Notícias - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

O legado do Seráfico Pai à Cristologia

03/11/2012

Notícias


Por Moacir Beggo
São Francisco de Assis, que se considerava um iletrado, não fez uma reflexão sistemática sobre Cristologia, mas a partir de sua experiência profunda de encontro e seguimento de Jesus Cristo, surgiram na Igreja grandes mestres franciscanos, entre eles São Boaventura e João Duns Scotus.

Durante cinco dias, de 15 a 19 de outubro, essa Cristologia Franciscana foi tema do Curso promovido pela Fraternidade de São Boaventura, em Rondinha, sob a coordenação de Frei João Mannes, que contou ainda com os palestrantes Frei Fábio Cesar Gomes e Frei Orlando Bernardi.

Um grupo de mais de 30 pessoas, entre leigos, religiosas e frades, participou da reflexão sobre a pessoa e a obra de Jesus Cristo no âmbito da Escola Franciscana. Para isso, Frei Fábio, que é doutor em Teologia com especialização em Espiritualidade Franciscana, falou sobre “Jesus Cristo na vida e nos escritos de São Francisco e Santa Clara”; Frei João, doutor em Filosofia, refletiu sobre dois grandes mestres da Cristologia Franciscana: São Boaventura e João Duns Scotus; e Frei Orlando, doutor em Teologia Sistemática e perito em Franciscanismo, trouxe para o debate “Questões cristológicas da atualidade e a atualidade da Cristologia Franciscana”.

Segundo Frei Mannes, o bem-sucedido curso no ano passado sobre Santa Clara, quando se celebrou o jubileu de 800 anos de fundação da Segunda Ordem, levou a criar este segundo curso externo na Fraternidade São Boaventura, que está situada no município de Campo Largo, na região da Grande Curitiba. É nesta fraternidade que moram os frades estudantes de Filosofia da Província da Imaculada Conceição. Os participantes ficaram hospedados no local e, durante as celebrações eucarísticas e as refeições, puderam participar e conhecer um pouco da vida dos frades formadores, assim como dos frades estudantes.

Acompanhe alguns pontos das reflexões durante o curso:

Frei Fábio Cesar Gomes

O Jesus de Francisco e Clara
Frei Fábio abriu sua palestra fazendo a pergunta: “Quem é o Jesus que está no centro da experiência de Francisco e Clara?”. Para respondê-la, lembrou que a imagem de Cristo que predominava na alta Idade Média era a do Cristo Pantocrátor, a palavra grega que é traduzida como «Onipotente». Ou seja, apresenta o Cristo Glorioso, sentado no seu trono como juiz, soberano, que governa sobre todas as coisas e sobre tudo.

“Essa visão foi reforçada por causa da estrutura política medieval, quando predominavam os senhores sobre os vassalos”, reforçou Frei Fábio, frisando que nesta época a mensagem que se passava era a da divindade de Cristo.

Mas, segundo Frei Fábio, paralelamente aconteceu outro movimento de retorno à humanidade de Cristo que começou com Bernardo de Claraval e chegou à sua plenitude com Francisco de Assis.

“Cristo passa a ser considerado na sua existência humana e sofredora. Jesus é verdadeiro Deus, mas é verdadeiro homem”, acrescenta o palestrante. Ou seja, a imagem de Cristo como Deus e Senhor não possui, em Francisco, aquela conotação terrificante própria da piedade popular do seu tempo.

Usando o tempo todo como base as Fontes Franciscanas, Frei Fábio levou os participantes ao centro da espiritualidade franciscana. “O Cristo de Francisco é esse da kenosis, que significa esvaziamento. Ou seja, Cristo se esvazia de sua condição divina e vai ao mais profundo da condição humana”, diz, enfatizando também que “não devemos perder de vista que Francisco não separa a divindade da humanidade de Cristo.

Segundo o palestrante, Cristo assumiu a fragilidade humana e isso explica por que a devoção pelo nascimento do Menino Deus e a sua encarnação cotidiana na Eucaristia é tão forte em Francisco. Além disso, Francisco retomou um conceito que estava esquecido no Cristianismo: o seguimento de Cristo.

Ao abordar a “Consciência da divindade e transcendência de Cristo”, Frei Fábio destacou os títulos cristológicos usados por Francisco. “Senhor (Dominus) é o substantivo mais usado nos seus Escritos (410 vezes), seguido pelo substantivo frater (irmão), 306 vezes. A expressão cristológica mais frequente nos Escritos é ‘Nosso Senhor Jesus Cristo’”, observou.
Frei Fábio insistiu muito na ótica cristológica de Francisco: Jesus Cristo pobre, humilde e crucificado. “A religião de Francisco não é somente aquela do temor reverencial ao Senhor, mas, também da reposta cheia de reconhecimento e amor ao ‘Amor que não é Amado’”, emendou.

Segundo Frei Fábio, a experiência de Jesus Cristo de Francisco pode ser definida como um “cristocentrismo trinitário”.

Para ele, Santa Clara, melhor do que ninguém, assimilou a visão cristológica de Francisco e acrescentou a sua contribuição com elementos próprios do feminino, como podemos encontrar na essência de sua espiritualidade, especialmente nas Cartas escritas a Inês de Praga, quando utiliza uma imagem muito difundida na Idade Média, o espelho.

