Notícias - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Morre Bento XVI, “humilde trabalhador na vinha do Senhor”

31/12/2022

Papa Francisco

                                                                                                                       Imagem: Vatican Media

Papa emérito morreu às 9h34 deste sábado, 31 de dezembro

Comunicado do diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé, Matteo Bruni:

“Com pesar informo que o Papa Emérito Bento XVI faleceu hoje às 9h34, no Mosteiro Mater Ecclesiae, no Vaticano. Assim que possível, serão enviadas novas informações”

Desde quarta-feira passada, quando o Papa Francisco afirmou que seu predecessor estava muito doente, fiéis do mundo inteiro se uniram em oração pela saúde do Papa emérito. Bento XVI tinha 95 anos e vivia no Mosteiro Mater Ecclesiae desde sua renúncia ao ministério petrino, em 2013.

O corpo do Papa emérito estará na Basílica de São Pedro para a saudação dos fiéis a partir da segunda-feira, 2 de janeiro.


“Deus é amor”, a chave do pontificado

Desde 1417, a morte de um (ex) Papa não significava o fim de um pontificado. A morte de Bento XVI, nome de batismo Joseph Ratzinger, ocorreu hoje no Vaticano, quase dez anos após sua renúncia, que ele anunciou de surpresa em 11 de fevereiro de 2013, com a leitura de uma breve declaração em latim diante dos cardeais estupefatos. Nunca em dois milênios de história da Igreja um Papa deixou a Cátedra por sentir-se fisicamente inadequado para suportar o peso do pontificado. Ademais, em uma resposta dada ao jornalista Peter Seewald no livro-entrevista “Luz do Mundo” publicada três anos antes, ele havia de algum modo antecipado um: “Quando um Papa chega à conclusão clara de que não é mais capaz física, mental e espiritualmente de realizar a tarefa que lhe foi confiada, então ele tem o direito e em algumas circunstâncias até o dever de renunciar”. Apesar do fato de que o epílogo de seu reinado foi anterior ao fim de sua vida, constituindo um precedente histórico de enorme significado, não seria generoso lembrar Bento XVI apenas por isso.

‘Teen ager’ teológico no Concílio

Nascido em 1927, filho de um gendarme, em uma família simples e muito católica na Baviera, Joseph Ratzinger foi um protagonista na Igreja do século passado. Ordenado sacerdote junto com seu irmão Georg em 1951, tornou-se doutor em teologia dois anos mais tarde e em 1957 recebeu a licença para ensinar como professor de teologia dogmática. Ele ensinou em Freising, Bonn, Münster, Tübingen e, por fim, em Regensburg. Com ele falece o último dos Pontífices pessoalmente envolvidos nos trabalhos do Concílio Vaticano II. Como um teólogo muito jovem e já estimado, Ratzinger havia acompanhado de perto a assembleia como um especialista do cardeal Frings de Colônia, que estava próximo à ala reformista. Ele estava entre aqueles que criticaram fortemente os esquemas preparatórios feitos pela Cúria Romana, mais tarde varridos pela decisão dos bispos. Para o jovem teólogo Ratzinger, os textos “devem dar respostas às perguntas mais urgentes e devem fazê-lo, na medida do possível, não julgando e condenando, mas usando uma língua materna”. Ratzinger elogia a reforma litúrgica que estava chegando e as razões de sua inevitabilidade providencial. Ele diz que, para redescobrir a verdadeira natureza da liturgia, era necessário “romper o muro do latim”.

Custódio da fé com Wojtyla

Mas o futuro Bento XVI também testemunhou diretamente a crise pós-conciliar, a contestação nas universidades e nas faculdades teológicas. Ele testemunha o questionamento das verdades essenciais da fé e da experimentação selvagem em âmbito litúrgico. Já em 1966, um ano após o final do Concílio, ele disse ver o avanço de um “cristianismo a preços rebaixados”.

Paulo VI o nomeou arcebispo de Munique em 1977, aos 50 anos de idade e algumas semanas mais tarde o criou cardeal. Em novembro de 1981, João Paulo II confiou-lhe a condução da Congregação para a Doutrina da Fé. Era o início de uma forte parceria entre o Papa polonês e o teólogo bávaro, destinada a desfazer-se somente com a morte de Wojtyla, que até o final recusou a renúncia de Ratzinger, não querendo se privar dela. Estes foram os anos em que o ex Santo Ofício colocou os pontos nos “is” em muitos assuntos: colocou freios na Teologia da Libertação, que usa a análise marxista, e tomou uma posição diante do surgimento de grandes problemas éticos. A obra mais importante é certamente o novo Catecismo da Igreja Católica, um trabalho que durou seis anos e que viu a luz em 1992.

“Humilde trabalhador na vinha”

Após a morte de Wojtyla, o conclave de 2005 chamou para sucedê-lo em menos de 24 horas um homem já idoso – ele tinha 78 anos de idade – universalmente estimado e respeitado até mesmo por seus oponentes. Da sacada da Basílica de São Pedro, Bento XVI se apresenta como “um humilde trabalhador na vinha do Senhor”. Alheio a qualquer protagonismo, ele diz que não tem “programa”, mas quer “ouvir, com toda a Igreja, a palavra e a vontade do Senhor”.

Auschwitz e Regensburg

Inicialmente tímido, ele não renunciou a viajar: seu pontificado também será itinerante como o de seu antecessor. Um dos momentos mais comoventes foi a visita a Auschwitz em maio de 2006, com o Papa alemão dizendo: “Em um lugar como este, as palavras falham, só um silêncio perplexo pode permanecer – um silêncio que é um grito interior a Deus: Por que pudeste tolerar tudo isso?” 2006 é também o ano do caso Regensburg, quando uma frase antiga sobre Maomé, que o Pontífice cita sem fazer sua na universidade onde foi professor, é instrumentalizada e desencadeia protestos no mundo islâmico. Desde então, o Papa multiplicará seus sinais de atenção em relação aos muçulmanos. Bento XVI enfrenta viagens difíceis, se confronta com a secularização galopante das sociedades descristianizadas e a dissidência dentro da Igreja. Ele celebra seu aniversário na Casa Branca junto com George Bush Jr. e alguns dias depois, em 20 de abril de 2008, reza no Ground Zero abraçando os parentes das vítimas do 11 de setembro.

A encíclica sobre a alegria

Embora, como prefeito do ex Santo Ofício, ele foi frequentemente etiquetado como “panzerkardinal”, como Papa ele fala constantemente da “alegria de ser cristão”, e dedica sua primeira encíclica ao amor de Deus, “Deus caritas est”. No começo do ser cristão – escreve ele – não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um evento, com uma Pessoa”. Ele também encontra tempo para escrever um livro sobre Jesus de Nazaré, uma obra única que será publicada em três tomos. Entre as decisões a serem lembradas estão o Motu proprio liberalizando o missal romano pré-conciliar e o estabelecimento de um Ordinariato para permitir que as comunidades anglicanas retornem à comunhão com Roma. Em janeiro de 2009, o Papa decidiu revogar a excomunhão dos quatro bispos ordenados ilicitamente por dom Marcel Lefebvre, entre eles também Richard Williamson, negacionista das câmaras de gás. As polêmicas explodem no mundo judeu, o Papa pega caneta e papel e escreve para os bispos do mundo assumindo toda a responsabilidade.

