Érica Araium
Desde a década de 1970, com a urgência do desenvolvimento em face à óbvia finitude dos recursos naturais, fala-se em sustentabilidade. Em torno da mesa, muitas vezes, enquanto se espera pela porção aquecida, em micro-ondas, de um processado industrializado qualquer; ou pelo cozimento lento, à perfeição dos fornos mais modernos, de um assado feito à moda da família a ser servido com boa seleção de verdes, quiçá montes de PANC (Plantas Alimentícias Não Convencionais) e frescos da estação.
O termo, contudo, desgastou-se já e tanto quanto os “primos” gourmet, bistrô, top e artesanal… E desde a década de 1994, quando o britânico John Elkington cunhou-a (nascia o conceito Triple Bottom Line) pensando no equilíbrio de três pilares: ambiental, econômico e social. A sustentabilidade de fato mora nos 10%, o resto é esforço de marketing. À mesa, não raro, cozinheiros e comensais contemporâneos se esquecem do óbvio: consumir é esgotar. Devorar o mundo de forma leviana ou sã é definir a paisagem que as próximas gerações verão adiante. Que responsabilidade há nas mãos em frente às gôndolas online e off-line do mundo contemporâneo…
A passos largos, entre bites e bytes, ruma-se à quinta revolução industrial, à era da interação entre humanos e humanoides. Vive-se em era de Big Data e sob a contingência de machine learning – os computadores aprendem sobre os comportamentos dos indivíduos e remodelam necessidades sem que esses se deem conta, ingênuos. No meio agrícola, povoado de monoculturas transgênicas, alguém se esquece de que a tecnologia das ceifadeiras permite a colheita exata da variedade que seja? O que se comerá, talvez, seja, em breve, uma amálgama de referências midiáticas compartilhadas na velocidade de terabytes via Internet das Coisas (do inglês IoT, Internet of Things). E aí mora o perigo do que se compartilha no jantar – do pão às notícias efêmeras e as efemérides de ontem.
Se, em 2011, eram 7 os bilhões de pessoas na Terra, vislumbra-se uma Índia mais populosa que a China antes de 2020 e uma Nigéria adiante dos Estados Unidos, e como o terceiro maior país do mundo, menos de 30 anos. Essas projeções, da Organização das Nações Unidas (ONU – Revisão da Projeção Mundial 2015), indicam, ainda, um “logo ali” ultra povoado por 11 bilhões de pessoas em 2100. Serão muitas as bocas, pois é. E, proporcionalmente, outros bilhões de Homo sapiens (em 2015, era uma em cada 7 pessoas no mundo, segundo a ONU) tão ou mais famintos que Riobaldo em um Grande Sertão (sem) Veredas.
O que muda as circunstâncias do comer para que as paisagens do futuro não sejam desérticas como as do cenário apocalíptico de longas-metragens distópicos como Mad Max? Simples. Cozinhar precisa ser um ato consciente. Da manutenção e preparo das sementes/ fecundações ao cultivo e seleção de matérias-primas que se tornarão ingredientes na panela; à finalização de pratos na esquina da boqueta.
Afinal, ao menos em tese, é possível fazer mais e melhor com o intelecto mais desenvolvido graças ao domínio do fogo (aqui vale citar o antropólogo de Harvard Richard Wrangham, cuja epifania resultou no livro Sustentabilidade – Canibais
Com Garfo e Faca, de 1999. Pegando Fogo – Por Que Cozinhar Nos Tornou Humanos, de 2010, do mesmo autor e igualmente revolucionário).
Lá pela beirada da borda de 1989, o jornalista italiano Carlos Petrini levantou uma bandeira pacifista e fincou-a num território chamado mundo: idealizou o movimento Slow Food. Pela ótica do sujeito (idealista na medida dos novos tempos), e que serviu à criação de lentes corretivas à miopia do século 21, e inspirou extensões do movimento que pulularam mundo afora desde lá, com outros nomes – o alimento precisa ser bom, limpo e justo.
Ou saboroso e natural, rico em memórias afetivas e sabores, respeitoso à biodiversidade e às pessoas que compõem a cadeia produtiva. Nela, sabidamente, coexistem cozinheiro e produtor que, para sobreviverem, carecem do suporte inquestionável de um terceiro personagem – e cujo papel é o de protagonista – o consumidor/comensal (gourmand ou gourmet, cliente, escolha o termo).