Frei João Mannes

No centro da Cristologia
Frei João Mannes fica muito à vontade para falar de São Boaventura, já que é Doutor com especialização na Filosofia Mística de São Boaventura. Segundo Frei João, Boaventura é um discípulo de São Francisco, cujo amor a Jesus Cristo crucificado transformou-o num alter Christus. Essa experiência de Francisco do Serafim alado em forma de crucificado, e que lhe incorporou os estigmas de Jesus Cristo, está na base do pensamento franciscano, especialmente de São Boaventura, e que, por isso, é também chamado de Doutor Seráfico.

Segundo as explicações do professor Mannes, Boaventura vê Jesus Cristo dentro da perspectiva da Santíssima Trindade, e o princípio que comanda a vida interna de Deus é o Bem. Deus se comunica desde toda a eternidade no mistério intratrinitário, gerando o Verbo, o seu dileto Filho.

De modo que, doando-se, Deus (Pai) gera o Filho amado, por amor-bondade (Espírito Santo).
Assim, para o Doutor Seráfico, a origem (princípio) do universo é o próprio Deus que, transbordando de bondade e contemplando o seu Filho, cria e comunica o seu ser a cada uma de suas criaturas. A criação é um ato de amor incondicional de Deus Uno e Trino, Potência, Sabedoria e Vontade.

Todavia, observa Frei João, a obra máxima de Deus, ad extra, não é a criação, mas a encarnação do Filho de Deus. E Deus assumiu a condição humana em Jesus de Nazaré porque livremente quis manifestar-se maximamente na humanidade de Jesus Cristo e, por amor aos seus filhos, libertá-los do pecado. A encarnação é obra de Deus “que a realizou como convinha, conforme a liberdade de arbítrio. (…) A liberdade de arbítrio exige que não seja forçada por nenhuma coisa” (Boaventura).

Assim, enfatizou o professor, para Boaventura a encarnação do Filho de Deus não foi condicionada pelo pecado do homem. Porém, era conveniente à natureza sumamente boa de Deus, encarnar-se e libertar o homem “sofrendo uma morte indevida e voluntária”. Enfim, movido pela sua bondade e misericórdia, Deus se encarnou para reconduzir o homem e o mundo ao princípio originário de tudo, pela via da humildade, da pobreza e da caridade.

Frei João também destacou que o franciscano João Duns Scotus deu uma resposta sui generis à pergunta: Por que um homem Deus? (Cur Deus Homo?). Para Scotus, mesmo que Adão não tivesse pecado, Cristo teria vindo. Isto porque a encarnação está na intenção originária da criação divina. Em outras palavras, Deus criou o mundo em vista da encarnação. A encarnação do Verbo é a obra suma de Deus. O princípio e o fim de tudo é o Verbo incriado e encarnado.

Por fim, concluiu Frei João, “Jesus Cristo fez-se para nós o Caminho, não por obrigação, mas por amor a cada um dos seus irmãos e irmãs, filhos e filhas de Deus Pai e Filho e Espírito Santo”.

Frei Orlando Bernardi

Cristologia na atualidade
Frei Orlando, doutor em Teologia Sistemática e perito em Franciscanismo, abriu sua palestra lembrando que seguir Jesus é uma proposta desafiadora. “Hoje, há quem se pergunte se vale a pena ser cristão! E diante do esvaziamento de nossas igrejas, há quem diga que os cristãos não conseguem mostrar que o evangelho é uma boa notícia. Em todo o caso, para ser cristão na pós-modernidade, além de coragem é preciso de convencimento de que os valores de sua fé são mais importantes que os da cultura atual”, observou, perguntando: Se olharmos para o universo cristão, a maioria se contenta com o que aprendeu no catecismo da 1ª Eucaristia. Mas, afinal, é isso suficiente para ir ao céu?

Segundo Frei Orlando, mais de 2 mil anos depois, Jesus causa impactos profundos por sua imensa misericórdia (Mt 5,7; Lc 6,36; Mt 15,32, Mt 9,36); por sua liberdade em observar as leis ou também em violá-las (sábado e outras); por acolher os pobres, pecadores e marginalizados; por sentar-se à mesa com eles e celebrar a alegria do viver e, finalmente, causa impacto por confiar num Deus bom e totalmente próximo a quem chama o de Pai (Abbá) e a quem se dedica e entrega de modo único e total. Tudo isso era visto como uma boa notícia.

E mais uma vez questionou: “Por que a Teologia não consegue mais ser instrumento da compreensão alegre e jubilosa do anúncio da boa notícia de Jesus Cristo ressuscitado? Será que a rotina, a mesmice e a repetição tornaram a boa notícia insípida e sem sabor? Para os ouvintes de Jesus, salvação não era apenas a libertação de algum mal ou pecado, mas a descoberta da presença de um Deus que quer a felicidade de seus filhos. Para Jesus, sua identidade consistia em identificar-se com a causa de Deus”, disse.

O tema “O Jesus histórico e o Cristo da fé” tomou grande parte de sua palestra e, segundo Frei Orlando, ainda permanece o desafio para a moderna Cristologia mostrar em que sentido Jesus de Nazaré é, também para a pós-modernidade, uma boa notícia de libertação.
Ao falar sobre Cristologia Franciscana, lembrou que a piedade oficial da época de Francisco via a humanidade de Jesus como um fato teológico, mas ele a situa experiencialmente como um homem entre os homens.

Segundo Frei Orlando, todo o Evangelho foi recuperado em sua totalidade por Francisco e, com isso, a própria figura de Cristo também é apresentada em nova visão, principalmente na experiência com os pobres, marginalizados e pecadores.

“Na medida em que se participa da dor humana é possível entender ‘que não há maior amor que dar a vida por seus irmãos’ (Jo 15,12). É do Evangelho e seguindo Jesus Cristo que ele aprende o amor aos homens”.