A resposta aos escândalos

Os últimos anos são marcados pelo retorno explosivo do escândalo da pedofilia e pelo Vatileaks, o vazamento de documentos retirados da escrivaninha papal e publicados em um livro. Bento XVI é determinado e duro em enfrentar o problema da “sujeira” dentro da Igreja. Ele introduz regras muito rigorosas de combate ao abuso contra menores, pede à Cúria e aos bispos que mudem mentalidade. Ele chega a dizer que a mais grave perseguição para a Igreja não vem de seus inimigos externos, mas do pecado dentro dela. Outra reforma importante é a financeira: é o Papa Ratzinger quem introduz a regulamentação contra a lavagem de dinheiro no Vaticano.

Igreja livre de dinheiro e poder

Diante dos escândalos e do carreirismo eclesiástico, o idoso Papa alemão continua a fazer apelos à conversão, à penitência e à humildade. Durante sua última viagem à Alemanha, em setembro de 2011, pediu que a Igreja fosse menos mundana: “Exemplos históricos mostram que o testemunho missionário de uma Igreja “desmundanizada” emerge mais claramente. Livre de fardos e privilégios materiais e políticos, a Igreja pode dedicar-se melhor e de forma verdadeiramente cristã ao mundo inteiro, pode estar verdadeiramente aberta ao mundo…”. (ANDREA TORNIELLI – Vatican News)


A renúncia: o primeiro Papa emérito

“Quando um papa chega à clara consciência de já não se encontrar em condições físicas, mentais e espirituais de exercer o cargo que lhe foi confiado então tem o direito – e, em algumas circunstâncias, também o dever – de renunciar”: são palavras de Bento XVI no livro-entrevista “Luz do Mundo” de 2010. Em 2013, eis que chega aquele momento, e a Igreja e o mundo se encontram com o primeiro Papa emérito.

Mas o Papa Bento foi realmente o primeiro? Logo depois do fatídico anúncio por parte de Bento XVI, em 11 de fevereiro de 2013, começou a desenfreada busca para verificar se na história já tinha acontecido alguma coisa do gênero. E logo foi encontrado o Papa da Idade Média Celestino V (Pietro Morrone, morto em 1296) que, pouco depois de cinco meses na Cátedra de Pedro, manifestou o desejo de voltar à sua vida de eremita para depois ser preso pelo seu sucessor e morrer em condições miseráveis.

De um ponto de vista histórico não é claro se Celestino V seja verdadeiramente um “precursor” de Bento XVI porque os estudiosos duvidam da “espontaneidade” do seu gesto. Além disso há papas e antipapas obrigados à renúncia como por exemplo Gregório XII que renunciou a pedido do Concílio de Constância, para ajudar a acabar com o Grande Cisma do Ocidente. Mas em 2013 foi somente Celestino a ser citado como exemplo.

Na “Divina Comédia”, Dante Aleghieri manifestou pouca simpatia por Celestino V e colocou o papa vil no Inferno, “colui / che fece per viltade il gran rifiuto (Inf., III, 59-60)”. Em alguns âmbitos eclesiásticos a decisão de Bento XVI recebeu uma consideração semelhante, e a expressão de que não se desce da cruz, começou a se espalhar em todo o mundo. Mas a grande maioria – católicos e não católicos – entenderam essa decisão e a respeitaram, também pela vida de silencioso retiro à que se dedicou. Foi deste modo que Bento XVI demonstrou a sua grandiosidade e por isso mesmo, apesar de todos os precursores, na realidade é o primeiro.

O Direito canônico

O Direito canônico apresenta esta possibilidade. De fato, segundo o cân. 332 § 2 “Se acontecer que o Romano Pontífice renuncie ao cargo, para a validade requer-se que a renúncia seja feita livremente, e devidamente manifestada, mas não que seja aceite por alguém”. E no Consistório de 11 de fevereiro foram respeitadas as duas condições.

Eis que o direito reflete a posição jurídica única do Pontífice: no cân. 331 afirma-se que o Papa tem “poder ordinário, supremo, pleno, imediato e Universal. Portanto para a Igreja ele é o supremo legislador.

Esta autoridade remonta ao Apóstolo Pedro, ao qual Jesus Cristo dirige as mesmas palavras que são legíveis, em letras garrafais, no círculo interno da cúpula de São Pedro: “Por isso, eu te digo: tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as forças do Inferno não poderão vencê-la” (Mt 16-18).

Mas como vive um Papa emérito e qual o seu papel na Igreja, se não consta no Direito Canônico. É um “Bispo de Roma emérito”, um “Papa emérito” ou volta a ser um cardeal? Continua a usar o nome como Pontífice ou volta a ser Joseph Ratzinger? Continua a usar as vestes brancas? São as perguntas que foram levantadas depois de 11 de fevereiro de 2013. Em uma entrevista ao jornal alemão FAZ – Frankfurter Allgemeine Zeitung – de dezembro de 2014, o Papa emérito admitiu que num primeiro momento tinha pensado em escolher o nome “padre Bento”, para criar um claro afastamento. Porém, depois prevaleceu a escolha do nome “Papa emérito Bento”; e continuou a usar vestes brancas.

Como amadureceu a decisão

A renúncia não foi uma decisão impulsiva. No decorrer de muitas entrevistas com pessoas de sua confiança, pôde-se constatar, sucessivamente, que há muito tempo Papa Bento meditava sobre esta decisão, que amadureceu com o tempo. Já em 2010 no livro-entrevista ele falava da sua eleição ao Pontificado como de “uma guilhotina”. “Tinha certeza que este cargo não seria destinado a mim, mas que Deus, depois de tantos anos de fadiga, teria me concedido um pouco de paz e tranquilidade”: palavras suas em 2010 (Opera omnia, 13.2, p. 864).

No mesmo livro-entrevista ele disse também que considerava possível uma sua renúncia e na ocasião falou do direito e do dever da renúncia (p. 868). Alguns anos depois serviu-se deste direito – que talvez ele considerasse também um dever.

