Frei Toni: “Onde estaríamos sem um Papa Francisco a nos recordar o caminho do Evangelho?”
09/06/2021
O coordenador da Frente das Paróquias, Santuários e Centros de Acolhimento da Província Franciscana da Imaculada Conceição, Frei Antônio Michels, chamado simplesmente de Frei Toni, é o entrevistado desta série “Nossos Frades” e fala sobre temas da vida religiosa, do carisma franciscano, da Igreja, da pandemia e especialmente da Frente que coordena.
“O que não deveria faltar na paróquia ou santuário entregue ao nosso cuidado pastoral é que nós, frades, sejamos frades com os traços próprios da espiritualidade franciscana. Quando é assim, a paróquia ou santuário, com todas as suas forças vivas, ganha traços franciscanos que enriquecem a Igreja local”, avalia o frade, que ingressou na Ordem dos Frades Menores no dia 20 de janeiro de 1977, professou solenemente em 1º de agosto de 1981 e foi ordenado presbítero em 6 de agosto de 1983. Acompanhe!
Site Franciscanos – Fale um pouco de sua vida e sua família?
Frei Toni – Sou catarinense, descendente de alemães, nascido em Forquilhinha, o segundo mais velho de 7 irmãos: 4 homens e 3 mulheres. Quando eu ainda era bebê, meus pais mudaram para a localidade de Rio Cedro Médio, no município de Nova Veneza. Éramos pequenos agricultores. A terra era pouca e o meu pai bastante doente. Ou seja, uma família marcada pela pobreza. Quando descobri que existia, já estava trabalhando. Não havia vacinas na época e passamos por tudo que é peste. No domingo íamos no terço na Vila e, quando havia oportunidade, não perdíamos a missa. Em casa também se rezava. Especialmente marcante era a forma de se celebrar o Natal com presépio, árvore de natal e presentes, tudo obra do “Menino Jesus”. E muitos cantos natalinos. Em 1964 mudamos de novo para Forquilhinha. Hoje, a família de meus pais, acrescida de genros, noras, netos e bisnetos, é bem grande e muito unida. O encontro é aquela festa!
Site Franciscanos – Como se deu seu discernimento vocacional? Por que a escolha pela Ordem Seráfica?
Frei Toni – Quando criança, dizia que queria ser padre. Não sei o porquê. Certamente influência de alguém. Pelos 13 anos, participando de uma novidade que tinha surgido, a novena de Natal, a ideia voltou. Certo dia, os padres Servos de Maria, que têm um seminário em Turvo, município vizinho, passaram no colégio onde estudava. Foram de sala em sala, perguntando o que cada um queria ser na vida. Escrevi na folha que deram: “padre”. Eles, então, entraram em contato, querendo me levar para o seminário. Só não fui porque não tive como comprar o enxoval. Me lembro que na ocasião minha mãe comentou: “Se você quer mesmo ser padre, devia ser um franciscano”. Eu nem sabia o que era isso. Os frades da Paróquia de Forquilhinha foram alertados de que estavam “pescando na lagoa deles” e resolveram começar a reunir os vocacionados. O pároco era Frei Cuniberto Hornig, auxiliado por Frei Adalberto Gatchak. O conterrâneo Frei Paulo Back, em férias do trabalho no seminário de Agudos, animou-me, orientou e ingressei naquele seminário em 1971. Frei Cuniberto ajudou com os custeios e praticamente me adotou, sabe-se lá por que, como aquele que seria o seu “substituto”. Me acompanhou de alguma forma até que veio a falecer. Só no seminário é que conheci São Francisco e por ele me apaixonei. Fato marcante para isso foi um retiro sobre a vida de São Francisco que Frei Agostinho Salvador Piccolo pregou. Falei isso para ele poucos anos antes dele falecer. Ficamos ambos emocionados. Ingressei no seminário nos tempos mais sombrios da ditadura militar. Um irmão de minha mãe foi preso e torturado. Outro conterrâneo foi morto. Então, eu tinha comigo que fazia parte da formação também se preparar para suportar tortura.
Site Franciscanos – Como Frei Toni se autodefine?
