Papa Francisco celebra a Paixão e Morte do Senhor
03/04/2015
Cidade do Vaticano – O Papa Francisco presidiu, nesta Sexta-feira Santa (03/04), na Basílica de São Pedro, a Celebração da Paixão do Senhor. Nesse dia, não se celebra a Santa Missa, mas as funções da Sexta-feira da Paixão com a Liturgia da Palavra, Adoração da Cruz e Comunhão Eucarística.
A homilia da celebração foi feita pelo Pregador da Casa Pontifícia, Frei Raniero Cantalamessa, que baseou a sua reflexão nas palavas de Pilatos: “Eis o homem”, recordando os muitos “Eis o homem” de nossos dias vítimas da fome, pobreza, injustiça e exploração.
“Desses males já se fala muitas vezes, embora nunca o suficiente, e há o risco de se tornarem abstrações. Categorias, não pessoas. Pensemos agora no sofrimento dos indivíduos, das pessoas com nome e identidade concreta; nas torturas decididas a sangue frio e infligidas voluntariamente, neste exato momento, por seres humanos contra outros seres humanos, inclusive crianças”, frisou Frei Cantalamessa.
ÍNTEGRA DA HOMILIA
“Eis o homem!”
Acabamos de ouvir o relato do julgamento de Jesus perante Pilatos. Há nele um momento que nos pede uma atenção especial.
“Pilatos mandou então flagelar Jesus. Os soldados teceram de espinhos uma coroa, puseram-na sobre a sua cabeça e o cobriram com um manto de púrpura. Aproximavam-se dele e diziam: Salve, rei dos judeus! E davam-lhe bofetadas. Pilatos saiu outra vez e disse-lhes: Eis que vo-lo trago fora, para que saibais que não acho nele nenhum motivo de acusação. Apareceu então Jesus, trazendo a coroa de espinhos e o manto de púrpura. Pilatos disse: Ecce homo! Eis o homem!” (Jo 19,1-5).
Entre as muitas pinturas que retratam o Ecce Homo, há uma que sempre me impressionou. É de Jan Mostaert, pintor flamengo do século XVI, e está na National Gallery de Londres. Tentarei descrevê-la. Ela nos ajudará a imprimir melhor na mente o episódio, já que o pintor transcreve fielmente, em cores, os dados do relato evangélico, especialmente do relato de Marcos (Mc 15,16-20).
Jesus tem na cabeça uma coroa de espinhos. Um feixe de arbustos espinhosos que estava no pátio, talvez para fazer fogo, deu aos soldados a ideia dessa cruel zombaria da sua realeza. Da cabeça de Jesus descem gotas de sangue. Sua boca está semiaberta, como que lutando para respirar. Sobre os ombros, sulcados pelos golpes recentes da flagelação, um manto pesado e desgastado, mais próximo da lata que da estopa. Ele tem os pulsos amarrados por uma corda grosseira; em uma das mãos, eles colocaram um pedaço de pau a fazer as vezes de cetro e, na outra, um feixe de varetas, símbolos que ridicularizavam a sua majestade. Jesus não pode mover sequer um dedo; é o homem reduzido à total impotência, o protótipo de todos os algemados da história.
Meditando sobre a Paixão, o filósofo Blaise Pascal escreveu certa vez estas palavras: “Cristo está em agonia até o fim do mundo: não podemos dormir durante este tempo”viii. Há um sentido em que estas palavras se aplicam à pessoa de Jesus mesmo, ou seja, à cabeça do corpo místico e não apenas aos membros. Não apesar de Ele ter ressuscitado e estar vivo, mas justamente porque Ele ressuscitou e está vivo. Deixemos de lado, no entanto, este significado misterioso demais para nós e falemos do sentido mais claro daquelas palavras. Jesus está em agonia até o fim do mundo em cada homem ou mulher submetidos aos mesmos tormentos. “Vós o fizestes a mim” (Mt 25, 40): Ele não disse esta frase apenas sobre quem acredita nele; ele a disse sobre cada homem e cada mulher famintos, nus, maltratados, presos.