Com este gesto, Papa Bento mudou o ministério. Mesmo se talvez a possibilidade sempre tenha existido e se os papas que o precederam, como Paulo VI, por exemplo, ou João Paulo II, talvez tenham pensado nisso, mas Bento XVI viu claramente que se tratava de um “direito e, em algumas circunstâncias, também um dever”, e agiu deste modo quando, segundo sua avaliação, tinha chegado o momento. (Pe. Bernd Hagenkord (in memoriam) – Cidade do Vaticano)


Lombardi: Bento XVI, uma vida dedicada ao encontro do rosto de Jesus

O ex-porta-voz de Bento XVI traça um perfil de Joseph Ratzinger e de sua extraordinária missão centrada na fé em Cristo. Uma fé sempre em diálogo com a razão e, portanto, com o mundo, em busca da verdade que não é um conjunto de conceitos, mas é o Amor que se fez carne.

“Muito em breve eu me encontrarei diante do último juiz da minha vida. Mesmo se olhar para trás à minha longa vida eu possa ter tanto motivo de espanto e de medo, estou, porém, com a alma feliz porque confio firmemente que o Senhor não é apenas o juiz justo, mas ao mesmo tempo o amigo e o irmão que já sofreu ele mesmo as minhas insuficiências e por esse motivo, enquanto juiz, é ao mesmo tempo o meu advogado. Em vista da hora do juízo a graça de ser cristão se torna mais clara para mim. O ser cristão me dá conhecimento, além disso também me dá a amizade com o juiz da minha vida e me permite atravessar com confiança a porta escura da morte. A propósito, me retorna continuamente no meu pensamento aquilo que João conta no início do Apocalipse: ele vê o Filho do homem em toda a sua grandeza e cai como morto aos seus pés. Mas Ele, colocando sobre ele a mão direita, lhe diz: ‘Não temas! Sou eu…’ (cfr Ap 1,12-17)”. Assim escreveu Bento XVI na sua última carta, datada de 6 de fevereiro, ao final de dias dolorosos “de exame de consciência e reflexão” sobre as críticas que lhe foram feitas por uma história de abusos quando era arcebispo de Mônaco, há mais de 40 anos.

Enfim, o momento do encontro com o Senhor chegou. Não se pode certamente dizer que foi inesperado e que o nosso grande ancião tenha chegado desprevenido. Se o seu predecessor nos havia dado um testemunho precioso e inesquecível de como viver na fé uma doença progressiva dolorosa até a morte, Bento XVI nos deu um belo testemunho de como viver na fé a fragilidade crescente da velhice por muitos anos até a morte. O fato de haver renunciado ao papado a tempo oportuno lhe deu a permissão – e a nós com ele – de percorrer este caminho com grande serenidade.

Ele teve o dom de completar o seu caminho conservando uma mente lúcida, aproximando-se com esperança, plenamente consciente, a essas “realidades últimas” sobre as quais teve como poucos a coragem de pensar e falar, graças à fé recebida e vivida. Seja como teólogo ou seja como Papa ele nos falou de maneira profunda, crível e convincente. As suas páginas e as suas palavras sobre escatologia, a sua encíclica sobre esperança permanecem como um presente para a Igreja sobre a qual a sua oração silenciosa pôs o selo nos longos anos de retiro “sobre o monte”.

Dentre as muitíssimas coisas que podem ser recordadas do seu pontificado, aquela que honestamente me pareceu e continua a se revelar como a mais extraordinária para mim foi que precisamente naqueles anos conseguiu escrever e completar a sua trilogia sobre Jesus. Como poderia um Papa, com as responsabilidades e as preocupações da Igreja universal, que efetivamente carregava sobre os ombros, ser capaz de escrever uma obra como aquela? Certamente era o resultado de uma vida de reflexão e de pesquisa. Mas indubitavelmente a paixão interior, a motivação, deveriam ser formidáveis. As suas páginas vinham da caneta de um estudioso, mas ao mesmo tempo de um crente que havia empenhado a sua vida na busca de um encontro com o rosto de Jesus e que via neste encontro ao mesmo tempo a realização da sua vocação e do seu serviço aos outros.

Neste sentido, por mais que eu entenda bem porque ele havia esclarecido que aquela obra não deveria ser considerada “magistério pontifício”, continuo a pensar que essa seja parte essencial do seu testemunho de serviço como papa, isto é, como fiel que reconhece em Jesus o Filho de Deus, e em cuja fé se pode continuar a apoiar também a nossa. Dessa forma não posso considerar casual o fato de que o tempo da decisão da renúncia ao papado, no verão de 2012, coincida com aquele da conclusão da trilogia sobre Jesus. Tempo de cumprimento de uma missão centrada sobre a fé em Jesus Cristo.

Não há qualquer dúvida de que o pontificado de Bento XVI foi caracterizado mais por seu magistério do que por ações de governo. “Eu sabia bem que a minha força – se eu tivesse uma – era aquela da apresentação da fé em modo adequado à cultura do nosso tempo” (…). Uma fé sempre em diálogo com a razão, uma fé sensata; uma razão aberta à fé. Justamente Papa Ratzinger foi respeitado por quem vive atento aos movimentos do pensamento e do espírito e procura ler os acontecimentos no seu sentido mais profundo e a longo prazo, sem firmar-se na superfície dos eventos e das mudanças. Não é à toa que alguns de seus grandes discursos diante de públicos não só eclesiais, mas de representantes de toda a sociedade, ficaram gravados na memória de toda a sociedade, em Londres, em Berlim… Não tinha medo do confronto com ideias e posições diversas, olhava com lealdade e clarividência às grandes interrogações, ao ofuscamento da presença de Deus diante do horizonte da humanidade contemporânea, às perguntas sobre o futuro da Igreja, em particular em seu país e na Europa. E procurava encarar os problemas com lealdade, sem evitá-los, por mais dramáticos que fossem; mas a fé e a inteligência o permitiam encontrar sempre uma perspectiva de esperança.

Os valores intelectuais e cultural de Joseph Ratzinger são demasiadamente conhecidos sem que seja preciso repetir louvores. Quem soube compreendê-lo e valorizá-lo para a Igreja universal foi João Paulo II. Por 24 anos dos 26 de pontificado do seu predecessor, Ratzinger foi o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Duas personalidades diferentes, mas – se me permitem dizer – uma “combinação perfeita”. O ilimitado pontificado de Papa Wojtyla não pode ser pensado adequadamente, do ponto de vista doutrinal, sem a presença do cardeal Ratzinger e a confiança colocada sobre, na sua teologia eclesial, na dimensão e no equilíbrio do seu pensamento. Servir à unidade da fé da Igreja nos decênios sucessivos ao Vaticano II fazendo fronte a tensões e desafios da época no diálogo com o hebraísmo, no ecumenismo, no diálogo com as outras religiões, no confronto com o marxismo, no contexto da secularização e da transformação da visão do homem e da sexualidade… conseguir propor uma síntese doutrinal ampla e harmônica como aquela do Catecismo da Igreja Católica, acolhida pela grande maioria da comunidade eclesial com inesperado consenso, chegando a conduzir essa comunidade a cruzar o limiar do terceiro milênio sentindo-se portadora de uma mensagem de salvação pela humanidade…

Na realidade, aquela longíssima e extraordinária colaboração foi a preparação para o pontificado de Bento XVI, visto pelos cardeais como o mais indicado continuador e sucessor da obra de Papa Wojtyla. De um ponto de vista integral o itinerário de Joseph Ratzinger não escapa – pelo contrário, impressiona – a continuidade do seu fio condutor e ao mesmo tempo a progressiva ampliação do horizonte do seu serviço.

