Pe. Ademir Guedes Azevedo, cp
Ultimamente ocorrem algumas situações alarmantes no meio presbiteral. Estes problemas na verdade, são um reflexo da sociedade ocidental. O que está acontecendo com o clero é apenas um sintoma de uma doença global. São poucos os que se dão conta e buscam novas alternativas, há também alguns já conscientes de tal gravidade, mas acabam por se acostumar a conviver com a enfermidade, pois no fundo seguir a onda é algo que se tornou muito normal. Quais são as enfermidades do clero? São as mesmas da sociedade ocidental: depressão, ansiedade, baixa autoestima, síndrome de Burnout, síndrome do pânico, estresse e tantas outras. Estes são como pecados capitais que originam uma série de novas enfermidades incontáveis…
A causa de tudo se resume no seguinte: autoexploração de si mesmo. Tal causa é sutilmente mascarada com a ideia hodierna de pastoral que o clero assumiu para justificar um excesso de atividades que preenchem o seu cotidiano. Aqui está a armadilha!
O que é a autoexploração de si mesmo na pastoral? Na verdade, ela não é o doente que visitamos, nem a liturgia da missa presidida, nem tampouco a administração paroquial. Não é nada disso! A autoexploração de si mesmo é o excesso de positividade que cada um exerce sobre si próprio. Em outras palavras, se trata do esforço mental que cada um faz a fim de assegurar a carreira bem-sucedida do seu próprio eu. Não há nenhum patrão a exercer pressões sobre nós, nem o bispo, nem o provincial e nem tampouco o povo (pois isto sempre existiu na vida presbiteral), mas é o próprio presbítero que põe sobre si mesmo uma carga a ser carregada ou uma série de comportamentos que deve assumir para lograr êxito. O presbítero é o seu único patrão. Ele vive refém das desumanas exigências do seu próprio eu. A violência exercida não vem de fora, mas parte do próprio interior. Como o clero chegou a este estado? Alguns pontos são fundamentais para ajudar a termos um conhecimento atual da situação.
1.O sistema neoliberal trouxe um novo estilo de vida para a sociedade ocidental: antes as relações eram mais locais e transparentes. Os artesãos fabricavam seus produtos nas aldeias, vilas e pequenas cidades. Eram confeccionados a partir de uma relação mais pessoal. Alguém encomendava e o trabalhador, vagarosamente, produzia. O modelo antigo de trabalho havia uma relação pessoal não só com o consumidor, mas também com o próprio produto a ser confeccionado. A noção de tempo situava o indivíduo mais no presente do que no futuro. Tudo era lento, pois o olhar se demorava na coisa a ser feita, com calma, sem pressa. Podia-se, inclusive, refazer o mesmo produto, caso a avaliação do fabricante com o cliente chegasse a mesma conclusão. Mas este sistema cedeu lugar ao modelo industrial: tudo é feito em série. Não há mais relação pessoal com cada produto nem tampouco com o seu destinatário. As coisas em si perderam seu lugar, pois é a marca que a representa. As marcas satisfazem as massas. Aqui começa a autoexploração: cada pessoa crê que deve enquadrar-se no padrão para ser aceito ou até mesmo porque se trata de algo confortável, emocionalmente. Inicia-se a jornada da conquista pessoal. Quem vive realmente o voto de pobreza, torna-se um marginal dentro da própria comunidade de fé, como um alienígena que habita outro mundo, exatamente aquele da simplicidade que não exige nada. O neoliberalismo tem sua proposta de vida. Em si, ele não cobra nada, apenas apresenta a sua proposta. O problema é que para ter acesso a tal proposta o sujeito deve exercer um ato de violência sobre si mesmo: trabalhar descontroladamente para alcançar o padrão.
