Notícias - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Frei Alberto fala dos 25 anos da Missão

30/09/2015

Notícias

angola_profissão

Frei Alberto Beckhäuser, OFM

Estamos celebrando os 25 anos da Missão em Angola que me é muito cara. Por ocasião desta comemoração, gostaria de dar meu depoimento. Primeiramente lembrar novamente a Crônica que apresentei por ocasião de minha estadia por dois meses na Missão de Angola em 1995 como Secretário Provincial da Evangelização Missionária da Província “Dois meses na Missão de Angola” em Vida Franciscana, Ano LIII, Dezembro de 1996, n. 70, p. 61-83 (vide abaixo).

Eu estava como Assessor de Liturgia na CNBB em Brasília. Por lá passou o Bispo de Guiné Bissau à procura de padres para o país. Em Guiné Bissau se encontrava nosso confrade Frei Juvenal Sansão e depois, Frei Simão Laginski. Percebi que o país estava bem servido de padres, inclusive, de franciscanos da Itália. Meses depois passou por Brasília outro bispo africano, desta vez, de Angola, Dom Zacarias Kamwenho de Sumbe, agora Arcebispo emérito de Lubango, também em busca de missionários para Angola. Conversando com ele, sugeri que se dirigisse ao Ministro Provincial da Província da Imaculada Conceição em São Paulo, pois a Província estava num processo de definir uma Missão na África.

Realmente, Dom Zacarias foi a São Paulo conversar com o Ministro Provincial Frei Estêvão Ottenbreit e a Missão de Angola aconteceu para minha grande alegria, depois de sério processo de discernimento.

Foi este fato que me levou a inflamar-me pela Missão de Angola e ter tido a graça de participar dela como Secretário provincial da Evangelização Missionária e participar dela ao menos por dois meses como missionário, realizando o ideal de minha vocação como missionário franciscano.

Alegro-me hoje na comemoração do Jubileu da Prata da Missão e faço votos que ela continue a iluminar e a incentivar a dimensão missionária de nossa Província. Que Deus seja louvado!
Na foto acima, Frei João Canjenjenga celebra a profissão solene como  terceiro frade angolano em 25 anos da Missão.


CRÔNICA DE 1995: DOIS MESES NA MISSÃO EM ANGOLA

Dentro do Projeto da Província em relação à Missão em Angola, além dos confrades missionários permanentes, são enviados também missionários de apoio, que vão por alguns meses com o objetivo de ministrar algum curso específico como já o fez Frei Ari do Amaral Praxedes. Como Secretário Provincial da Evangelização Missionária manifestei o desejo de ir a Angola, a fim de ministrar alguns cursos de Liturgia, pregar eventualmente algum retiro e assim conhecer melhor a realidade da vida dos confrades. Apresento aqui uma crônica do que vi e experimentei nesses dois meses em que estive em nossa Missão em Angola.

Em nome de todos os Franciscanos

            Dia 19 de setembro de 1995 era a data marcada para partirmos para Angola: Rio-Luanda pela TAAG (Transportes Aéreos Angolanos): Frei Valdir Nunes, Frei Genildo Provin e eu. Dia 18 de manhã ainda estive em Juiz de Fora na VIII Semana Teológica do ITASA (Instituto Teológico Arquidiocesano de Santo Antônio) para uma palestra sobre Santo Antônio no contexto do Culto dos Santos na Religiosidade Popular. Voltando a Petrópolis depois do meio-dia, contra a noite, Frei João Antunes levou-me ao Convento de Santo Antônio do Rio, para o Rito do Envio que se daria na Missa das 08h00 de terça-feira. Descemos a Serra com o coração pulsando mais forte, pelo ritmo que Frei Rafa imprimia ao carro, já sabendo que o avião atrasara 24 horas e que, portanto, partiríamos apenas na tarde de quarta-feira, dia 20.

