Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

O diálogo, um elemento essencial da Espiritualidade Franciscana na inter-religiosidade

28/03/2019

                                                                                Imagem ilustrativa (fonte: reprodução do filme “O Sultão e o Santo”).

“De toda parte chega o segredo de Deus” (Rumi)

Frei Vitorio Mazzuco

Introdução

Um dos paradigmas modernos mais evidentes hoje é este: há muito mais verdades no conjunto das religiões, quando elas dialogam entre si, do que no dogma isolado de cada uma delas. Os caminhos que levam a Deus são pontuados pela riqueza da pluralidade e da aproximação para a compreensão desta realidade. São Francisco de Assis, no diálogo com o Sultão, em 1219, inaugura esta possibilidade de um modo real, bem concreto.

Dialogar dentro da pluralidade dos caminhos que nos levam a Deus é um desafio. Não é mais possível pensar que uma única tradição religiosa seja capaz de dispor sozinha da verdade única sobre Deus. Religião é apenas um fragmento da busca insaciável do Mistério de Deus, mas cada religião é portadora de uma singularidade muito específica.

Não há como não reconhecer a importância do diálogo religioso no tempo atual, mas isto não é muito tranquilo. As tradições religiosas, sobretudo os segmentos cristãos, têm dificuldades em reconhecer a sua positividade e criam resistência e desconforto em suas identidades já instauradas, porque se entendem únicas e exclusivas.

O diálogo religioso não deve ser abordado como algo negativo ou problemático, mas sim como expressão da vontade de Deus que necessita da diversidade das culturas e religiões para melhor manifestar as riquezas da Sua verdade. Deus não está na monotonia das uniformidades, Ele mesmo não se repete. A beleza da unidade das diferenças de suas obras maravilhosas nos circundam, e o Cântico das Criaturas de Francisco de Assis é a prova mais contundente desta verdade.

1. O diálogo plural religioso como argumento

O que é diálogo? São muitas as compreensões, mas podemos dizer, a partir da aproximação fraterna franciscana que dialogar é, através da presença e da palavra, da comunicação, da fala e do silêncio, através de uma grande capacidade de escuta, entrar no mundo da diversidade de ideias, num intercâmbio de compreensão.

O jeito franciscano, que sempre tem um modo acolhedor de ser, recupera uma fala e uma escuta por assim dizer terapêuticas, que fazem muito bem, e permitem atravessar os medos, preconceitos e incertezas. Dialogar é saber encontrar-se com a alteridade. O falar e o ouvir têm muito a ver com a dimensão fraterna.

Francisco de Assis nos ensina que Deus é tão rico e expressivo e tão acima de determinações para poder ser esgotado na sua plenitude por determinada tradição de experiência religiosa, que, por ser determinada já é por si muito limitada. Voltemos à ideia expressa na introdução desta reflexão: Há mais verdade religiosa em todas as religiões no seu conjunto do que numa única religião; o que também vale para o cristianismo. Existem, pois, aspectos verdadeiros, bons, belos e surpreendentes, nas múltiplas formas presentes na humanidade de compromisso e entendimento com Deus.

A humanidade e a criação estão sempre envolvidas e abraçadas pelo mistério sempre maior. Não há como fugir do impacto desta presença espiritual e sua dinâmica de universalidade. Há uma imensa variedade das automanifestações de Deus na história. As teofanias sucedem-se e modificam-se constantemente.

Aqueles que não conseguem perceber a presença de Deus e o alcance universal do Mistério sempre maior, são incapazes também de reconhecer a verdade salvífica de outras tradições religiosas.

O franciscanismo, através de seu Fundador, sempre acentuou a verdade segundo a qual Deus se manifesta em todas as coisas. As coisas não são Deus, mesmo que isto seja expresso pelo panteísmo, mas Ele está em todas as coisas, como afirma o paneteísmo franciscano. Tudo não é Deus; mas Deus está em tudo e tudo está em Deus, por causa da criação, pela qual Deus deixa sua marca registrada e garante sua presença permanente na criatura como um Deus providente e criador, e esta compreensão está em todas as religiões. A criatura sempre depende de Deus e o carrega dentro de si. Deus e mundo são diferentes; um não é o outro, mas não estão separados ou fechados. Estão abertos um ao outro. Encontram-se mutuamente implicados. Se são diferentes é para poderem se comunicar e estarem unidos pela comunhão e mútua presença num diálogo de identidades.

2. Manifestações deste Diálogo

A modernidade é plural e isto provoca crise nas estruturas fechadas que são chamadas a dialogar com sistemas abertos de conhecimento. A velocidade da mídia que gerou uma comunicação mais ampla e aproximou povos e culturas, trouxe uma consciência mais viva da pluralidade das religiões e da necessidade de dialogarem entre si. Isto gerou uma proximidade inédita do cristianismo com as outras religiões, uma nova consciência e sensibilidade em face dos valores espirituais e humanos de outras tradições. Crescem os cursos de teologia e ciência das religiões e isto dá uma avaliação mais correta e precisa de todas as tradições. Surgem as práticas celebrativas que dialogam e repartem ritos e cultura numa compreensão inter-religiosa.