Antes de ordenar a degustação do que quer que seja, há que se pensar acerca da origem, caminho e fim dos alimentos. Onde cada insumo foi produzido? Por quais mãos e em quais condições trabalhistas e biológico-científicas? Qual o tamanho da pegada ecológica que determinado insumo deixará como rastro na natureza? O avião ou o navio que transportaram a carga de granos duros italianos (aqueles disponíveis na rede de supermercados daquela rede favorita) limaram, pelo caminho, quantos arrecifes, aves e pescados? O cacau varreu a dignidade de quantas vidas a fim de se recuperar do déficit da vassoura de bruxa e outras doenças nas bordas de Ilhéus, na Bahia; e na África? Quem decretou que orégano, cenoura e tomates redondos devem estar na base da alimentação ocidental a despeito da beldroega e poejo, do mangarito e mandioca, do maxixe e do figo-da-índia? Por que há que se manter, hoje, um Banco Mundial das Sementes do Ártico e contar-se com uma lista chamada de Arca do Gosto (Slow Food) que cresce a cada dia quando se inclui, nela, uma nova leva de espécies ameaçadas de extinção? Por que há quem defenda o bacalhau e o salmão no prato do brasileiro ao invés de exaltar os pescados disponíveis em suas épocas, fresquinhos, numa costa de mais de 7 mil quilômetros de extensão e banhada pelo Atlântico? Por que 30% do que é comestível vai parar no lixo – antes durante e depois de cada refeição? O jornalista Michael Pollan, tanto em Chef’s Table (Netflix) quanto em “Cozinhar, Uma História Natural de Transformação), faz boa parte de perguntas como essas ao investigar o comer contemporâneo.
E o que dizer quando os Estados Unidos da América, por decisão oficial de seu representante máximo, resolvem abdicar, em meados de 2017, do que foi acordado, em 2015, por 195 países signatários dispostos a agir para diminuir o aquecimento global? Donald Trump não está só, infelizmente, na leva dos consumidores inconscientes que visam o desenvolvimento insustentável…
Ora, alguém duvida, ainda, de que a indústria alimentícia só tende a ter problemas, futuramente, se se mantiver atuando tal e qual faz desde a segunda guerra mundial? Há exceções, não duvide. Contudo, em linhas gerais, a maioria prospera, e a despeito do altíssimo teor da assertividade que demonstram seus relatórios de sustentabilidade, graças à lógica “mete o garfo” – da saúde financeira acima de tudo: monoculturas-transgênicos-alta tecnologia-alta produtividade-processos produtivos em larga escala-pasteurização do sabor-desperdício. É claro que produzir-se sem preocupação com o legado que se deixará às próximas gerações não é bom negócio.
Isso sem se falar no duvidoso legado da geração Fast Food – vale lembrar que, em 2017, Fome de Poder (The Founder) chegou às telonas sem tanto estardalhaço mainstream embora o tema abordado pelo roteiro seja – a jornada dos fundadores do McDonald’s, rede mundial capaz de “alimentar” 68 milhões de pessoas, diariamente, em 118 países em alguma de suas mais de 40 mil unidades e sistema take away – super “cool” desde sempre e apontado como tendência ao mundo pós-moderno.
O Brasil que, em junho de 2017, segundo o IBGE, já contava com 207,6 milhões de habitantes, numerava, já em 2015, um rebanho bovino da ordem de 215,2 milhões de cabeças, boa parte delas dedicada à exportação a mais de 150 países. A incongruência numérica é tanta – haver mais bois que pessoas sob o mesmo “teto de vidro” – que não haveria de se estranhar uma operação como a Carne Fraca, deflagrada pela Polícia Federal em março de 2017 e que, em meados de junho do mesmo ano, fez com que a União Europeia disparasse novo alarme das restrições às importações da matéria-prima caso o mercado brasileiro não se adequasse às boas condições de higiene e produção exigidas pelos membros. Não, o hambúrguer não é todo o problema, exatamente. Contudo, um mundo que come mal e não pondera, como se deveria, sobre o mal que se fará, a longo prazo, justamente, às novas gerações.
Felizmente, há contingente preparado para um futuro mais promissor. Esses entendem o que significa pelejar pelo comer compartilhado, no sentido do dividir de responsabilidades e sapiência. Sabem contar histórias empratadas com esmero por meio de criações inspiradas e vivências palmilhadas mundo afora. Não se restringem às fronteiras, ao contrário do que ocorria no início da restauração, ainda no século 18, a colheradas de bouillons restaurants. Ativam sinapses alheias ao toque de share nas redes sociais. Abrem suas fronteiras, em tempo real, diante de milhões de espectadores, ao ativar as câmeras de seus smarthphones para mostrar recém-descobertas. Há um punhado de novos gastrônomos pensando em sustentabilidade a cada dia.