Ao menos por uma vez, não pensemos nos males sociais, coletivos: a fome, a pobreza, a injustiça, a exploração dos fracos. Desses males já se fala muitas vezes, embora nunca o suficiente, e há o risco de se tornarem abstrações. Categorias, não pessoas. Pensemos agora no sofrimento dos indivíduos, das pessoas com nome e identidade concreta; nas torturas decididas a sangue frio e infligidas voluntariamente, neste exato momento, por seres humanos contra outros seres humanos, inclusive crianças.
Quantos “Ecce homo” no mundo! Meu Deus, quantos “Ecce homo”! Quantos prisioneiros na mesma condição de Jesus no pretório de Pilatos: sozinhos, algemados, torturados, à mercê de soldados ásperos e cheios de ódio, que se entregam a todo tipo de crueldade física e psicológica, divertindo-se em ver sofrer. “Não podemos dormir, não podemos deixá-los sós!”.
A exclamação “Ecce homo!” não se aplica somente às vítimas, mas também aos carnífices. Ela quer dizer: eis aqui do que o homem é capaz! Com temor e tremor, digamos ainda: eis do que somos capazes nós, homens! Muito distante da marcha inexorável do Homo sapiens sapiens, o homem que, segundo alguns, nasceria da morte de Deus e tomaria o seu lugar.
* * *
Os cristãos não são, certamente, as únicas vítimas da violência homicida que há no mundo, mas não se pode ignorar que, em muitos países, eles são as vítimas marcadas e mais frequentes. Jesus disse um dia aos seus discípulos: “Chegará uma hora em que aqueles que vos matarem julgarão estar honrando a Deus” (Jo 16, 2). Talvez estas palavras nunca tenham achado na história um cumprimento tão pontual quanto hoje.
Um bispo do século III, Dionísio de Alexandria, nos deixou o testemunho de uma Páscoa celebrada pelos cristãos durante a feroz perseguição do imperador romano Décio: “Eles nos exilaram e, sozinhos entre todos, fomos perseguidos e lançados à morte. Mas, ainda assim, celebramos a Páscoa. Todo lugar em que se sofria tornou-se para nós um lugar de celebração da festa: fosse um acampamento, um deserto, um navio, uma pousada, uma prisão. Os mártires perfeitos celebraram a mais esplêndida das festas pascais ao ser admitidos no banquete celeste”viii. Será assim para muitos cristãos também na Páscoa deste ano, 2015 depois de Cristo.
Houve alguém que teve a coragem de denunciar, como leigo, a indiferença perturbadora das instituições mundiais e da opinião pública em face de tudo isto, lembrando a quais consequências essa indiferença já levou no passadoviii. Corremos todos o risco, tanto instituições quanto pessoas do mundo ocidental, de ser Pilatos que lavam as mãos.
A nós, no entanto, não é permitido fazer qualquer denúncia neste dia. Trairíamos o mistério que estamos celebrando. Jesus morreu gritando: “Pai, perdoa-os, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34). Esta oração não é simplesmente murmurada; é gritada para ser bem ouvida. Na verdade, não é sequer uma oração, mas uma exigência imperativa, feita com a autoridade de quem é Filho: “Pai, perdoa-os!”. E como Ele mesmo disse que o Pai escuta todas as suas orações (Jo 11,42), devemos acreditar que Ele ouviu também esta última feita na cruz, e que, portanto, aqueles que crucificaram o Cristo foram perdoados por Deus (é claro que não sem antes se arrependerem de alguma forma) e estão com Ele no paraíso, testemunhando para toda a eternidade o ponto até o qual pode chegar o amor de Deus.
Essa ignorância, como tal, estava só nos soldados. Mas a oração de Jesus não se limita a eles. A grandeza divina do seu perdão consiste no fato de que o perdão também é oferecido aos seus inimigos mais ferozes. É para eles que Jesus alega a desculpa da ignorância. Mesmo que eles tenham agido com astúcia e malícia, eles realmente não sabiam o que faziam, não pensavam que estavam crucificando um homem que era de fato o Messias e Filho de Deus! Em vez de acusar os seus adversários, ou de os perdoar confiando ao Pai Celestial o cuidado de vingá-lo, Ele os defende.