Frei Toni – Roceiro, trabalhador manual, artesão, ao mesmo tempo tímido e atrevido, sensível, apreciador de arte, frade menor sonhador e comprometido com os pobres, presbítero inquieto com os retrocessos na Igreja e no país.
Site Franciscanos – Poderia fazer um histórico de sua formação e vida religiosa e dos lugares onde já trabalhou?
Frei Toni – Tem que resumir bastante, são muitos anos. Além da formação mínima em filosofia e teologia, exigida pela Igreja para o ministério presbiteral, não passei por outro curso a não ser o Master em Evangelização que foi oferecido pelo ITF. Mas sempre gostei de ler e acompanhar as reflexões teológico-pastorais, sobretudo em torno da pessoa de Jesus, do Espírito Santo e da missão evangelizadora da Igreja.
Da forma de vida de Francisco procurei encarnar especialmente a vida de pobreza e o “trabalhar com as mãos”. Sempre meti as mãos na terra, recuperando-a e produzindo alimentos de modo orgânico. Desenvolvi alguma habilidade com madeira e, onde passei, sempre fui da filosofia do “faça você mesmo”. Como autodidata e inspirado no trabalho de Frei José Rochinski, fui também aprendendo alguma coisa em entalhe em madeira. Sempre pensando que o objetivo é evangelizar.
Quando estava para ser ordenado, não me identificando com as opções da Província, me propus, junto com o colega de turma Fernando Cunha, ser missionário itinerante na Diocese de Bacabal. Mas o primeiro campo de missão para o qual fui enviado foi Dourados, MS. Em paróquia de centro, mas acabei me envolvendo com a Vila Índio, dos pobres e, em âmbito maior, com a juventude e com os sem-terra. Quis atender o pedido de acompanhar os acampados que, depois de luta aguerrida, seriam assentados lá para a proximidade do Pantanal. Mas fui transferido para Itaboraí, RJ, como capelão da Colônia de Hansenianos, onde já estivera nos estágios de final de semana nos tempos de frade estudante. Foram três anos sozinho e depois mais três anos com Frei Alexandre Magno. Foi um tempo bom em que vivemos uma pobreza radical, a convivência solidária, serviço aos últimos e a fundação e acompanhamento de uma pequena rede de comunidades que extrapolava os limites geográficos da Colônia. Em visita a nós, o então ministro provincial Frei Estêvão Ottenbreit manifestou a esperança de que nossa forma de vida pudesse ser o embrião de “um novo modo de ser frade”, embora não concordasse que vivêssemos tão sem garantias materiais. Foi então que surgiu a ideia de se fundar uma “fraternidade inserida nos meios populares”, composta também de frades estudantes, o que veio a se concretizar em 1992, em Imbariê.
Éramos três professos solenes e três frades estudantes de Teologia. Prestávamos serviço gratuito à Diocese, sobretudo às paróquias da região: formação, missões, celebrações. A opção era viver do trabalho manual. O que pintasse. Todos os serviços domésticos também eram feitos por nós. Nossos veículos eram bicicletas. Imbariê era área pastoral de Parada Angélica, mas pouco depois foi elevada a Paróquia. O pároco não ficou nem um ano. O vigário geral da Diocese pediu então que assumíssemos provisoriamente o serviço pastoral da paróquia. O provisório durou seis anos. Atendíamos a paróquia sem deixar a forma de vida que levávamos, e a paróquia carecia de quase tudo no que se refere às estruturas materiais. Era uma vida dura. Mas nunca experimentei uma proximidade fraterna com o povo e com as irmãs catequistas franciscanas – que lá estavam já antes de nós – como lá em Imbariê. Neste ínterim, o Congresso Capitular me consultou para ir a Angola. Topei na hora. Mas quando disseram que a Fraternidade de Imbariê seria fechada, não pude concordar.
No ano 2000, embora eu não me julgasse a pessoa indicada, fui transferido para Petrópolis como Mestre do tempo da Teologia. Era para concretizar a opção feita em Capítulo de que todos os frades estudantes no tempo da Teologia vivessem em pequenas fraternidades. Havia opiniões e mesmo ações contra o projeto. Fiz o que pude. Quatro anos depois estava novamente consultado para ir para a África, mas acabei transferido, pela segunda vez, para Imbariê, agora já paróquia assumida pela Província, numa situação conflituosa que lá se tinha criado.
