Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

O amor na vida de Maria Madalena: uma mulher além do seu tempo e não prostituta!

23/07/2020

                                                                                                                                                    Imagem ilustratativa (1635 – Guido Reni)

Prof. Dr. Frei Jacir de Freitas Faria, OFM [1]

Introdução

Um bom ponto de partida para falar de Maria Madalena e o amor em sua e de sua vida é o texto de Jo 20,1-18. Trata-se da aparição de Jesus ressuscitado a Maria Madalena. No entanto, quero focar a minha reflexão em Maria Madalena, a santa, celebrada no dia 22 de julho, tendo como base essa passagem de João, o evangelho de Maria Madalena, Ct 3,1-6 e o seu papel na história do cristianismo como mulher que tanto amou, mas que foi menosprezada, por causa da misoginia (aversão à liderança da mulher) na vida da Igreja.

Maria Madalena: significado do seu nome

Quem era de fato, Maria Madalena? Ele foi ou não prostituta? Para responder a essa pergunta, analisemos, primeiramente, o seu nome. Maria é Míriam, o qual é um substantivo composto de duas raízes, uma egípcia (myr) e outra hebraica (yam). Myr significa a amada e yam, abreviação de Yavhé, Deus). Maria significa, então, a amada de Deus. Maria Madalena é amada de Deus, ou melhor de Jesus. O evangelho apócrifo de Felipe 59,9 confirma esse dado ao afirmar: “O Senhor amava Maria mais que todos os discípulos, e a beijava na boca frequentemente. Os outros discípulos viram-no amando Maria e lhe disseram: ‘Por que a amas mais que a todos nós?’ O Salvador respondeu dizendo: ‘Como é possível que eu não vos ame tanto quanto ela?”

Outras raízes para Miriam provêm do hebraico mar que significa amargo e o ugarítico mrym que, ao contrário, significa agraciada, excelsa. Assim, Maria Madalena simboliza todo e qualquer ser humano que vive a eterna dualidade da vida: amargura e graça divina. Alegria e amargura são os dias do ser humano sobre a terra. Depois da tristeza vem alegria. Na tristeza, a alma chora. Na alegria, o ser humano sorri. Assim agiu a comunidade de Miriam de Mágdala no seguimento de Jesus.

O sobrenome de Maria é Mágdala e é, por sua vez, um substantivo hebraico. Nele estão unidos a preposição me que em português significa da e o adjetivo gadol, grande. Torre em hebraico se diz migdal. Maria é, portanto, a Mulher da Torre, Aquela que guarda, a Guardiã dos ensinamentos de Cristo. A torre era no mundo antigo o lugar que mais sobressaía nas cidades. Maria Madalena também era, assim, aquela que sobressaia diante dos apóstolos. Não teria isso gerado ciúme entre os seguidores de Jesus? Claro que sim. Quem tem mais liderança em um grupo é o mais querido, mas também rejeitado por outros. É significativo o fato de o evangelho de Maria Madalena ter conservado a seguinte fala de Pedro em relação a Maria Madalena: – “Será que Ele (Jesus) verdadeiramente a escolheu e a preferiu a nós?” (MM 17,20). 

Maria Madalena: citação nos evangelhos

Nos evangelhos canônicos: Mateus, Marcos, Lucas e João, Maria Madalena é a figura feminina mais importante. Ela é citada 17 vezes. Na literatura apócrifa, isto é, quase duas centenas de livros do Primeiro e Segundo Testamento que não foram considerados inspirados, e, por isso, chamados de apócrifos, um evangelho, na versão copta, datado do ano 150 E.C., foi atribuído a Maria Madalena. Vale a pena ler esse livro de inspiração gnóstica. Madalena é apresentada como líder dos apóstolos. Nele, ela repassa para os apóstolos os ensinamentos de Jesus ressuscitado.

Outros apócrifos também falam de Madalena e, a partir deles, existe uma grande polêmica sobre a relação afetiva de Jesus com Maria Madalena. Seria ela ou não amada ou companheira de Jesus. Como vimos acima, o evangelho de Filipe é claro quanto a isso. 