2. As novas tecnologias são o fator mais atraente na atualidade. Foram inventadas com o objetivo de encurtar a distância e facilitar o afeto entre as pessoas. O ser humano é social. Aristóteles insistia que fomos feitos para a pólis, máxima expressão de nossa capacidade espiritual de viver em comunidade. Mas este ideal foi renegado através da maneira irracional de satisfazer as exigências do eu. O clero fez uma adesão muito rápida às redes sociais e aos aplicativos mensageiros. Uma verdadeira tragédia! Transcorremos a maior parte das horas de nossa jornada olhando a tela do celular para responder mensagens, pagar as contas, verificar se a foto postada já tem um número suficiente de curtidas, etc… A causa motora para seguir neste ritmo já a conhecemos: se não fizermos assim, as coisas não caminham! Mas é justo isso a origem da autoexploração do sujeito. Além disso, lá no seu íntimo, o padre está preocupado em nutrir a sua bolha virtual, ele sofre se sua vida não está num padrão semelhante a vida dos seus amigos que postam nas redes. Sutilmente, ele se esforça para postar coisas semelhantes para só assim sentir-se bem consigo mesmo. Esta autoexploração vai mais longe quando trocamos as horas de repouso para prolongar o tempo no espaço virtual. O celular deixou de ser um objeto que servia para auxiliar a nossa comunicação. Graças à tirania do nosso eu, ele se tornou um órgão do ser humano. A ideia de um projeto de formar uma grande aldeia global, onde se respeitaria as culturas e as raças, parece ter cedido lugar a um palco no qual o sujeito perde sua identidade, pois pouca coisa passa pela reflexão. Ao invés de entrar com a ética no mundo da vida do outro, a pessoa entra no enxame das informações desconexas, pois uma absolve a outra, num abismo sem fim.
3. O deslocamento do primeiro desejo vocacional ao clericalismo: aqui a principal voz tem sido o Papa Francisco. Ele encontrou na teologia de Henri de Lubac o perigo de uma Igreja mundana. O mundanismo espiritual esquece a razão fontal da vocação: a vocação é o dom de si, ou seja, uma vocação não pode centrar-se em torno dos próprios interesses, deveria ser posta a serviço, numa atitude constante de disponibilidade. O Papa Francisco insiste em um verbo, sair, e num substantivo, unção. Sair ao encontro para anunciar a alegria do Evangelho, tornando a unção recebida na ordenação um dom público, pois o presbítero não vive para si, mas para a sua comunidade, num contínuo discernimento da vontade do Senhor. O clericalista explora a si mesmo, pois ele faz tudo girar em torno dele. A imagem que ele mais contempla é a sua e, caso ainda não esteja no padrão que ele espera, então a vida de privilégios pessoais tende só a crescer. Esta autoexploração acaba sendo a sua pastoral, pois ele não apascenta as ovelhas necessitadas, mas apascenta a si próprio. O seu campo de atuação não é o hospital de campanha onde está a carne crucificada de Jesus, mas é o mundo onde ele tornou-se refém e não gostaria de perder o vínculo: círculo restrito de amigos que gozam de bem-estar, férias prolongadas, viagens para lugares que poderão aumentar as curtidas das redes sociais. Esta pastoral da autoexploração de si mesmo é cruel, pois acaba pedindo um preço alto ao presbítero: as suas energias emocionais, sua atenção, sua alma…É difícil servir a dois senhores!
Ninguém tem culpa de nada. A questão da autoexploração como pastoral é um desafio a ser superado através da nossa comunhão presbiteral. Podem ser útil três elementos presentes na sabedoria espiritual. Eles sempre foram os faróis para uma vocação mais feliz: A) A pobreza evangélica: a simplicidade de vida liberta o eu de suas exigências desumanas. A pobreza como estilo torna a vida sóbria e a providência divina ganha espaço. O abandono em Deus será sempre a atitude mais desafiadora para uma sociedade do pânico, preocupada em como será o dia de amanhã. B) O caminho espiritual: o direito de não ter que viver constantemente fazendo coisas sem sentido, desconexas (o chamado ativismo). Restituir a contemplação ao nosso olhar distraído seria um desafio para desintoxicarmos a nossa mente das informações tóxicas que entram através das mídias. C) Exercitar-se na memória vocacional do nosso ministério: identificar na caminhada qual foi a situação que nos fez romper com o ardor que tínhamos quando éramos jovens, quando nos sentíamos atraídos pelo estilo de vida de Jesus e seu Evangelho. Retomar as provocações vocacionais que nos desafiavam a passos mais ousados na caminhada. Não é nostalgia, mas é memória teológica que nos faz reencontrar Deus em nossa história vocacional.
A pastoral da autoexploração dará lugar a pastoral do dom. O presbítero poderá fazer aquela experiência de Pedro, o qual ao sentir-se triste por ser traidor e por amar de modo ainda imperfeito seu Mestre, mesmo assim foi chamado uma segunda vez a ser mais fiel e, por isso, a não abandonar o sentido de sua vocação. Poderá, assim, ouvir de modo novo aquele apelo do Ressuscitado: «apascenta as minhas ovelhas» (Jo 21,17).
Pe. Ademir Guedes Azevedo, cp (vidapassionista.org) é missionário passionista da Província Passionista Getsêmani, em São Paulo e mestre em Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana. Atualmente, faz o doutorado em Teologia Fundamental nesta Universidade.