Uma meia dúzia de anos depois fui eleito Definidor e transferido para o Convento das Graças, em Guaratinguetá, acumulando também a função de Secretário de Evangelização da Província. Dentro ainda daquele triênio fui enviado para compor de novo a fraternidade no leprosário de Venda das Pedras. Por pouco tempo, pois nossa presença lá foi encerrada. Fui então parar na grande paróquia de Campos Elíseos, por 5 anos. Lá, como em todos os lugares por onde passei, me dediquei muito à formação dos leigos. Fosse juntar tudo que já escrevi de subsídio de formação daria livros bem grossos. Sempre primei também em minha atividade apostólica pelo canto. Muito da espiritualidade, da compreensão de Igreja e da missão passam pelo canto. Então não é coisa que se deva deixar solta.
O último Congresso Capitular me enviou para Mangueirinha, PR, pela primeira vez no sul da Província. Por um ano apenas pois aquela paróquia foi entregue, embora o Capítulo tivesse se pronunciado de forma diferente. Dos sonhos interrompidos, o que mais senti foi abandonar o início de um trabalho com os índios kaingan. Vim parar, então, na Rocinha. Foi chegar e começar a pandemia. Feliz por estar aqui.
Site Franciscanos – Comente esta questão que foi colocada em um dos encontros da Frente das Paróquias e Santuários: “O que sobretudo não pode faltar numa paróquia ou santuário franciscano”?
Frei Toni – As paróquias e santuários aos quais servimos são muito diversos. Não são nossos, são das Igrejas locais, cada qual com suas virtudes e carências. O que não deveria faltar na paróquia ou santuário entregue ao nosso cuidado pastoral é que nós, frades, sejamos frades com os traços próprios da espiritualidade franciscana. Quando é assim, a paróquia ou santuário, com todas as suas forças vivas, ganha traços franciscanos que enriquecem a Igreja local. Creio que nas diretrizes da Província para a presença nas paróquias, santuários e centros de acolhimento, no item “como queremos estar” ali, se diz bem o que deveria caracterizar nossa presença.
Site Franciscanos – Quais seriam as ‘outras formas de apostolado mais próprias da nossa Ordem’? Essa pergunta que faço a você foi feita por Frei Estêvão Ottembreit durante uma palestra no ano passado, quando disse que a presença franciscana nas paróquias, também nos territórios de missão, é campeã.
Frei Toni – Me parece claro que os Frades Menores, diferentemente de algumas outras ordens, não temos um tipo de apostolado específico. Somos pau para toda obra. O frade menor pode ser um trabalhador manual ou um cientista, um leigo ou alguém que assume ministério ordenado na Igreja. O que é mais próprio dos Frades Menores é onde deveriam estar com os pés, isto é, no mundo dos pobres, e o modo de ali estar: em fraternidade, como menores, em espírito de oração etc. Os impasses em que a Ordem se encontra, a meu ver, decorrem muito mais da carência de identidade carismática do que de forma de apostolado. Ou seja, é questão de formação inicial e permanente. A formação falha no forjar o frade profético para o hoje. Parece-me que a própria hermenêutica que se faz de Francisco deixa a desejar no traduzir para hoje o que seja viver o espírito que animava o “pobrezinho”. Parafraseando Paulo VI na Evangelii Nuntiandi, diria que aplicamos um verniz de franciscanismo que não chega “a atingir e como que a modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida”. Por isso parece que podemos viver as opções de Francisco continuando na casa de Pedro Bernardoni.
Site Franciscanos – A seu ver, a Província dá passos no sentido de encontrar novas formas de presença?
Frei Toni – Responder sobre isto me faz lembrar alguns episódios. Sou um dos mais de 30 frades da Província da Imaculada que propuseram ao Capítulo de 1988 uma mudança de rumo da Fraternidade Provincial, na direção do que a vida religiosa na América Latina na época chamava de inserção nos meios populares. Havia propostas bem concretas, também para a formação inicial. Nossa derrota foi acachapante. Nossa Província se caracterizou por um vírus de grandeza e a opção que historicamente venceu foi pelas coisas grandes. Umas entraram em crise, outras ainda vão entrar.