Maria Madalena: um imaginário religioso que fez história

Muitas lendas cercaram a tradição de Madalena ao longo da história do cristianismo. Ela teria se casado com João Evangelista, o casamento deles foi relatado nas bodas de Caná (Jo 2,1-11). Ali mesmo, durante a cerimônia, o noivo teria abandonado Madalena e seguido Jesus, e Madalena se tornado prostituta. Mais tarde, ela se encontra com Jesus, passando a segui-lo também. Outras lendas contam que ela era esposa de um soldado romano, mulher rica, herdeira de uma grande fortuna, dona de um castelo em Magdala, cidade que está sendo escavada atualmente. Ao encontrar-se com Jesus, em Mágdala, ela abandonou tudo e o seguiu.

Na tradição da Igreja, Madalena recebeu muitos adjetivos: adúltera, santa e pecadora, penitente, bela e formosa. Para Santo Ambrósio, Madalena poderia ter sido pecadora. Já Pedro Crisólogo, arcebispo de Ravena nos inícios do séc. VII, diz que Madalena é o símbolo da Igreja “Santa e Pecadora”. A misoginia (aversão à mulher) de Crisólogo o levou a afirmar, quanto ao fato de mulheres, dentre elas, Madalena, receber por primeiro o anúncio da ressurreição, o seguinte: “Neste serviço, as mulheres precedem aos homens, elas que pelo sexo vêm depois dos homens, por ordem (hierárquica) depois dos discípulos, mas não por isso estão a significar que os apóstolos sejam mais lentos, pois elas levam ao sepulcro do Senhor não a imagem de mulheres, mas a figura da Igreja…” .

No entanto, o que mais marcou foi o equívoco cometido pelo papa Gregório Magno, no ano 591, na catedral de Milão, interpretando Lc 7,36-50, que fala de uma prostituta que unge os pés de Jesus, ter afirmado que tal prostituta seria Madalena arrependida. Na sua homilia 33, ele diz: “Aquela a quem o evangelista Lucas chama de mulher pecadora é a Maria Madalena da qual são expulsos os sete demônios, e o que significam esses sete demônios senão todos os vícios?”

Os milaneses pervertidos se converteram e a apóstola Madalena passou a ser aquilo que nunca foi, prostituta. A partir daí, o inconsciente coletivo guardou na memória a figura de Maria Madalena como mito de pecadora redimida. Nas sociedades patriarcais antigas, a mulher era identificada com o sexo e ocasião de pecado por excelência. Lc 8,2 cita nominalmente Maria Madalena e diz que dela “haviam saído sete demônios”. Ter demônios, segundo o pensamento judaico, era o mesmo que ser acometido de uma doença grave. No cristianismo, o demônio foi associado ao pecado. No caso da mulher, o pecado era sempre o sexual. Nesse sentido, a confusão parece lógica.

A Igreja, em 1050, fez de Madalena padroeira de uma abadia de monjas beneditinas. A ideia seria mostrar que Maria Madalena se arrependeu e tornou-se eremita. Na França, ela é tida como padroeira dos perfumistas e cabeleireiros. Ela é também a padroeira das prostitutas. A ligação de Maria Madalena com a França, ocorreu porque no tratado hagiográfico Legenda Áurea, publicado em 1293, o frade dominicano Jacopo de Varazze (1230-1298) conta que 14 anos depois da morte de Jesus, Madalena e um grupo de cristãos acabaram expulsos da Judeia. Embarcados à força, foram atracar no porto de Marselha, no sul da França. Lá, Maria Madalena teria pregado e convertido muitas pessoas. Mais tarde, ela se retirou à gruta de Sainte Baume, onde terminaria se dedicando por 30 anos à penitência e à contemplação. O local é venerado ainda hoje por cristãos no Santuário de Maria Madalena.