3. Atuação do diálogo religioso

O conceito de religião vai se ampliando como experiência religiosa, e esta experiência religiosa só tem sentido se for para contribuir para uma vida mais digna para a humanidade; para ajudar numa convivência humana mais solidária e levar à uma formação inter-disciplinar mais profunda. A experiência religiosa tem que ajudar em alguns aspectos urgentes no mundo em que vivemos, como por exemplo:

Diante de certo vazio existencial: olhar a vida e colocar mais forte a Palavra presente nos Textos Sagrados e a Espiritualidade como parâmetros de valores.

Para o mundo cristão, o Evangelho ainda é a Boa Nova, continua a ser notícia, bela e nova como a graça do Amor, e que pode transformar quem o acolhe e recebe.

Diante do grito dos oprimidos e injustiçados deste mundo, aumentar a sensibilidade para com os que sofrem e são excluídos dos megaprocessos.

Diante de um consumismo exagerado que se alastra, precisamos de discernimento espiritual para uma moderação e equilíbrio, educando a humanidade numa correta visão e uso digno das coisas.

Lutar contra os falsos deuses da mídia, da política, do mercado e do consumo.

Diante das necessidades materiais e da fome, precisamos de presença de partilha. O progresso tem que vir acompanhado de um desenvolvimento social justo e solidário.

Diante de possíveis conflitos, temos que ser pessoas de paz, de diálogo, dispostos a ir ao encontro das soluções.

Diante da depredação da natureza, que alcança hoje níveis preocupantes, temos que fazer a nossa parte pela integridade da criação.

Diante da mentalidade individualista e narcisista, que gera clima de permissividade, que separa moral e fé, liberdade e responsabilidade, respeito e corporeidade, compromisso e relações duradouras, sejamos testemunhas de uma vivência humana com força espiritual incorruptível. Como? Com imperativos éticos, respeito, doação gratuita, compromissos duradouros, justiça, visão integral da pessoa humana.

Diante de uma religião vivida apenas como adesão pessoal, descompromissada, parcial e voltada para o próprio umbigo, utilitarista, adepta de espetáculos e mega shows, com fraco sentido de pertença, sejamos testemunhas de uma grande pertença ao comum. Ter uma silenciosa profundidade pessoal, porém expressiva no social. Amar apaixonadamente a escolha religiosa que se fez para dialogar e valorizar a escolha religiosa dos outros.

Diante da força da escola, formar integralmente a pessoa, ver o quanto a Educação está realmente ajudando a religião ou sendo um nicho de problema para ela. Olhar mais a realidade dos povos. Propor um estilo de vida mais simples e descomplicado. E, na crise política em que nos encontramos, criar com todos os credos possíveis, uma comunidade para refletir Fé e Política de um modo urgente.

Diante dos desníveis sociais, administrar mais as fronteiras de exclusão que nos separam: homem e mulher, clérigo e leigo, rico e pobre, cultura e natureza, alma e corpo, cidadão e migrante, comunidade e sujeito, etnias e preconceitos de gênero. O mundo globalizado só não tem fronteiras para o capital que cria e corrompe o poder. Não podemos viver de um modo discriminatório e prepotente.

Conclusão

Que a nossa vida, a partir da experiência religiosa franciscana, seja sempre mais rica em ouvir e dialogar com a vivência e a descrição que alguém possa fazer a partir da igreja ou seita a que pertence. Há o visível, mas sabemos que a vida é feita, sobretudo, daquilo que não se vê, que é a parte mais íntima de nossas escolhas: atitudes, sentimentos, afetos, fé, esperança e caridade. Que tudo isto salte para as nossas práticas e relacionamentos!

 


BIBLIOGRAFIA

Borau, José Luis Vázquez- O Fenómeno Religioso, Paulus, Lisboa,2008.
Küng Hans, Religiões do Mundo – Em busca dos pontos comuns – Verus Editora, Campinas, 2004.
Pearce Joseph Chilton, O fim da Religião e o renascimento da Espiritualidade, Cultrix, São Paulo, 2009.
Ries, Julien – O Sentido do Sagrado nas culturas e nas religiões, Editora Ideias e Letras, Aparecida São Paulo, 2008.
Tavares Sinivaldo e Delir Brunelli – Evangelização e Interculturalidade, Vozes, Petrópolis, 2010.
Teixeira, Faustino – Teologia e Pluralismo Religioso, Nhanduti Editora, São Bernardo do Campo, 2012.

Imagem no alto: Cena do filme “O Sultão e o Santo”, 2016

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