A vocação de Joseph Ratzinger é desde o início uma vocação sacerdotal, ao mesmo tempo voltada ao estudo teológico e ao serviço litúrgico e pastoral. Progride nas suas diversas etapas, do seminário às primeiras experiências pastorais e ao ensinamento universitário; depois o horizonte tem uma primeira grande ampliação para a experiência da Igreja universal com a participação no Concílio e a parceria com os grandes teólogos da época; sucessivamente retorna à atividade acadêmica de aprofundamento teológico, mas sempre no centro do debate e da experiência eclesial; em seguida se aprofunda no serviço pastoral da grande arquidiocese de Mônaco; passa definitivamente ao serviço da Igreja universal com o chamado a Roma na condução da Doutrina da Fé; enfim, um novo chamado o conduz ao governo de toda a comunidade da Igreja, para conduzi-la com inteligência sobre as vias do nosso tempo, preservando a unidade e a autenticidade da sua fé. O lema escolhido na ocasião da ordenação episcopal, “Cooperadores da verdade” (3 João, 8), exprime muito bem todo o fio da vida e da vocação de Joseph Ratzinger, se se compreende que para ele a verdade não significa um conjunto de conceitos abstratos, mas em última análise era encarnada na pessoa de Jesus Cristo.

O pontificado de Bento XVI é e será comumente lembrado também como um pontificado marcado por tempos de crise e dificuldade. É verdade e não seria correto ignorar esse aspecto. Mas deve ser visto e avaliado não superficialmente. Quanto às críticas e oposições internas ou externas, ele mesmo lembrou com um sorriso que vários outros papas tiveram que enfrentar momentos e situações muito mais dramáticas. Sem precisar voltar às perseguições dos primeiros séculos, bastava pensar em Pio IX, ou em Bento XV quando condenou o “massacre inútil”, ou nas situações dos papas no curso das guerras mundiais. Portanto, ele não se considerava um mártir. Nenhum papa pode imaginar não encontrar críticas, dificuldades e tensões. Isso não quer dizer que, se necessário, não soubesse reagir às críticas com vivacidade e decisão, como aconteceu com a inesquecível Carta escrita aos bispos em 2009, depois do caso da remissão da excomunhão aos lefebvrianos e do “caso Williamson”; uma carta apaixonada da qual seu secretário me comentou que expressava “Ratzinger em seu estado puro”.

Mas aquela que foi a cruz mais pesada do seu pontificado, cuja gravidade ele já havia começado a perceber durante o período transcorrido na Doutrina da Fé e que continua a manifestar-se como uma prova e um desafio para a Igreja no âmbito histórico, são os casos de abuso sexual. Isso também foi motivo de críticas e ataques pessoais a ele até os últimos anos, portanto, também de profundo sofrimento. Tendo eu também estado muito envolvido nestes temas durante o seu pontificado, estou firmemente convencido que ele viu de forma sempre mais lúcida a gravidade dos problemas e teve grandes méritos em abordá-los com amplitude e profundidade de visão nas suas várias dimensões: escuta das vítimas, rigor na busca da justiça diante de crimes, cura das feridas, instituição de normas e procedimentos apropriados, formação e prevenção do mal. Foi apenas o início de um longo caminho, mas nas direções justas e com muita humildade. Bento nunca se preocupou com uma “imagem” sua ou da Igreja que não correspondesse à verdade. E também nesse campo ele sempre se moveu na perspectiva de homem de fé. Além das medidas pastorais ou jurídicas, necessárias para enfrentar o mal nas suas manifestações, ele sentiu o terrível e misterioso poder do mal e a necessidade de fazer apelo à graça para não nos deixar esmagar pelo desespero e encontrar o caminho da cura, conversão, penitência, purificação, de que o povo, a Igreja e a sociedade precisam.

Quando me foi pedido para recordar de modo resumido, com um episódio, o evento do pontificado de Bento XVI, eu lembrei a Vigília de oração durante a Jornada Mundial da Juventude de Madri em 2011, sobre a grande esplanada do aeroporto de Cuatro Vientos, na qual participava cerca de um milhão de jovens. Era noite, a escuridão ficava cada mais densa quando o Papa começava o seu discurso. A um certo ponto houve um verdadeiro furacão de chuva e vento. Os sistemas de iluminação e som param de funcionar e muitas das tendas na beira da esplanada desabaram. A situação era realmente dramática. O papa foi convidado por seus colaboradores a se afastar e se proteger, mas ele não quis. Permaneceu paciente e corajosamente em sua cadeira, no palco aberto, protegido por um simples guarda-chuva balançando ao vento. Toda a imensa assembleia seguiu o seu exemplo, com confiança e paciência. Depois de um certo tempo a tempestade se aquietou, cessou a chuva e uma grande calmaria completamente inesperada se instalou. As estruturas voltaram a funcionar. O papa terminou o seu discurso e o maravilhoso ostensório da catedral de Toledo foi levado ao centro do palco para a adoração eucarística. O papa se ajoelhou em silêncio diante do Santíssimo Sacramento e atrás dele, na escuridão, a imensa assembleia se uniu em oração na mais absoluta paz.

Em certo sentido, esta pode permanecer a imagem não apenas do pontificado, mas também da vida de Joseph Ratzinger e da meta do seu caminho. Enquanto ele agora entra no silêncio definitivo diante do Senhor, também nós continuamos a nos sentir atrás dele e com ele.  (Pe Federico Lombardi SJ)


Bento XVI: o Papa que uniu fé e razão, esperança e caridade

Bento XVI, afirmou Papa Francisco, foi “um grande Papa” pelo “seu amor à Igreja e aos seres humanos”. Um amor que inspirou o Pontificado no qual o Pastor moderado e firme, por 8 anos, segurou – com coragem e sabedoria – o timão do Barco de Pedro, mesmo navegando em águas agitadas e com ventos contrários.
Na reportagem especial de Alessandro Gisotti (Vatican News), voltamos a reviver alguns dos momentos do Pontificado de Bento XVI, o Papa que, por amor à Igreja, renunciou ao Ministério Petrino.

27 de abril de 2014. Um milhão de olhares se dirige ao sagrado da Basílica de São Pedro, no Vaticano. Em maior número são aqueles que assistem ao evento em cadeia internacional: Bento XVI, o Papa emérito, abraça Francisco, o Papa reinante.