Em 1969, os predicados “penitente” e “pecadora” foram excluídos da seção dedicada a ela no Breviário Romano. Com isso, a Igreja reconheceu que Madalena não era prostituta

Madalena é celebrada pela Igreja Católica no dia 22 de julho, com festa litúrgica, a pedido do Papa Francisco, que em 2016 a declarou apóstola dos apóstolos, recordando esse título que foi dado a ela pelo teólogo Hipólito de Roma (178- 236) e retomado por Santo Tomás de Aquino (1274). Para o Papa Francisco, esse seu pedido foi para demonstrar a relevância desta mulher que mostrou “um grande amor por Cristo”. O certo é a que, para além de todas essas tradições, Maria Madalena era mulher de grande proeminência no início do cristianismo. Ela foi feita prostituta para desmerecer o seu papel de mulher no seguimento de Jesus. Por ele, ela teve grande amor, não importa como terá sido. O que vale para nós, hoje, é tirar dela essa alcunha de prostituta, não desmerecendo as prostitutas, mas a negatividade que carrega essa simbologia na sociedade machista, misógina de ontem e de hoje. [2]

Maria Madalena: a partir de Jo 20, 1-18 e sua releitura de Ct 3,1-6

Tendo feito esses esclarecimentos do papel de Maria Madalena na história, tomemos o texto de Jo 20,1-8. Ele é muito interpretado na perspectiva da ressurreição de Jesus. Em relação a Madalena, eu apontaria o seguinte:

  1. Ele é uma releitura de Ct 3,1-6, que conta a história de uma mulher que sai à noite, do seu leito, da casa da sua mãe, e sai à procura de seu amado nas praças e jardins. Ela encontra guardas e pergunta: vistes o amado de minha alma? Ela promete que, encontrando-o, o agarraria e o leva para casa da sua mãe para viver o amor em plenitude. Cântico dos Cânticos é livro escrito por mulheres para desafiar a visão machista de Esdras, que exigiu que os homens abandonassem suas mulheres estrangeiras para purificação da raça de Israel, na volta do Exílio Babilônico (587-536 a.E.C). Muitos elementos de Ct 3,1-6 estão presentes, na perspectiva do amor em Jo 20,1-8. [3]
  2. Madalena amava tanto a Jesus que ela saiu à noite, na escuridão de uma morte que nos deixa vazios, sem amor e com o desejo de ter quem amamos de volta ao nosso convívio. A pressa pelo caminho de Maria Madalena expressa o desejo incomensurável de trazer de volta o amado que se foi. O correr é o sinal evidente de quem ama. O amor corre, não para nas dificuldades da vida. Ele é sem medo, não paralisa. Os discípulos ficaram parados, com medo, Madalena, ao contrário, não.
  3. Madalena carrega dentro de si a fé que iria encontrar Jesus. Ela não sabia como, mas o seu desejo era maior que as limitações de um guarda que vigiava o sepulcro. Na tradição de João, ela se encontra com dois anjos, que são a presença terna e eterna de Deus. Que tem fé ama, não tem medo. O medo não nos deixa ver, nem com os olhos, nem com o coração. Madalena diz aos seus companheiros: Eu vi o Senhor. Eu vi Jesus ressuscitado. Essa sua fé é tamanha que tudo transcende. Ver é crer nos evangelhos, diferente do escutar para os judeus. Madalena ama. Ela não tem medo. O amor ressuscita as pessoas. Elas continuam vivas dentro de nós, ainda que ausente. Por isso, sofremos a morte de quem amamos e não fazemos com a morte de quem não era próximo afetivamente.
  4. O túmulo de Jesus é o vazio, o nada, o silêncio. É cada um de nós morto com aquele (a) que jaz eternamente. É o vazio existencial mesclado com o desejo de trazer de volta aquele que amamos. É um amontoado de pedras que guarda o amor de nossas vidas. Perto de um túmulo, um jardim, flores, símbolos da gratidão, do desejo e da saudade do amado que partiu. Nas flores, o fim da saudade, o deixar o amado partir. As lágrimas por alguém que morreu se cristalizam nas flores de um túmulo. Essas flores não murcham nunca, pois elas vivem dentro de quem ficou. A vida é assim. Chega um momento que não é mais possível chorar pelo ente querido. Ai de nós se as flores não existissem para catalisar as relações humanas no momento da partida. As flores expressam o fim das saudades.
  5. Com as flores, a saudade: vontade de ver e encontrar de novo o amado. A saudade é quase como a morte. Ela é tão forte que só quem a experimentou de verdade sabe o quanto ela dói. Ter saudade é o mesmo que buscar no mais profundo de nós as lembranças do amado (a). E essa tarefa parece não terminar. Para alguns é infindável. Ela só termina quando o coração sente-se possuído pelo amor eterno, que não morre mais. E saudade deixa de ser a morte, pois o amado passa a viver para sempre e sempre viverá ainda que ausente.
  6. No encontro com amado, o desejo de tocá-lo e agarrá-lo: vontade de possuir para sempre o amado. É corporeidade sem limites. Maria Madalena quer tocar Jesus. Jesus diz para Maria Madalena: ‘vá e diga aos apóstolos, teus companheiros de caminhada, que eu volto para a casa de meu Pai’. Seja você força na caminhada deles. E eles estarão com você no caminho do amor. Maria Madalena, nesse momento, compreende que Jesus vive dentro dela. Não há mais o que procurar a não ser ela mesma. Isso é ressurreição!
  7. Na partida, um adeus: é ficar com Deus, o amado que vive eternamente no eterno mistério da procura. No adeus está sempre um desejo reencontrar e, ao mesmo tempo, a certeza do encontro definitivo da vida em Deus, em Jesus, que não morre mais. Maria Madalena foi dizer aos seus que Jesus vive eternamente. Ele não morreu. O amor é eterno.
  8. No adeus, a eterna ressurreição: Maria Madalena parte para a anunciar a Pedro e aos apóstolos que Jesus ressuscitou. Pedro se encontra com Maria Madalena e dela recebe o anúncio da ressurreição. Nesse encontro, uma surpresa: “A fiel rocha de Pedro se esmigalhou como areia, mas a fé de Maria é verdadeiramente rocha (…). A parte masculina do amor revelou-se em energia, forte é a feminilidade. O sol do amor masculino se põe na morte, o sol do amor feminino levanta-se na ressurreição”.[4]

