada em todas as grandes tradições éticas das culturas mundiais. No pórtico do grande templo em Delfos estava escrito em letras garrafais: méden ágan o que quer dizer “nada de excesso”. O mesmo se via nos pórticos dos templos romanos: ne quid nimis: “nada de menos nem demais” A justa medida se opõe à toda ambição exacerbada (hybris). Demanda o autocontrole, o senso do equilíbrio dinâmico e a capacidade de impor limites a nossos impulsos. Ora, é exatamente o que nos falta a nível mundial. A falta da justa medida pertence ao DNA de nossa cultura hoje planetizada.

Isso se nota claramente no sistema econômico-político-social-comunicacional predominantes. A mais flagrante amostra da falta da justa medida é o capitalismo. Lá onde se instala surge imediatamente a desigualdade entre os donos do capital que tudo possuem e decidem e os trabalhadores que apenas vendem suas capacidades, quer dizer, se instala imediatamente a ruptura da justa medida. Os mantras do capitalismo em suas várias versões é mantido inalterado: a busca da ilimitada acumulação para benefício individual ou corporativo, mesmo sabendo dos limites de nosso planeta, seu motor é a concorrência sem qualquer laivo de cooperação, a pilhagem dos bens e serviços da natureza sem tomar em conta a sustentabilidade necessária, a flexibilização de todas as leis para escancarar todas as portas para o processo de exploração e de enriquecimento, a pressão para criar o Estado mínimo, pois é visto como empecilho à dinâmica da expansão do capital.

O efeito deste processo é aquilo que o economista Eduardo Moreira, ex-banqueiro transformado num dos maiores formuladores de consciência crítica de nosso país e o principal idealizador do Instituto Conhecimento Liberta (ICL) oferecendo cerca de 270 cursos de excelência na mais variadas áreas do saber à custo de um sanduíche, com frequência de cerca de 100 mil seguidores: ”O 1% dos donos de terras concentram mais de 50% das terras cultiváveis do país; quando consideramos o volume de dinheiro, o 1% mais rico do mundo possui mais reservas acumuladas do que os 90% mais pobres; uma verdadeira catástrofe social” Este é um exemplo gritante de nossa absoluta falta de medida.

Essa falta de medida caracteriza igualmente as grandes mídias mundiais, seja escritas, digitais e a meia dúzia de plataformas da internet (Google, Meta, Facebook, Instagram, TikTok, X, Youtube e outras) nas mãos de um punhado de pessoas poderosíssimas.

A falta de medida revela-se profundamente brutal na relação para com a natureza, desde séculos explorada e nas últimas décadas devastada a tal ponto de alguns cientistas terem proposto a inauguração de uma nova era geológica, o antropoceno (o ser humano é o fator principal da destruição da natureza), radicalizado no necroceno (dizimação da biodiversidade) e ultimamente no piroceno (o aumento crescente dos grandes incêndios) por quase todas as partes do planeta.

Talvez uma das maiores demonstrações da falta da justa medida nos é dada pela mudança climática, já instalada a ponto de ser considerada pelos grandes órgãos mundiais como irreversível. A emissão de gases de efeito estufa ao invés de diminuir está aumentando; em razão da crise energética voltou-se ao uso de carvão, de petróleo e o gás, altamente poluentes e ainda devido à insuficiência das energias alternativas. A mudança climática não freada, acrescida com o aumento populacional, pode levar a um impasse o futuro da vida humana e tornar o planeta inabitável.

Entre as muitas causas que nos levaram a esse perigoso estágio é seguramente o rompimento da Matriz Relacional. Olvidamos que todas as coisas são inter-relacionadas . Na linguagem poética do Papa Francisco em sua encíclica de uma ecologia integral (Sobre o cuidado da Casa Comum) “o sol e a lua, o cedro e a florzinha, a águia e o pardal…significam que nenhuma criatura se basta a si mesma; elas só existem na dependência de umas das outras, para se completarem mutuamente no  serviço uma das outras”(n.85). Aqui aparece a justa medida natural rompida pelas ciências e os saberes.

A modernidade se funda sobre a atomização dos saberes, das coisas tidas sem um valor intrínseco e postas ao desfrute dos seres humanos ou, na pior tendência, à acumulação sem limites de bens meramente materiais. Assim surgiu o mundo das coisas; inclusive as mais sagradas também órgãos humanos foram transformados   em mercadoria a ser posta no mercado e ganhar o seu devido preço, coisa já prenunciada por Marx em 1847 em sua Miséria da filosofia e sistematizada em 1944 por Karl Polaniy em sua obra A grande transformação.

Como sair desta enroscada de dimensões trágicas? Não temos outra saída, se quisermos continuar sobre este planeta, senão voltar à ética do cuidado de todas as coisas, de nossas vidas e principalmente da justa medida. Ela e o cuidado poderão salvar o futuro de nossa civilização e de nossa permanência na Terra.

Preocupado com esta questão máxima, de vida e de morte, escrevi dois livros, fruto de vasta pesquisa transcultural. O primeiro foi publicado em 2022 O pescador ambicioso e o peixe encantado: a busca da justa medidaNele preferi o gênero narrativo com o uso de contos e mitos ligados à justa medida. O segundo completa o primeiro, A busca da justa medida: como equilibrar o planeta Terra, ambos pela Editora Vozes. Neste segundo procurei de uma forma mais científica ir às causas que nos levaram a olvidar a justa medida, exatamente a perda da Matriz Relacional.  

Por mais que nos esforcemos em crer que só o retorno à justa medida e à ética do cuidado nos poderão salvar, sempre fica angustiante pergunta: dada a universalização da grave crise existencial, temos ainda tempo e sabedoria suficientes para operarmos esta conversão? A esperança nunca morre e não nos deverá defraudar.


Leonardo Boff escreveu Habitar a Terra, Vozes 2021 e O doloroso parto da Mãe Terra, Vozes 2021.

Imagem gerada com IA. Freepik

Download Nulled WordPress Themes
Download WordPress Themes
Download WordPress Themes
Free Download WordPress Themes
online free course
download redmi firmware
Download Best WordPress Themes Free Download
ZG93bmxvYWQgbHluZGEgY291cnNlIGZyZWU=