Mais recentemente, em consonância com o discurso do “redimensionamento”, apresentei ao Regional Baixada e Serra e foi ao Capítulo uma proposta que nasceu de um grande anseio que tenho de cuidar da Mãe Terra. A proposta era uma fraternidade cuja missão fosse o cuidado da criação. Havia até uma indicação concreta: cuidar do Rio Paraíba, que corta boa parte do território onde nossa Província se faz presente. A fraternidade percorreria o Rio, dialogando com a população, com as autoridades, com as comunidades eclesiais, conscientizando, motivando ações concretas. A proposta foi rejeitada antes mesmo que sua apresentação fosse concluída: “Não temos pernas pra isso!” Mas o “para onde queremos ir” é que deveria ser a locomotiva a puxar o trem do redimensionamento, não é?
Estamos a entregar paróquias. Porque o número de frades está diminuindo, mas também porque o projeto é reforçar outras frentes já existentes. É bom para a saúde carismática da Província deixar paróquias? Depende para onde vamos. Vejo que a paróquia, com todos os “riscos e tentações” que corremos ao nelas estar, pela proximidade com as casas do povo e por suas demandas, ainda fazem bem à vida espiritual dos frades. Neste sentido, devíamos dar graças a Deus por ainda estarmos em tantas paróquias. Nos isolarmos dentro de conventos ou virarmos administradores, executivos de empresas de educação, de comunicação ou de ONGs nos faria mais frades, com atração para genuínas vocações a frade menor? Não vejo que a prática demonstre isso.
Site Franciscanos – Comente a frase do Definidor Geral, Frei Valmir Ramos, em artigo nestas Comunicações: “A Igreja precisa continuar o seu processo de ‘aggiornamento’ (São João XXIII) com confiança e audácia, os religiosos e nossa Ordem serem reconhecidos pelo que somos e não pelo que fazemos”.
Frei Toni – Refere-se ao anseio da Ordem por deixar de ser considerada pelo direito canônico como ordem clerical. Seria bom mudar? Sem dúvida. Mas não é o que nos impede de nos formarmos para a dimensão laical de nossa forma de vida.
Site Franciscanos – A instituição paroquial, com sua configuração e longa história, tem suportado o impacto de profundas mudanças sociais e culturais que ocorreram nas últimas décadas?
Frei Toni – Suportou, mas está na UTI. Diz o Papa Francisco na Evangelii Gaudium que “a Paróquia não é uma estrutura caduca” porque ela tem uma plasticidade e pode adquirir formas diferentes, buscando a estrutura adequada para evangelizar a realidade específica em que está inserida. Mas há, sim, muita caduquice nas paróquias e dioceses. E até deploráveis voltas atrás de passos importantes que tinham sido dados nos anos 70 e 80 na implantação da eclesiologia do Vaticano II. Quando estudantes de Teologia achávamos que devíamos avançar para além do Concílio, que não chegou a superar o clericalismo. Mas depois fomos obrigados a voltar para as trincheiras do Vaticano II para defendê-lo.
Como o Papa Francisco também reconhece, a renovação das paróquias ainda não deu os frutos esperados. Diria eu que os vinhos novos da renovação são sistematicamente envelhecidos para não estourarem os odres velhos. A paróquia é apenas um dos elementos da forma da Igreja se configurar para exercer a missão. E esta forma de a Igreja se configurar, que não muda desde a Idade Média, infantiliza os leigos e não favorece a sinodalidade e a colegialidade. Nós que temos a graça de saber que Deus é comunhão de pessoas, não podíamos nos caracterizar por um modo monárquico de coordenação. Como encontrar a vacina para o que o Papa Francisco tem chamado de “doença do clericalismo”, que resiste e até se reinventa? Desde Aparecida fala-se de “conversão pastoral”, de “não deixar as coisas como são”, de um rosto de Igreja decididamente voltado para a missão. Com o Papa Francisco esta consciência chegou no centro da instituição, mas boa parte da Igreja está noutra, num cisma silencioso ou até declarado. Como são difíceis as mudanças na Igreja. Não se muda continuando simplesmente a fazer o que sempre se fez. Por exemplo, continuando a formar os pastores nos caducos seminários, com teologias feitas para deixar tudo como está.