O abraço fraterno acontece sob as tapeçarias dos dois Pontífices Santos, João XXIII e João Paulo II. O primeiro remete imediatamente ao Concílio Vaticano II, onde o jovem e brilhante teólogo Joseph Ratzinger participou como conselheiro do Cardeal Frings. O segundo refere-se, naturalmente, à especial amizade e à fecunda colaboração entre o Papa polonês e o cardeal alemão. Naquele momento, impensável até um ano antes, se encerra o sentido da vida e do ministério petrino de Papa Bento XVII.

O dia memorável dos “quatro Papas”

Dois Papas que celebram dois Papas santos: são as manchetes dos jornais em todo o mundo. Um evento quase inacreditável. Mas “inacreditável” já tinha sido o primeiro sentimento com o qual o mundo inteiro tinha escutado estas palavras, em 11 de fevereiro de 2013:

“Conscientia mea iterum atque iterum coram Deo explorata ad cognitionem certam perveni vires meas ingravescente aetate non iam aptas esse ad munus Petrinum aeque administrandum…” (11 de fevereiro de 2013)

A Renúncia pelo amor à Igreja

Um conhecido teólogo italiano afirma – com sinceridade – que “não estamos preparados para um Papa que se demite”. Reação que une crentes e não-crentes, e levanta um dilúvio de comentários e declarações quase como se se fosse obrigado a dizer alguma coisa para acalmar a inquietação gerada por um evento imprevisível. Ainda mais enunciado numa língua, o latim, que na era do hi tech parece um eco que soa da pré-história.

Quando, porém, se deposita o pó erguido pelo terremoto – que teve seu epicentro na Sala do Consistório do Palácio Apostólico – a figura do Pastor é que permanece em pé e que, para o bem do seu rebanho, não tem medo de escolher uma estrada nunca antes percorrida:

“Queridos irmãos e irmãs, como sabem, decidi… (aplausos)… Obrigado pela simpatia… (aplausos)… Decidi renunciar ao ministério que o Senhor me confiou em 19 de abril de 2005. Fiz isso em plena liberdade para o bem da Igreja, depois de ter rezado por muito tempo e de ter examinado diante de Deus a minha consciência, bem consciente da gravidade desse ato, mas também consciente de já não estar em condições de prosseguir no ministério petrino com aquela força ele exige.” (Audiência Geral de 13 de fevereiro de 2013)

São passadas 48 horas do clamoroso anúncio quando Bento XVI pronuncia essas palavras e abre a porta do seu coração aos fiéis, reunidos na Sala Paulo VI, de maneira que possam aproximar-se aos seus sentimentos. Então se começa a compreender que a Renúncia do Papa não é nenhum “abandono”, mas, ao contrário, um ato supremo de amor a Cristo, inspirado pelo Espírito Santo.

Não deixo a Cruz, servirei à Igreja em oração

Depois de poucas horas da conclusão do seu ministério, em 27 de fevereiro, na sua última Audiência Geral, Bento XVI reitera che não está deixando a Cruz, “mas à serviço da oração” permanece, “por assim dizer, no recinto de São Pedro”. Naquele mesmo dia, o Papa encontra os purpurados que se preparam ao Conclave. Entre eles, está inclusive o Cardeal Bergoglio. Para todos o Pontífice tem palavras de afeto e incentivo:

“Que o Senhor lhes mostre aquilo que é da vontade dEle. E, entre os senhores, no Colégio dos cardeais, está também o futuro Papa, ao qual prometo, já de hoje, a minha reverência incondicional e obediência.” (Encontro com os cardeais em 28 de fevereiro de 2013)

Um humilde trabalhador na Vinha do Senhor

A humildade de Bento XVI comove, mas não surpreende, porque é bem essa a virtude que sempre o caracterizou, como o mundo já pôde apreciar das primeiras palavras pronunciadas depois da eleição como Sucessor de Pedro:

“Queridos irmãos e irmãs, depois do grande Papa João Paulo II… (aplausos)… os senhores cardeais me elegeram, um simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor. Consola-me o fato de que o Senhor sabe trabalhar e agir também com instrumentos insuficientes. E, sobretudo, confio nas suas orações. Na alegria do Senhor ressuscitado, confiantes do seu apoio permanente, vamos em frente. O Senhor nos ajudará, e Maria, Sua Santíssima Mãe, está do nosso lado.” (19 de abril de 2005)

Um trabalhador humilde a quem a coragem não falta. “O pastor moderado e firme” enfrenta com excepcional determinação alguns escândalos que surgiram na Igreja, como a terrível ferida dos abusos sexuais em menores por parte de membros do clero. Bento XVI é o primeiro Pontífice que encontra as vítimas desse crime horrível: e faz sem clamor, longe dos refletores, em Malta, nos Estados Unidos, na Austrália e no Reino Unido.

Dispõe novas regras que assegurem uma “tolerância zero” àqueles que se mancham desse delito. E, no Ano Sacerdotal, há 150 anos da morte de Curato d’Ars, envoca uma nova transparência. As suas palavras têm a força de uma profecia:

“Devemos encontrar uma nova resolução na fé e no bem. Devemos ser capazes de penitência. Devemos nos esforçar para tentar tudo o que for possível, na preparação do sacerdócio, para que uma coisa semelhante não aconteça mais. Mas este também é o lugar para agradecer de coração todos aqueles que se comprometem em ajudar as vítimas e em dar, novamente a elas, a confiança na Igreja, na capacidade de acreditar na sua mensagem.” (20 de dezembro de 2010)

Pastor moderado e firme, comprometido com a transparência

Bento XVI expressa a mesma determinação no processo de renovação do Ior e da gestão das atividades econômicas no Vaticano. E isso, mesmo com os sofrimentos, inclusive pessoais, que deverá suportar por causa do escândalo “Vatileaks”. Mais uma vez, atinge a brandura do Papa que perdoa o assistente de quarto que lhe tinha roubado documentos privados. Um gesto que lembra o perdão de João Paulo II a Ali Agca.

Mesmo empenhado em reagir à crise e imprevistos, o Pontificado de Bento XVI será pró-ativo e inovativo em muitos aspectos, como demonstra também a instituição de um Ordinariado pessoal para os anglicanos que entram em plena comunhão com a Igreja Católica, depois da publicação da Constituição “Anglicanorum Coetibus”.

Nasce o “Pátio dos Gentios”, dialogar com os não-crentes

O Papa leva adiante o confronto com os não-crentes e acelera a nova evangelização para combater “a eclipse de Deus”. Convicto, como o seu amado Santo Agostinho que a opção cristã é “aquela mais racional”, Papa Bento lança a ideia de um “Pátio dos Gentios” (Cortile dei gentili), um espaço privilegiado de diálogo com os “distantes”:

“Ao diálogo com as religiões se deve acrescentar hoje, sobretudo, o diálogo com aqueles pelos quais a religião é uma coisa estranha, aos quais Deus não é conhecido e que, todavia, não gostariam de ficar simplesmente sem Deus, mas aproximá-lo ao menos como Desconhecido.” (21 de dezembro de 2009)

Peregrino no mundo, do Ground Zero à Mesquita Azul

O humilde trabalhador da vinha planta sementes inclusive no terreno do diálogo inter-religioso. Visita as sinagogas de Roma, Colônia e Nova Iorque, e convoca um novo Dia pela Paz em Assis, em outubro de 2011, aberta não somente aos homens de fé, mas também aos não-crentes.

