Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

São Jorge: os pobres matam todo santo dia um dragão

24/04/2019

 

 

                                                                                        Imagem ilustrativa: pintura atribuída a Goergios Klontzas

Leonardo Boff

Tempos atrás escrevi dois estudos sobre São Jorge, um histórico e outro interpretativo. A situação atual da maioria do povo empobrecido e humilhado tem que matar um dragão cada dia para poder sobreviver. Vale invocar a força e a coragem de São Jorge. Por isso atualizo o escrito anteriormente publicado e válido especialmente para o atual momento.

A história de São Jorge e o combate feroz com o dragão são dados de grande significação. Vamos tentar interpretar sua figura, o dragão e a sua luta. Veremos que tem a ver com a existência de cada ser humano, especialmente dos que precisam lutar muito para viver. Primeiramente, o dragão é dragão, portanto, uma serpente. Mas é apresentada alada, com enorme boca que emite fogo e fumaça e um cheiro mortífero. É um dragão simbólico.

No Ocidente representa o mal e o mundo ameaçador das sombras. No Oriente é positivo, símbolo nacional da China, senhor das águas e da fertilidade (long). Entre os aztecas era a serpente alada (Quezalcoatl), símbolo positivo de sua cultura. Para nós, ocidentais, o dragão é sempre terrível e representa a ameaça à vida ou as dificuldades duras da sobrevivência. Os pobres dizem: “Tenho que matar um dragão por dia tal é a luta pela sobrevivência”.

Mas o dragão, como o mostrou a tradição psicanalítica de C. G. Jung com Erich Neumann, James Hillmann, Etienne Perrot e outros, representa um dos arquétipos (elementos estruturais do inconsciente coletivo ou imagens primordiais que ordenam a psique) mais ancestrais e transculturais da humanidade.

Junto com o dragão sempre vem o cavaleiro heroico que com ele se confronta numa luta feroz. Que significam essas duas figuras? À luz de categorias de C. G. Jung e discípulos, especialmente de Erich Neumann que estudou especificamente este arquétipo (A história da origem da consciência, Cultrix 1990) e da psicoterapia existencial-humanística de Kirk J. Schneider (O eu paradoxal, Vozes 1993) procuremos entender o que está em jogo nesse confronto. Ele ensina e nos desafia.

O caminho da evolução leva a humanidade do inconsciente ao consciente, da fusão cósmica com o Todo (Uroboros) para a emergência da autonomia do ego. Essa passagem é dramática, nunca totalmente realizada; por isso, o ego deve continuamente retomá-la caso queira gozar de liberdade e se impor na vida.

Mas importa reconhecer que o dragão amedrontador e o cavaleiro heroico são duas dimensões do mesmo ser humano, de cada um de nós. O dragão em nós é o nosso universo ancestral, obscuro, nossas sombras de onde imergimos para a luz da razão e da independência do ego. Por isso que em algumas iconografias, especialmente uma da Catalunha (é seu patrono), o dragão aparece envolvendo todo o corpo do cavaleiro São Jorge. Numa gravura de Rogério Fernandes o dragão aparece envolvendo o corpo do Santo, que o segura pelo braço e tendo o rosto, nada ameaçador na altura do de São Jorge. É um dragão humanizado formando uma unidade entre o ser humano e São Jorge. Noutras (no Google há 25 páginas de gravuras de São Jorge com o dragão), o dragão aparece como um animal domesticado sobre o qual São Jorge de pé o conduz, sereno, não com a lança mas com um bastão.

A atividade do herói, no caso de São Jorge, na sua luta com o dragão mostra a força do ego, da consciência, corajoso, iluminado e que se firma e conquista autonomia, mas sempre em tensão com a dimensão escura do dragão. Eles convivem mas o dragão não consegue dominar o ego.

Diz o psicanalista Neumann: “A atividade da consciência é heroica quando o ego assume e realiza por si mesmo a luta arquetípica com o dragão do inconsciente, levando-a a uma síntese bem-sucedida” (Op.cit. p.244). A pessoa que fez esta travessia não renega o dragão, mas o mantém domesticado e integrado como seu lado de sombra.

Por esta razão, em muitas narrativas, São Jorge não mata o dragão. Apenas o domestica e o reinsere no seu lugar, deixando de ser ameaçador. Ai surge a síntese feliz dos opostos; o eu paradoxal encontrou seu equilíbrio pois alcançou a harmonização do ego com o dragão, do consciente com o inconsciente, da luz com a sombra, da razão com a paixão, do racional com o simbólico, da ciência com a arte e com a religião.

A confrontação com as oposições e a busca da síntese constitui a característica de personalidades amadurecidas, que integraram a dimensão de sombra e de luz. Assim o vemos em Buda, Francisco de Assis, Jesus, em Gandhi, em Luther King e no Papa Francisco.

Os cariocas têm grande veneração por São Jorge tão forte quanto a de São Sebastião, patrono oficial da cidade. Mas este é um guerreiro, cheio de flechas, portanto “vencido”. Por isso, há um movimento para fazê-lo o segundo patrono do Rio de Janeiro.

O povo sente necessidades de um santo guerreiro corajoso “vencedor” das adversidades. Ai, São Jorge representa o santo ideal. Numa famosa novela “Salve Jorge” ele é o herói que salva as mulheres traficadas contra o dragão do tráfico internacional de mulheres.

Por certo, aqueles que veneram São Jorge diante do dragão não saibam nada disso. Não importa. Seu inconsciente sabe; ele ativa e realiza neles sua obra: a vontade de lutar, de se afirmar como egos autônomos que enfrentam e integram as dificuldades (os dragões) dentro de um projeto positivo de vida (São Jorge, herói vitorioso). E saem fortalecidos para a luta da vida.


Leonardo Boff coordenou a publicação da obra completa de C. G. Jung junto à Editora Vozes.

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