Site Franciscanos – O que acha da avaliação do Papa sobre clericalismo: “É um dos males da Igreja. Mas é um mal ‘cúmplice’, porque aos sacerdotes agrada a tentação de clericalizar os leigos, mas tantos leigos, de joelhos, pedem para ser clericalizados, pois é mais cômodo! E isto é um pecado num duplo sentido”?
Frei Toni – Papa acerta na mosca. É isto mesmo o que acontece. Grande parte dos fiéis católicos prefere um presbítero que os infantilize. Afagam o padre e são por ele afagados, e parece que está tudo bem. Mas julgo importante dizer que uma cumplicidade boa pode também acontecer: leigos que tiveram a graça de conhecer a eclesiologia do Vaticano II, de Medellín e de Puebla e se tornaram adultos na fé, ajudam o presbítero a compreender o seu ministério numa Igreja toda ela ministerial; e o presbítero imbuído desta eclesiologia baseada nos fundamentos da fé, e que não se deixa contaminar pelos encantos do clericalismo, colabora para que surja um laicato adulto e uma pastoral baseada em todo o Povo de Deus. Nesta necessária conversão eclesiológica, penso que o presbítero tem um papel decisivo pois ele e os leigos sabem que o ordenado tem o poder. Cabe a ele, portanto, pela postura e modo de coordenar, convencer os leigos de que de fato são verdadeiros cidadãos da vida e missão da Igreja.
Site Franciscanos – Uma das características do nosso tempo é a presença avassaladora das novas mídias. Agora na pandemia houve um crescimento das transmissões digitais das celebrações. Como vê tudo isso?
Frei Toni – Sou bem pouco capacitado para o uso das novas mídias. São, sem dúvida, instrumentos preciosos que podem ser usados para a evangelização. Mais que isso, são um mundo ao qual a Igreja precisa se adaptar e onde deve testemunhar o Evangelho. Como em tudo, sempre há que se fazer discernimento. Junto com o instrumento vem também uma ideologia. E de nada adianta o melhor dos instrumentos se não tivermos testemunho a dar.
A transmissão digital de celebrações certamente deve ter o seu lugar, sobretudo para quem não pode estar presencialmente presente, ou em situações como a da pandemia. Vejo pessoas acompanhando missa na TV não como um programa de televisão, mas como verdadeiro acontecimento salvífico. Mas penso que quem usa desses meios deveria vencer a tentação de ganhar um público para si e sempre remeter a participação numa comunidade concreta. Sem falar do pastoreio paralelo que é feito, às vezes com uma visão alienante de cristianismo, causando um prejuízo à evangelização. Na prática experimento que, para quem transmite, fica o desafio de vivenciar o acontecimento salvífico e não fazer um espetáculo a ser transmitido. Se bem que desafio semelhante enfrentamos também nas liturgias presenciais.
Site Franciscanos – Que lições, quando a pandemia terminar, ficam para a Igreja?
Frei Toni – Muitas. Destaco apenas uma. Aconteceram manifestações de padres e leigos contra as restrições às missas com presença de fiéis, argumentando que se trata de “atividade essencial”, que a Igreja está aceitando passivamente que lhe impeçam de exercer sua missão. Penso que a pandemia escancarou como somos uma Igreja centrada no templo, na liturgia. Exagerando e generalizando um pouco, um clero sacerdotalizado não sabe o que fazer se não tem liturgia para presidir. E o povo católico não sabe o que fazer se não tem preceito religioso para cumprir. É como se Deus fosse servido apenas no templo e não no cotidiano da vida. A liturgia tem sim seu lugar imprescindível na vida e missão da Igreja, e não posso ser acusado de não amar a liturgia. Mas o contexto da pandemia fez aparecer como carecemos de presença mais significativa no campo do ministério da Palavra e da ação social e política. Isso a pandemia não impediu, ao contrário, até criou oportunidades. Se a Igreja não tiver uma presença significativa na sociedade, será que amanhã ainda teremos gente em nossas liturgias?