Também com o mundo muçulmano, depois da incompreensão desencadeada por uma citação no discurso de Ratisbona, o diálogo se reforça graças inclusive à carta aberta de 38 “sábios muçulmanos” que se transformam em 138 e, depois, em 216, para encontrar um terreno comum de encontro. O que sintetiza esse diálogo renovado é a imagem de Bento XVI que, na Mesquita Azul, se recolhe em meditação ao lado do Imam de Istambul.

“Permanecendo alguns minutos em recolhimento naquele lugar de oração, me dirigi ao único Senhor do céu e da terra, Pai misericordioso da inteira humanidade. Possam todos os crentes se reconhecer como suas criaturas e dar testemunho de verdadeira fraternidade!” (Audiência Geral de 6 de dezembro de 2006)

O diálogo ecumênico merece um capítulo especial. Papa Bento recolhe frutos importantes: encontra várias vezes o Patriarca de Constantinopla Bartolomeu I e abre uma nova fase de relações com o Patriarcado Ortodoxo de Moscou. Altamente simbólica foi a visita a Erfurt, no convento agostiniano de Martinho Lutero, e o encontro em Londres com Rowan Williams, da Comunidade Anglicana.

Enfim, todas as 24 viagens internacionais de Bento XVI deixam um sinal: daquele comovente no Líbano, onde encontra os jovens sírios refugiados, àquele histórico em Nova Iorque, onde reza no Ground Zero e fala às Nações Unidas. De Camarões ao Brasil, da Austrália a Cuba, o Papa visita nos seus 8 anos de Pontificado todos os 5 “continentes geográficos”.

Em Auschwitz, como filho da Alemanha

Difícil escolher um momento em tantos, mas claramente a visita de um Papa, “filho da Alemanha” ao campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, tem um valor extraordinário:

“Papa João Paulo II veio aqui como filho do povo polonês. Eu estou aqui hoje como filho do povo alemão e, justamente por isso, devo e posso dizer como ele: não podia não vir aqui. Tinha que vir. Era e é um dever perante a verdade e ao direito de tantos que sofreram, um dever diante de Deus, de estar aqui como sucessor de João Paulo II e como filho do povo alemão.” (29 de maio de 2006)

“Colaborador da Verdade”, como diz o seu lema episcopal, Papa Bento é também testemunha de Caridade. Os cristãos perseguidos em tantos lugares do mundo encontram nele um baluarte seguro. É o primeiro Pontífice a falar de “cristianofobia” e a denunciar as violações da liberdade religiosa, como acontece no Paquistão com a lei da blasfêmia.

Através do Cor Unum está na linha de frente para ajudar as populações atingidas pelas guerras e desastres naturais. Emocionantes as suas visitas aos pobres, aos idosos, aos doentes na Itália e no exterior, em especial, aos pequenos pacientes do Hospital Bambino Gesù, de Roma, e ao Hospital Caritas Baby, de Belém.

No Brasil, vai encontrar os jovens toxicodependentes da Fazenda da Esperança. Na Jordânia, nos Estados Unidos e na Espanha visita os portadores de deficiência dos centros de assistência. Gestos que enaltecem como, aos olhos de Deus, cada pessoa seja única e preciosa.

Um magistério global, das Encíclicas ao Twitter

De outro lado, justamente ao amor cristão dedica a sua primeira Encíclica Deus Caritas est (2006). Seguem, então, Spe Salvisobre a esperança, e Caritas in Veritate (2009), sobre o desenvolvimento humano integral. Essa chegou a ser lida pelos operadores de Wall Street: em meio à crise econômica mundial que começou nos Estados Unidos, oferece a reflexão original da Igreja para colocar a pessoa no centro das dinâmicas econômicas:

“Não devemos esquecer… como lembravo na Encíclica Caritas in veritate, que também no campo da economia e das finanças há intenção, transparência e busca de bons resultados compatíveis e que nunca devem ser dissociados.” (10 de dezembro de 2011)

Além das três Encíclicas, o Papa publica também 4 Exortações Apostólicas pós-sinodais e 19 motu proprio, entre eles, o Summorum Pontificum, sobre a liturgia e a histórica carta dirigida aos católicos chineses, de 2007.

Inovador é o seu livro-entrevista “Luz do mundo”, em que oferece a sua visão a 360° sobre os desafios da Igreja, e a trilogia sobre Jesus de Nazaré – um best seller mundial, no qual Joseph Ratzinger oferece a sua pesquisa de crente sobre a figura histórica de Jesus.

Mas o surpreendente é, sobretudo, a convicção com a qual o teólogo Bento se encaminha pelas estradas da comunicação, inexploradas por um Papa. Em ocasião da JMJ, envia um sms ao jovens do mundo inteiro, se conecta via satélite com os austronautas de uma estação espacial e assina um editorial para o Financial Times.

Sobretuto encoraja a mídia católica e vaticana a evangelizar o “continente digital”. E dá o bom exemplo abrindo, em 2012, a conta no Twitter, @Pontifex:

“Hoje somos chamados a descobrir, também na cultura digital, símbolos e metáforas significativas para as pessoas que possam ser de ajuda ao falar do Reino de Deus ao homem contemporâneo.” (28 de fevereiro de 2011 – Discurso ao Pontifício Conselho das Comunicações Sociais)

A Igreja se comprometa com as famílias feridas, na esteira do Concílio

E, ao homem contemporâneo, Bento XVI não deixa de lembrar da sacralidade da vida, da beleza do matrimônio natural entre um homem e uma mulher, da urgência da liberdade educativa. Aqueles valores que não mudam com o tempo e, por isso, “não são negociáveis”.

