Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Aparecida: 300 anos de fé, devoção e libertação

12/10/2017

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Nesta quinta-feira, dia 12 de outubro, o Santuário Nacional de Aparecida celebra os 300 anos do encontro da imagem de Nossa Senhora no Rio Paraíba do Sul, interior de São Paulo. Confira a reflexão de Pamela Santos, mestranda em Teologia Pastoral pela PUC SP e colaboradora de publicações no site do CEBI (www.cebi.org.br).

São 300 anos de fé, devoção e libertação! Há trezentos anos nas águas do Rio Paraíba do Sul foi pescada a imagem capaz de mudar não só a vida de três pescadores, mas sim, a vida de um povoado e, por seguinte, a vida de um país. Aparecida é a expressão de uma devoção de fé que mudou vidas, transformou estruturas, ressignificou o sentido de sagrado e, acima de tudo, é sinônimo de amparo e intercessão.

Celebrar 300 anos de Nossa Senhora Aparecida é celebrar a vida, a fé, a transformação, a história. Chegar até aqui é fazer memória do quanto a devoção foi e é capaz de configurar a vida religiosa. É perceber o quanto ser religioso configura a vida das pessoas e como isso reflete nas suas atitudes. Afinal, todos nós conhecemos alguém, senão nós mesmos, que fala da “Cidinha” com emoção, carinho e peculiar alegria e gratidão.

Quantas vidas foram transformadas depois do milagre atendido, da prece feita aos pés da Santa, da travessia de joelhos na passarela da Basílica Nova à Basílica “Velha”. Quantas vidas transformadas depois de uma romaria até a cidade de Aparecida, onde foram meses se planejando para aquele encontro “face a face” com a padroeira do Brasil.

Celebrar o jubileu da Negra Mariama é ser capaz de se deixar conduzir pela mística da vida, pela mística que transforma nossa maneira de olhar a realidade e entender que mais do que rezar aos pés dela é preciso percorrer os mesmos caminhos que ela ousou percorrer. A fé na Mariama deixa a vida mais plena, na certeza de que ela intercede a Deus por nós, sempre na fiel esperança de que as coisas hão de melhorar.

Mais do que celebrar a fé, precisamos articular a devoção à Aparecida com a vida de todos nós, devotos ou não devotos. Não podemos desconsiderar que no mesmo ano que celebramos os 300 anos, também vivemos também uma conjuntura social marcada de incertezas, injustiças, de violação de direitos adquiridos após anos de luta, de violência em todos os sentidos, de um governo ilegítimo que a cada dia vem matando. Sim, matando!

E o que todo esse cenário tem a ver com a celebração jubilar? Tudo! Não temos exemplo mais claro e significativo de luta e resistência do que a Negra Aparecida. Ela que ousou em ser a mensageira viva da Libertação….

Ela caminhou com o povo, ajudando-os a serem protagonistas de suas próprias vidas e consequentemente, livres.

E não podemos deixar de falar delas! Delas que lotam os santuários, que coordenam as romarias, que lutam diariamente para trilharem os caminhos da vida, que pedem com fé para que o marido largue o vício, que pedem com fé para que os filhos consigam seguir os seus sonhos. Elas que pedem por todos e são cobradas de todos os lados.

Maria e as Mulheres.

Há muito o que falar, expressar. Falar sobre Nossa Senhora Aparecida é falar sobre a luta das mulheres, delas que ousam resistir, delas que ousam florescer, as mulheres que lutam diariamente por uma realidade mais justa, que na “calada” se vestem de si mesmas e nos ajudam a viver nesse mundo recheado de incertezas e violações.

Seria demagogia celebrar os 300 anos se não ajudarmos nossas amigas a se libertarem de relacionamentos abusivos, se não fortalecemos os Coletivos Feministas e principalmente, se não falarmos DELAS em nossos grupos de jovens que muitas vezes são machistas e excludentes. Que possamos caminhar juntas e juntos para que de fato, a Celebração dos 300 anos de Aparecida possa ser real, profética e significativa.

Pescada no rio Paraíba, em 1717, por humildes pescadores – gente do povo e da comunidade – começaram a venerá-la, invocando-a em suas necessidades. Foi um amor à primeira vista, pois Filipe Pedroso, ao contemplar a pequenina imagem que segurava nas mãos, sentiu grande confiança diante de seu olhar compassivo e exclamou:
“Minha nossa senhora aparecida”!

Daí por diante, o povo a invoca porque acredita que Ela é a Mãe de Jesus, como ensinam os Evangelhos, e que Ela pode e quer nos ajudar pedindo e suplicando por nós a seu divino Filho Jesus Cristo.

Crendo e amando a Jesus Cristo, nosso povo aprende a praticar a justiça e o amor fraterno, que são as condições indispensáveis para que a gente participe do Reino de Deus. E com Maria de Nazaré ao nosso lado, fica bem mais leve percorrer esse caminho que nos leva ao Salvador. Nossa Senhora Aparecida, como mãe de Jesus, tem um compromisso histórico com o povo brasileiro. Ela vem de encontro às suas filhas e filhos estendendo sua mão e nos faz ter a certeza de que é possível percorrer um caminho digno a todas e todos que recorrem ao seu amor.

Não poderia ser diferente, numa sociedade tão marcada por quebras e rompimentos, a imagem ser encontrada quebrada. A cabeça separada do corpo lembra a elite patriarcal que se apropria do poder, abusa do corpo-povo trabalhador e estupra as mulheres. E o corpo caótico é imagem do povo brasileiro, que nasceu e cresceu deformado, em meio à dizimação de todo tipo, aos desarranjos e destruições familiares, quebras culturais, rompimentos de laços étnicos, cortes de tradições religiosas.