Seu exemplo sugere aos discípulos uma generosidade infinita. Perdoar com a sua mesma grandeza de alma não pode envolver simplesmente uma atitude negativa, de renunciar a querer o mal para quem faz o mal; deve traduzir-se, em vez disso, em uma vontade positiva de lhes fazer o bem, mesmo que apenas com uma oração dirigida a Deus em seu favor. “Orai por aqueles que vos perseguem” (Mt 5, 44). Esse perdão não deve procurar compensação nem sequer na esperança de um castigo divino. Deve ser inspirado por uma caridade que desculpa o próximo, mesmo sem fechar os olhos para a verdade, e que tenta parar os maus para que eles não façam mais mal aos outros nem a si mesmos.
Quereríamos dizer: “Senhor, o que nos pedes é impossível!”, mas Ele nos responderia: “Eu sei. E morri para vos dar o que vos peço. Não vos dei apenas o mandado de perdoar, nem apenas um exemplo heroico de perdão; com a minha morte, eu vos dei a graça que vos torna capazes de perdoar. Eu não deixei ao mundo apenas um ensinamento sobre a misericórdia, como tantos outros também deixaram. Eu sou Deus e, para vós, fiz brotarem da minha morte rios de misericórdia. Deles podeis beber a mãos cheias no Ano Jubilar da Misericórdia que tendes pela frente”.
Então, indagará alguém, seguir a Cristo é sempre um resignar-se passivamente à derrota e à morte? Pelo contrário! “Tende coragem”, disse Ele aos apóstolos antes da Paixão: “Eu venci o mundo” (Jo 16, 33). Cristo venceu o mundo vencendo o mal do mundo. A vitória definitiva do bem sobre o mal, que se manifestará no fim dos tempos, já aconteceu, de fato e de direito, na cruz de Cristo. “Esta é hora do juízo deste mundo” (Jo 12, 31). Desde aquele dia, o mal é o perdedor: tanto mais perdedor quanto mais parece triunfar. O mundo já foi julgado e condenado em última instância, com sentença inapelável.
Jesus derrotou a violência sem opor a ela uma violência maior ainda, e sim sofrendo-a e revelando toda a sua injustiça e inutilidade. Ele inaugurou um novo tipo de vitória, que Santo Agostinho resumiu em três palavras: “Victor quia victima” – “vencedor porque vítima”. Foi ao “vê-lo morrer assim” que o centurião romano exclamou: “Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus!” (Mc 15, 39). Os outros se perguntavam o que significava o alto brado que Jesus tinha dado ao morrer (Mc 15, 37). O centurião, que era experiente em lutas e lutadores, reconheceu de imediato que aquele era um grito de vitóriaviii.
O problema da violência nos persegue, nos choca, inventando formas novas e espantosas de crueldade e de barbárie. Nós, cristãos, reagimos horrorizados à ideia de que se possa matar em nome de Deus. Alguém poderia objetar: mas a Bíblia também não está cheia de histórias de violência? Deus mesmo não é chamado de “Senhor dos Exércitos”? Não é atribuída a Ele a ordem de exterminar cidades inteiras? Não é Ele quem decreta, na Lei mosaica, numerosos casos de pena de morte?
Se tivessem dirigido a Jesus, durante a sua vida, esta mesma objeção, Ele certamente teria respondido o que respondeu sobre o divórcio: “Foi por causa da dureza do vosso coração que Moisés vos permitiu repudiar vossas mulheres, mas no princípio não foi assim” (Mt 19,8). Também sobre a violência, “no princípio não foi assim”. O primeiro capítulo do Gênesis mostra um mundo onde a violência não é sequer pensável, nem dos seres humanos entre si, nem entre homens e animais. Nem sequer para vingar a morte de Abel, e assim punir um assassino, é lícito matar (cf. Gn 4, 15).
Disse ainda o capuchinho, “então, indagará alguém, seguir a Cristo é sempre um resignar-se passivamente à derrota e à morte? Pelo contrário! “Tende coragem”, disse Ele aos apóstolos antes da Paixão: “Eu venci o mundo”. Cristo venceu o mundo vencendo o mal do mundo.
“Os verdadeiros mártires de Cristo não morrem com os punhos cerrados, mas com as mãos juntas. Tivemos tantos exemplos recentes”, disse Frei Cantalamessa, recordando que foi Cristo quem deu aos 21 cristãos coptas mortos pelo Estado Islâmico na Líbia, em 22 de fevereiro passado, a força para morrerem murmurando o seu nome.
Frei Raniero Cantalamessa
Fonte: Rádio Vaticano