A família é um dos temas que mais importa ao Papa que vê com particular atenção os casais feridos, de quem viveu o drama de uma separação. Significativas também, considerando o caminho sinodal sucessivo a pedido de Francisco, as palavras que Bento XVI pronuncia no Encontro Mundial das Famílias em Milão, em 2012:

“Parece-me uma grande tarefa de uma paróquia, de uma comunidade católica, a de fazer realmente o possível para que eles se sintam amados, aceitados, que não estão ‘fora’, mesmo se não podem receber a absolvição e a Eucaristia; devem saber que, assim mesmo, vivem plenamente na Igreja.” (3 de junho de 2012)

Uma igreja que Bento XVI serviu por toda a sua vida, desde jovem e brilhante teólogo até como Sucessor de Pedro, tendo sempre como “bússola” o Concílio Vaticano II que – e são palavras suas – “permite à Igreja de proceder em mar aberto”. (AG/AC)


Simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor – Bento XVI, o grande

“A notícia divulgada nesta manhão do último dia do ano de 2022 é para nós uma oportunidade de um grande exame de consciência no ano que termina e de nos colocarmos disponíveis para o novo ano que se inicia, agora com o olhar retrospectivo de um grande homem de Deus que partiu e que serviu à Igreja como “simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor”, é o convite de Dom Orani Tempesta

Ao apresentar-se ao mundo como novo Pontífice, assim se dirigiu ao povo o Papa Bento XVI: “Depois do grande Papa João Paulo II, os Senhores Cardeais elegeram-me, simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor”. O Papa emérito Bento XVI, o grande, despediu-se hoje, último dia do ano de 2022, de nosso tempo e voltou para a casa do Pai. Acompanhamos com as orações para que esteja junto de Deus na glória e agradecemos a Deus pela sua missão entre nós. Permanecerá seu exemplo, seus escritos, seu legado.

Na homilia na basílica de São João de Latrão, em 7 de maio de 2005, o grande Papa Bento deu sinais claros de que estava a serviço da Palavra de Deus que é única, mas chega até nós por dois canais: a Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição (cf. Catecismo da Igreja Católica n. 74-100). Em outras palavras, o Papa é o guardião primeiro e zeloso do patrimônio da fé e não o seu dono. Afirma ele, então, com palavras marcantes: “O poder conferido por Cristo a Pedro e aos seus sucessores é, em sentido absoluto, um mandato para servir. O poder de ensinar, na Igreja, obriga a um compromisso ao serviço da obediência à fé. O Papa não é um soberano absoluto, cujo pensar e querer são leis. Ao contrário: o ministério do Papa é garantia da obediência a Cristo e à Sua Palavra. Ele não deve proclamar as próprias ideias, mas vincular-se constantemente a si e à Igreja à obediência à Palavra de Deus, tanto perante todas as tentativas de adaptação e de adulteração, como diante de qualquer oportunismo. […] O Papa tem a consciência de que está, nas suas grandes decisões, ligado à grande comunidade da fé de todos os tempos, às interpretações vinculantes que cresceram ao longo do caminho peregrinante da Igreja. Assim, o seu poder não é superior, mas está a serviço da Palavra de Deus, e sobre ele recai a responsabilidade de fazer com que esta Palavra continue a estar presente na sua grandeza e a ressoar na sua pureza, de modo que não seja fragmentada pelas contínuas mudanças das modas”.

Estamos próximos de mais um Curso para os Bispos aqui no Rio de Janeiro, e é impossível não recordar que o primeiro conferencista foi exatamente o então Cardeal Ratzinger, depois o Papa Bento XVI. Marcou o início de nosso Curso, que, sem dúvida, neste ano terá uma bela homenagem a ele.

Notemos que, antes, na Missa para o início do ministério petrino, Bento XVI já dizia: “O meu verdadeiro programa de governo é não fazer a minha vontade, não perseguir ideias minhas, pondo-me, contudo, à escuta, com a Igreja inteira, da palavra e da vontade do Senhor e deixar-me guiar por Ele, de forma que seja Ele mesmo quem guia a Igreja nesta hora da nossa história. […] ‘Apascenta as minhas ovelhas’, diz Cristo a Pedro, e a mim, neste momento. Apascentar significa amar, e amar quer dizer também estar prontos para sofrer. Amar significa: dar às ovelhas o verdadeiro bem, o alimento da verdade de Deus, da palavra de Deus, o alimento da sua presença, que ele nos oferece no Santíssimo Sacramento. Queridos amigos, neste momento eu posso dizer apenas: rezai por mim, para que eu aprenda cada vez mais a amar o Senhor. Rezai por mim, para que eu aprenda a amar cada vez mais o seu rebanho vós, a Santa Igreja, cada um de vós singularmente e todos vós juntos. Rezai por mim, para que eu não fuja, por receio, diante dos lobos. Rezai uns pelos outros, para que o Senhor nos guie e nós aprendamos a guiar-nos uns aos outros”.

A escolha do nome definia a sua admiração ao Papa Bento XV (1914-1922) e o seu amor a São Bento de Nursia, patriarca dos monges do Ocidente, assim como demonstrava os rumos do seu pontificado. Deixemos que o próprio Bento XVI nos fale: “Neste primeiro encontro, gostaria antes de tudo de falar sobre o nome que escolhi ao tornar-me Bispo de Roma e Pastor universal da Igreja. Quis chamar-me Bento XVI para me relacionar idealmente com o venerado Pontífice Bento XV, que guiou a Igreja num período atormentado devido ao primeiro conflito mundial. Ele foi um profeta corajoso e autêntico de paz e comprometeu-se com coragem infatigável primeiro para evitar o drama da guerra e depois para limitar as consequências nefastas. Nas suas pegadas, desejo colocar o meu ministério a serviço da reconciliação e da harmonia entre os homens e os povos, profundamente convencido de que o grande bem da paz é antes de tudo dom de Deus, dom frágil e precioso que deve ser invocado, tutelado e construído dia após dia com o contributo de todos” (Audiência Geral, 27/04/2005).

E prossegue: “Além disso, o nome Bento recorda também a extraordinária figura do grande ‘Patriarca do monaquismo ocidental’, São Bento de Núrsia, co-padroeiro da Europa juntamente com os santos Cirilo e Metódio e as mulheres santas, Brígida da Suécia, Catarina de Sena e Edith Stein. A expansão progressiva da Ordem beneditina por ele fundada exerceu uma influência enorme na difusão do cristianismo em todo o Continente. Por isso, São Bento é muito venerado também na Alemanha e, em particular, na Baviera, a minha terra de origem; constitui um ponto de referência fundamental para a unidade da Europa e uma forte chamada às irrenunciáveis raízes cristãs da sua cultura e da sua civilização. Deste Pai do Monaquismo ocidental conhecemos a recomendação deixada aos monges na sua Regra: ‘Nada anteponham absolutamente a Cristo’ (Regra 72, 11; cf. 4, 21). No início do meu serviço como Sucessor de Pedro peço a São Bento que nos ajude a manter firme a centralidade de Cristo na nossa existência. Que ele esteja sempre no primeiro lugar nos nossos pensamentos e em cada uma das nossas atividades!” (idem).