A Mãe Aparecida caminha diariamente com seu povo, ela não vai à frente nem em cima do povo, mas anda junto!

Ela se faz presente na romaria da vida que não dá trégua a quem busca diariamente um novo caminho rumo a felicidade. Assim como no Magnificat, ela vem exaltar os humildes que mesmo diante das dificuldades não se cansam de lutar contra um sistema opressor. Em Aparecida, há a união do seu companheirismo com todas as mulheres, na sua maternidade e na sua participação na mediação do Filho de Deus, todo amor à vida das mulheres das Sagradas Escrituras. Ela evoca com seu olhar carinhoso e ao mesmo tempo acompanha com seu cuidado todas as mulheres, de todos os lugares e culturas nas suas mais diversas circunstâncias.

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Aparecida: uma convocação ao discipulado de iguais

O ensinamento sobre Maria tem interessado grande parte dos fiéis, seja da Igreja Católica Romana ou das Igrejas Protestantes. Fato que nos faz pensar sobre o discipulado de iguais… Discipulado é seguir uma liderança ou uma ideia e visão imperativa. Ser igual não significa ser idêntico, mas significa que na nossa diversidade todas as pessoas têm igual valor e dignidade.

Vamos iniciar repensando em como a figura de Aparecida tem sido apresentada às mulheres de nossas comunidades. Ao apresentar às mulheres a imagem de Maria, virgem e mãe tristonha, homens da Igreja estão pregando um modelo de feminilidade que mulheres não podem imitar. Maria como ser dessexualizada e como símbolo de obediência humilde serve para reafirmar a dependência, a subordinação e a inferioridade das mulheres.

Aparecida incorpora e personifica aquelas mulheres oprimidas que estão sendo libertadas: as que sofrem de fome e que são alimentadas; as humildes que estão sendo erguidas; as que choram e estão enlutadas que recebem consolação. Ivone Gebara, teóloga feminista, nos ajuda a reconstruir a figura de Maria como imagem do povo que se tornou fecundo pelo Espírito de Deus, do qual nasce uma nova humanidade. Maria representa a Igreja dos Pobres, da qual as comunidades de base são a boa nova.

Ao falarmos sobre a Maria que caminha com seu povo, não podemos deixar de falar da contribuição da Teologia Feminista como caminho de libertação. O feminismo que na teologia significou uma ruptura, na medida em que forneceu novos parâmetros de conhecimento e de reflexão sobre o sentido da vida, sobre o amor e a esperança que buscamos. Esses parâmetros, além de resgatarem uma dimensão simbólica feminina, sublinham igualmente a luta concreta de mulheres concretas. E a luta concreta tem a ver não só com o combate contra a exploração econômica capitalista que vivemos, mas tem a ver com a injusta divisão política e social dos gêneros. A luta das mulheres na sociedade civil e na teologia abre-se para todas essas frentes e muitas outras. Neste sentido, uma mariologia feminista exige que as mulheres hoje sejam libertadas de um jugo apostólico que fez de Maria o exemplo da mulher poderosa e ao mesmo tempo submissa, a serviço de uma organização hierárquica masculina e dominadora.

Portanto, a partir dessa perspectiva é preciso ressignificar o símbolo de Maria. Atividade que não se realiza no escritório, mas é ação sobre a cultura, sobre os conteúdos de representação, sobre os meios de comunicação, sobre a vivência de valores no desafiante mundo no qual nos encontramos.

Ressignificar o símbolo Maria é reencontrar as raízes do cristianismo dentro de uma história de humanidade que nos convidaria mais à solidariedade, à compreensão e ao cuidado reciproco. Ressignificar significa dar novos significados para além daqueles que foram estabelecidos e que já não dão conta das vivencias e dos desafios atuais.

E finalmente, ressignificar é um convite ao diálogo real entre gêneros, culturas e credos religiosos, um diálogo baseado nos valores que buscamos e no sentido que queremos das às nossas vidas no hoje de nossa história.

Concluindo

Que o 12 de outubro de 2017 tenha um novo sentido para nossas vidas, que o jubileu de Nossa Senhora Aparecida não termine nesse dia, mas que seja o início de um novo tempo. Um tempo onde as mulheres negras serão respeitadas, onde as pessoas vítimas da escravidão terão seus direitos garantidos e que todas e todos se inquietem para a construção de um outro mundo possível.

Não faria sentido celebrar essa festividade sem nos solidarizarmos com as causas que afetam a vida das mulheres. Que as nossas romarias voltem para a suas respectivas realidades com o mesmo olhar que Aparecida enxergou para a realidade de seu povo. Vestir o manto e coroar Nossa Senhora Aparecida é vestir as mulheres que diariamente são despidas de suas vestes e dignidade e coroá-las para vida plena e plena em abundância.

Que a força que emana da devoção popular nos anime para construir uma sociedade mais fraterna e tolerante. A Negra Aparecida quer nos animar para as nossas lutas diárias em defesa da vida em todas as suas esferas, combatendo a violência e todos os tipos de preconceitos. É preciso unir nossas forças para fazer ressoar a mensagem de libertação apresentada em Aparecida.

Fonte: Reflexão de Pamela Santos, Mestranda em Teologia Pastoral pela PUC SP e colaboradora de publicações no site do CEBI.

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