Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Este é o cara, o homem-burum: Ailton Krenak

24/01/2017

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Leonardo Boff (*)

No meio da balbúrdia dos discursos políticos, golpistas e antigolpistas da atualidade é refrescante e animador entrar em contato com o pensamento e a visão da realidade desta notável liderança dos povos originários que é Ailton Krenak. Ao término da leitura das entrevistas e textos reunidos em livro “Ailton Krenak: encontros” (Azouge A Editorial, Rio, 2015) somos levados a exclamar: “Este é o  cara. Eis aqui  um homem inteiro e integral, um verdadeiro “burum” (ser humano em língua krenak).

Nasceu em 1953 da família indígena dos Krenak que se situa no vale do Rio Doce na divisa do Espírito Santo com Minas Gerais. Sob sua liderança foram criadas duas entidades importantes para a causa indígena: a União das Nações Indígenas (UNI), que articula cerca de 180 etnias diferentes e a Aliança dos Povos da Floresta. Alfabetizou-se tardiamente. Mas para ele o fato não tem o significado que nós lhe atribuímos. “Escrever e ler para mim não é uma virtude maior do que andar, nadar, subir em árvores, correr, caçar, fazer um balaio, um arco, uma flecha”.

O grande ensinamento vem das tradições sagradas das tribos e da inserção na natureza e no universo. Ironicamente observa: “Meu avô viveu até 96 anos. Para meu povo, ele foi um sábio e um guerreiro; para o governo brasileiro foi um  menino, um sujeito que devia ser vigiado e tutelado”.

Contra esse tipo de interpretação e de política discricionária, Krenak move dura crítica. Famoso foi seu discurso pronunciado a 4 de setembro de 1987 na Assembleia Nacional Constituinte. Diante de todos, pintou-se de luto e se vestiu com os símbolos indígenas. Era um protesto contra a forma como eles foram historicamente tratados. Denunciava: “Hoje somos alvo de uma agressão que pretende atingir, na essência, a nossa fé e a nossa confiança… o povo indígena tem regado com sangue cada hectare dos 8 milhões de quilômetros do Brasil”. Mas ficou feliz com as leis aprovadas a favor dos povos originários na Constituição, embora sejam continuamente violadas.

Jamais devemos esquecer uma das páginas mais vergonhosas e cruéis de nossa história. Dom João VI, mal chegado ao Brasil, decretou por Carta Regia de 13 de maio de 1808 uma Guerra ofensiva contra o que chamavam de botocudos (pelo enfeito que usavam no lábio, o botoque). Aí se decretava: deveis considerar como principiada contra estes índios antropófagos uma guerra ofensiva que continuareis sempre em todos os anos nas estações secas e que não terá fim, senão quando tiverdes a felicidade de vos senhorear de suas habitações e de os capacitar da superioridade das minhas reais armas de maneira tal que movidos do justo terror das mesmas, peçam a paz e sujeitando-se ao doce jugo das Leis”. Nada mais arrogante e mentiroso (não eram antropófagos) que semelhante texto. Os Krenak quase foram exterminados. Mas embrenharam-se nas matas e lentamente se refizeram como uma tribo corajosa, inteligente e guerreira que gerou Ailton Krenak.

A principal luta de Ailton é a preservação da identidade tribal seja em seus territórios, seja nas zonas urbanas. Mostra os equívocos das tentativas de aculturá-los, de incorporá-los à sociedade nacional, em fim de “civilizá-los” sem dar-se conta da imensa sabedoria ancestral de que são portadores  e da comunhão profunda que entretém com a natureza e o universo. Atualmente, em meio à crise universal ecológica, mostram-se nossos mestres e nossos doutores.

“Nós somos índios só para os brancos”, diz Krenak. Nós temos nossa identidade e nome: krenak, yanomami, guarani-kaiowa e outros. “Para nós, não existe a América Latina; existe o universo”.

Ele e os de sua tribo são profundamente religiosos. Diz ele: “Eu pratico, mas eu não tenho que ir a um  templo,  não tenho que ir a uma missa. Eu me relaciono com o meu Criador, me relaciono com a natureza e com os fundamentos da tradição de meu povo”. Numa outra entrevista afirma: “Os Krenak acham que nós somos parte da natureza, as árvores são as nossas irmãs, as montanhas pensam e sentem. Isso faz parte de nossa sabedoria, da memória da criação do mundo”. Aqui emerge a mesma experiência de São Francisco de Assis e nos remete à encíclica sobre a ecologia integral do Papa Francisco. Com coragem, contra o profanismo de nossa modernidade, defende o sagrado que está em todas as coisas.

Lembro-me que num dos primeiros congressos sobre ecologia havidos no Brasil coube-me expor a visão de São Francisco sobre a fraternidade universal, com o sol e com todos os seres. Ao término disse o cacique e xamâ Davi Kopenawa dos yanomamis: “Esse não é um santo católico; ele é como nós, um indígena”.

Por fim vale ouvir este testemunho de Allton Krenak: “Eu acho que teve uma descoberta do Brasil pelos brancos em 1500 e depois uma descoberta do Brasil pelos índios na década de 1970 e 1980. A que está valendo é esta última. Os índios descobriram que, apesar de eles serem simbolicamente os donos do Brasil, eles não tem lugar nenhum para viver nesse pais. Terão que fazer esse lugar existir dia a dia expressando sua visão do mundo, sua potência como seres humanos, sua pluralidade, sua vontade de ser e de viver”. Devemos todos apoiar esse justo desiderato.

(*) Leonardo Boff é articulista do JB on line e escreveu: O casamento do Céu com a Terra, Mar de Ideias, Rio 2010.

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