Conclusão: Mulher que esteve à frente de seu tempo

Madalena, a apóstola de Jesus e líder entre os homens apóstolos. Testemunha da ressurreição. Mulher que esteve à frente de seu tempo. Não foi prostituta, mas mulher de liderança na primeira hora do cristianismo, como tantas mulheres que agiram assim naquela época, mas que foram tolhidas de sua liderança em favor dos homens de Igreja. Urge resgatar o seu papel de mulher na construção do cristianismo de inspiração para mulheres e homens de nosso tempo que acreditam na igualdade de gênero na vida Igreja e da sociedade. Santa Maria Madalena, rogai por nós!


[1] Doutor em Teologia Bíblica pela Faje (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Reitor e Professor de Exegese Bíblica no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA-BH). É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de doze. Último livro: O Medo do Inferno e arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019).

[2] Mereskovskij. Morte e ressurreição, citado por Lílian Sebastiani, Maria Madalena: de personagem do evangelho a mito de pecadora redimida, Vozes: Petrópolis, 1995, p. 211.

[3] Para um estudo do evangelho de Maria Madalena, bem como a relação entre Jo 20,1-18 e Ct 3,1-6, veja o nosso livro: As origens apócrifas do cristianismo: comentário aos evangelhos de Maria Madalena e Tomé, 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 2004.

[4] Para um estudo completo da relação de gênero entre Pedro e Madalena, sua história nos apócrifos e na Bíblia, veja o nosso livro: O outro Pedro e a outra Madalena segundo os apócrifos: uma leitura de gênero. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 2010.

 

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