Vale observar o que andam aprontando, em território brasileiro, por exemplo, cozinheiros como Ivan Ralston (do Tuju, de São Paulo, capital do Estado), Rafael Costa e Silva (do Lasai, no Rio de Janeiro, capital do Estado), Mara Salles (do paulistano Tordesilhas, onipresente), Manoella Buffara (do Restaurante Manu, de Curitiba, Paraná), Eudes Assis (do Taioba, de São Sebastião), Jefferson e Janaína Rueda (de A Casa do Porco e do Bar da Dona Onça, de São Paulo, capital daquele Estado), Thiago Castanho (do Remanso do Bosque e Remanso do Peixe, de Belém, do Pará), Helena Rizzo (do Mani, paulistano), Felipe Shaedler (do Bazeiro, de Manaus, na Amazônia) e outros tantos. Alex Atala (do D.O.M., do Dalva e Dito e do recém-inaugurado, espécie de embaixador da cozinha brasileira, pelo óbvio, carece ser citado sempre, pela relevância dos serviços prestados à gastronomia contemporânea brasileira. Defende, em entrevista à revista VIP Junho/2017) que “a relação do homem com o alimento precisa ser revista”. E à FAO, da ONU, em maio do mesmo ano: – “Precisamos promover uma campanha de conscientização para que todos voltem a se reconectar com os alimentos”. Bingo.
Cozinheiros assim sabem que “a gastronomia nos conduz a um saber interdisciplinar e complexo. Interessar-se por tudo aquilo que é relativo ao homem enquanto ser que se nutre exige conhecimentos nos domínios da antropologia, da sociologia, da economia, a química, a agricultura, a ecologia, a medicina, os saberes tradicionais e as tecnologias modernas. Tal corpus científico amplia enormemente o papel reservado aos gastrônomos. Ao mesmo tempo, aumenta o círculo de pessoas que deveriam estudá-lo para melhor governar, melhor confrontar os problemas atuais ou, ainda mais simplesmente, melhor compreender nosso mundo. Como defende Wendell Berry, o poeta-camponês do Kentucky, comer é um ato agrícola”. O trecho remete a artigo de Petrini. Publicado em 2010, no portal do Slow Food Brasil, nunca soou tão vivo e eloquente quanto hoje.
Ora, o papel do novo gastrônomo é o de consumidor consciente e educador do gosto. De influenciador, de formador de opinião. Jamais o de um vazio pop star egocêntrico em busca de estrelas Michelin ou de reconhecimento local pela expoência de seus menus. Ao mesmo tempo, o consumidor que se entende parte da cadeia produtiva cumpre papel assemelhado. O boca-a-boca se avoluma na medida dos acertos: servir o que há de local e fresco, respeitar-se os ritmos das estações, ainda que cada vez menos marcadas pelo vigor das mudanças climáticas. Respeitar-se todos os atores da cadeira produtiva como quem entende a alimentação como um gesto familiar de zelo pela perpetuação da vida e pela manutenção da diversidade.
Quando mapeadas as tendências até 2020 – vide relatórios da Global Food Forums, National Restaurant Association e Brasil Food Trends 2020, por exemplo – vê-se que o consumidor consciente clama por alimentos sem adição de conservantes e aditivos Clean Label), porque quer saber o que come; por insumos sazonais e produtos ofertados por tempo limitado, feitos para o mindset “gotta get it now” – senso de exclusividade na oportunidade; novos cortes de carne (já se compreendeu que um boi não servirá apenas ao mignon); pelos grãos ancestrais ou supergrãos reintroduzidos; pelas variedades locais e sazonais, pelos menus mais democráticos e frescos. Pelo desenvolvimento sustentável de fato. Pela revolução das fronteiras alimentares.
O novo consumidor depreende que, em torno da mesa, cessam-se as guerras tantas. Que os diálogos, comestíveis, servem a amainar os ânimos e a revigorar as certezas. A cada garfada, um religar ao comer ancestral e à revolucionária ordem natural das coisas. Assim, ela pede: para sustentar o corpo e a alma, é preciso lembrar de Lavoisier, de Newton e de Arquimedes. Do princípio da conservação de massas, das reações às ações, do empuxo. Da relatividade de Einsten e da evolução de Darwin. Da precisão de Platão ao ponderar sobre os jogos de sombra com os quais insistimos, muitas vezes, em fitar, inertes. Da tecnologia que conecta multidões e que ata a singularidade de indivíduos ao mistério acortinado em bytes. Do que é empírico e científico. Do inexplicável e santificado.
O futuro não é só o invólucro de hipóteses tangíveis. Sustentar amanhãs, tampouco, semear o que se vê da superfície. É preciso despir-se de certezas para mergulhar em respostas que aplaquem, também, a fome de conteúdo. A informação alimenta. E se presta a enternecer os sentidos. Compartilhar ações sustentáveis é preciso. Praticá-las, imperativo. Espalhe-as.
Érica Araium, 38 anos, é jornalista com especializações em Gestão da Comunicação com o Mercado, Gestão de Marketing, Jornalismo Literário, entre outras. É palestrante e docente do curso de Tecnologia em Gastronomia da Universidade São Francisco (USF) e idealizadora do projeto Diálogos Comestíveis (www.dialogoscomestiveis.com.br).