Site Franciscanos – Como você vê o crescimento de grupos tradicionalistas na Igreja e de movimentos ultradireitistas na sociedade?
Frei Toni – Alguém escreveu que o criminoso desastre político no qual nos metemos no Brasil revelou “o Bolsonaro que há em nós”. Coisa semelhante se poderia dizer da resistência de setores reacionários da Igreja ao ministério do Papa Francisco. Mas vou deixar a análise do fenômeno para pessoas mais gabaritadas. Só digo algo da minha experiência: há decisões do coração que são anteriores a qualquer argumentação ou mesmo aos dados crus da realidade, contra os quais, se diz, não deveria haver argumento. Há decisões do coração claramente anti-evangélicas e tão obstinadas que constituem um “pecado contra o Espírito Santo”. É tempo perdido argumentar. Aí só mesmo um ato de libertação, um exorcismo.
Site Franciscanos – Como a Igreja pode se organizar a partir das CEBs?
Frei Toni – Parece que é preciso dizer minimamente o que se entende por CEBs. É o modelo de Igreja de Medellín e Puebla, a Igreja acontecendo na base, em pequenas comunidades, onde os leigos se tornam adultos na fé e assumem diferentes ministérios, uma Igreja que leva a sério a dimensão sócio-política da fé, a opção pelos pobres, uma Igreja que produz lideranças para a sociedade e é fermento de transformação social. Este modelo de Igreja foi perseguido pelos inimigos externos e internos. Tinha limitações? Sim, no meio do trigo sempre cresce também o joio. Mas lançou-se um clima de suspeita sobre as CEBs, a meu ver, sobretudo pelo que tinha de mais fiel a Jesus e que foi visto como um perigo pelos donos do mundo, pelas alianças da Igreja com a classe dominante e pelo clericalismo. As CEBs ficaram estigmatizadas, assim como a Teologia da Libertação. Tem muita gente hoje na Igreja, também muito religioso e padre novo, que não sabe direito o que são CEBs, mas que tem a convicção de tratar-se de coisa do diabo. Vivi esta história. Optou-se por um neoconservadorismo católico: televisão, movimentos espiritualistas, padres superstars. Neste modelo, os leigos são plateia, que gostam do leitinho que é oferecido e querem mais, mas não se tornam missionários, testemunhas do Evangelho na sociedade. Foi um grande tiro no pé. O resultado está aí: uma Igreja que tem pouco a dizer e que se torna socialmente insignificante. E como faz falta no atual momento do Brasil um posicionamento profético da Igreja.
Nas atuais Diretrizes da CNBB, num mea culpa não sei se admitido, os bispos voltaram a apostar no que chamam de “pequenas comunidades eclesiais missionárias”, coordenadas por leigos, “com proeminência de mulheres”. Mas parece que se perdeu o “timing” e o clero que surgiu nesta volta ao clericalismo não é talhado para estas coisas. É preciso começar de novo a fazer trabalho de base, reunir as pessoas, especialmente os pobres, em torno da Palavra, ligar fé e vida, engajar-se em ações de transformação da realidade… Como organizar a Igreja em rede a partir das pequenas comunidades? Até eu já escrevi um livrinho com propostas neste sentido. Penso que pode haver modelos diferentes, o que importa é o espírito, que só tem lugar numa verdadeira conversão eclesial.
Site Franciscanos – Como você avalia o Pontificado do Papa Francisco?
Frei Toni – Um milagre do Espírito. Volta ao essencial: o seguimento de Jesus. Retomada do Concílio Vaticano II: a projeção de uma Igreja Povo de Deus, serva do mundo, que existe para evangelizar. Ele é um profeta que, com gestos e palavras, levanta questões importantes não só para os católicos, mas para toda a humanidade. Tudo, então, está se encaminhando bem na Igreja? Claro que não. Mas o que me pergunto é: Onde estaríamos sem um Papa Francisco a nos recordar o caminho do Evangelho?
Entrevista a Moacir Beggo