No seu pontificado, Bento publicou, além de quatro exortações apostólicas – “Ecclesia in Medio Oriente”, “Africae múnus”, “Verbum Domini” e “Sacramentum Caritatis” –, além das cartas apostólicas, constituições apostólicas e três encíclicas: “Deus caritas est”, “Spe salvi” e “Caritas in veritate”. Na primeira, recorda que “‘Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele’ (1 Jo 4, 16). Estas palavras da I Carta de João exprimem, com singular clareza, o centro da fé cristã: a imagem cristã de Deus e também a consequente imagem do homem e do seu caminho. Além disso, no mesmo versículo, João oferece-nos, por assim dizer, uma fórmula sintética da existência cristã: ‘Nós conhecemos e cremos no amor que Deus nos tem’ […]. Num mundo em que ao nome de Deus se associa às vezes a vingança ou mesmo o dever do ódio e da violência, esta é uma mensagem de grande atualidade e de significado muito concreto” (n. 1).

Na segunda lembra, a partir de Rm 8,24, que é na esperança que fomos salvos. “A ‘redenção’, a salvação, segundo a fé cristã, não é um simples dado de fato. A redenção é-nos oferecida no sentido que nos foi dada a esperança, uma esperança fidedigna, graças à qual podemos enfrentar o nosso tempo presente: o presente, ainda que custoso, pode ser vivido e aceite, se levar a uma meta e se pudermos estar seguros desta meta, se esta meta for tão grande que justifique a canseira do caminho” (n. 1). Já na terceira e última encíclica do seu pontificado, Bento XVI se volta para a Doutrina Social da Igreja com a Caritas in veritate. Aí o Papa constata, de modo muito oportuno, que “a caridade é amor recebido e dado; é ‘graça’ (cháris). A sua nascente é o amor fontal do Pai pelo Filho no Espírito Santo. É amor que, pelo Filho, desce sobre nós. É amor criador, pelo qual existimos; amor redentor, pelo qual somos recriados. Amor revelado e vivido por Cristo (cf. Jo 13,1), é ‘derramado em nossos corações pelo Espírito Santo’ (Rm 5,5). Destinatários do amor de Deus, os homens são constituídos sujeitos de caridade, chamados a fazerem-se eles mesmos instrumentos da graça, para difundir a caridade de Deus e tecer redes de caridade” (n. 4).

E continua: “A esta dinâmica de caridade recebida e dada, propõe-se dar resposta a doutrina social da Igreja. Tal doutrina é ‘caritas in veritate in re sociali’, ou seja, proclamação da verdade do amor de Cristo na sociedade; é serviço da caridade, mas na verdade. Esta preserva e exprime a força libertadora da caridade nas vicissitudes sempre novas da história. É ao mesmo tempo verdade da fé e da razão, na distinção e, conjuntamente, sinergia destes dois âmbitos cognitivos. O desenvolvimento, o bem-estar social, uma solução adequada dos graves problemas socioeconômicos que afligem a humanidade precisam desta verdade. Mais ainda, necessitam que tal verdade seja amada e testemunhada. Sem verdade, sem confiança e amor pelo que é verdadeiro, não há consciência e responsabilidade social, e a atividade social acaba à mercê de interesses privados e lógicas de poder, com efeitos desagregadores na sociedade, sobretudo numa sociedade em vias de globalização que atravessa momentos difíceis como os atuais” (n. 5).

Por fim, quando, em 11/02/2013, Bento XVI renunciou ao múnus petrino, surgiram muitas especulações e era o ano da JMJ no Rio de Janeiro, sede que ele mesmo escolheu para esse grande evento. Sobre a renúncia reporto um texto de nosso irmão aqui do Regional Leste 1, D. Rifan: “Um grande desapego do alto cargo e influente posição, declarando-se apenas um humilde servidor, uma profunda humildade, não se julgando necessário e reconhecendo a própria fraqueza e incapacidade, de corpo e de espírito, para exercer adequadamente o ministério petrino, e ao pedir perdão – ‘peço perdão por todos os meus defeitos’. (Por trás da renúncia, 19/02/2013, online).

Bento XVI, depois da renúncia, agiu sempre na discrição e na obediência ao único legítimo sucessor de Pedro, o Papa Francisco. Afirmou Bento: “O Papa é um só, Francisco” (Vatican.news, 27/06/2019, online). Da parte do Papa Francisco nunca faltou, nas visitas e nas palavras, carinho e respeito para com o Papa emérito e sua última missão de ser, a partir do mosteiro Mater Ecclesiae, uma voz orante que ajuda a sustentar a Igreja. Disse o Santo Padre, em sua Audiência do dia 28 de dezembro último, sob calorosos aplausos dos peregrinos: “Uma oração especial pelo Papa emérito Bento 16, que no silêncio está sustentando a Igreja. Recordemos, ele está muito doente, pedindo ao Senhor que o console e o sustente neste testemunho de amor à Igreja até o fim”. E logo depois foi visitar Bento XVI onde, segundo dizem, ministrou-lhe a unção dos enfermos.

Pessoalmente tenho que agradecer, sem mérito nenhum de minha parte, ao Papa Bento XVI a minha nomeação para Arcebispo Metropolitano de Belém do Pará em 13 de outubro de 2004 a e a minha nomeação para Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro a 27 de fevereiro de 2009.

Não poderia deixar de tributar meu sincero agradecimento pela sua escolha pessoal para que, após a jornada em Madrid, de que a Jornada Mundial da Juventude – JMJ – 2013 – fosse celebrada no Rio de Janeiro. Ele não pode estar conosco, mas o Papa Francisco colheu a alegria, o entusiasmo e o calor humano dos milhares e milhares de jovens que encheram a Praia de Copacabana para escutar o Sucessor de Pedro. Eu, como monge cisterciense, sempre tive uma sintonia espiritual com o precioso tesouro espiritual que foi o Magistério e o Pontificado do Papa Bento XVI, um magno e sumo pastor, em especial pelo seu nome, já que os cistercienses seguem a Regra de São Bento.

A notícia divulgada nesta manhão do último dia do ano de 2022 é para nós uma oportunidade de um grande exame de consciência no ano que termina e de nos colocarmos disponíveis para o novo ano que se inicia, agora com o olhar retrospectivo de um grande homem de Deus que partiu e que serviu à Igreja como “simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor. Ao me deslocar para Roma nestes dias para suas exéquias recordo com carinho dos vários encontros pessoais que tivemos com ele e, em especial, seu grande amor à Igreja e à Cristo que marcou sua vida e missão. Para mim são profundas as palavras do ministério do Papa Bento XVI: “Cooperatores veritatis!”. Sempre busquemos ser, com Cristo, cooperadores da Verdade do Evangelho! Agora no céu, suplicamos, que o Papa Bento XVI junto de Deus interceda por todos nós que o amamos e continuamos reverenciando a sua obra, o seu pontificado, e o seu sorriso discreto e amável, uma das maiores obras teológicas e pastorais de todos os tempos. Descanse em paz! Deus lhe pague pelo seu testemunho de construtor de pontes, sem jamais renunciar a verdade da fé católica e apostólica.

Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist, Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ


Fonte: Vatican News