01A Missa do envio missionário, presidida pelo Ministro Provincial Frei Caetano Ferrari, teve a participação de vários Ministros Provinciais do Comitê de Preparação da Assembleia da UCLAF que se realizaria em Brasília, em abril de 1996. Frei Caetano acentuou na homilia que os missionários estavam sendo enviados não só pela Província da Imaculada, mas pelos Franciscanos de todo o Brasil, representados pelo Presidente da CFMB e por todos os Franciscanos da América Latina, que estão despertando para o chamado missionário de darem da própria pobreza. Convidou os missionários a darem um testemunho público sobre a inspiração que os levava a ultrapassar fronteiras e estar entre os enviados. De minha parte, lembrei que o chamado missionário fazia parte do primeiro momento de minha vocação franciscana, quando nas Missões populares lá na Freguesia da Sanga do Coqueiro Baixo, Capela de Santa Teresinha, Paróquia de Forquilhinha, Frei João Bosco Erdrich me convidou aos 12 anos a ir com ele para ser missionário franciscano, sem que jamais antes me tivesse passado pela cabeça a ideia de uma vocação religiosa ou sacerdotal. Chegava, pois, a hora de realizar esse sonho por tanto tempo acalentado, ainda que não na forma original das Missões populares. Frei Valdir e Frei Genildo também deram seu firme depoimento que arrancou palmas de alegria e de apoio. Recebemos a cruz missionária, que outrora como garoto contemplava com admiração sobre o peito dos missionários. Compreendi que é ela a ponte a construir através da nossa presença missionária.

Dia 20 à tarde, Frei Caetano e o Guardião do Convento Santo Antônio Frei José Pereira nos levaram com grande solicitude ao Aeroporto. Na saída do túnel, no Largo da Carioca, um bom velhinho solidário: o missionário Daniel Kromer, despedindo-se dos missionários e abençoando-os com lágrimas nos olhos. Como sempre, excesso de peso. Mas tudo era para os missionários. O voo sobre o Atlântico até Luanda transcorreu muito bem. É verdade que Frei Valdir e Frei Genildo, perto de fumantes e outros mui falantes animados pelo álcool, pouco repousaram. Ao amanhecer do dia 21 estávamos em Luanda, onde nos aguardavam Frei Simão Laginski e Frei Dílson Adão Geremia. Ajudaram-nos a passar sem nenhuma dificuldade pelo controle da alfândega e nos levaram ao Convento dos Capuchinhos, cujo Guardião, Frei Conrado, nos acolheu com a maior simpatia.

Aproveitamos a manhã para visitar o Mosteiro das Clarissas, em construção na periferia de Luanda, sob a coordenação de Frei Dílson. Em seguida, fomos ver também um terreno reservado para nossa futura Casa de Formação a uns 5 km de distância do futuro Mosteiro. Logo após o almoço no Convento dos Capuchinhos, rumamos com o carro repleto de víveres destinados às Clarissas de Kibala, para Sumbe, sede da Província e da Diocese. Chegamos ao cair da tarde. Fomos bondosamente acolhidos pelo Sr. Bispo Dom Zacarias, já transferido para a Arquidiocese de Lubango, mais ao Sul, como Arcebispo Coadjutor. A diocese de Sumbe ainda está sem novo Bispo. Numa das pousadas, os mosquitos não deram tréguas aos confrades depois de uma noite mal dormida no avião.

Ponte da ação missionária

Dia 22 retomamos o caminho rumo a Kibala. Frei Dílson no volante, Frei Simão Laginski às voltas com sua coluna ainda em recuperação, Frei Valdir, Frei Genildo e eu. O grande desafio para se chegar a Kibala é a ponte sobre o rio Niha, afluente do rio Kuanza, semidestruída pela guerra. Por ela não passa carro. O jeito é ir até Gabela e aí depender do favor dos padres, que acompanham até a ponte e levam o carro de volta. Descarrega-se a bagagem, faz-se o transporte nas costas ou na cabeça, descendo um pranchão da própria ponte e subindo outro de metal para atingir o trecho da ponte ainda de pé. Do outro lado, se houve possibilidade de avisar em Kibala, está à espera um carro, caso contrário, vai-se a pé ou de carona, chamada boleia, buscar o carro. No nosso caso, os frades nos haviam esperado o dia anterior como tinha sido combinado, mas tiveram que desistir da espera. Assim, Frei Valdir e Frei Dílson, valentes carregadores, dispuseram-se a ir de moto que levávamos de Sumbe para a Missão, a Kibala, distante 30 km.

No meio do caminho encontram-se com Frei José Zanchet que já tinha estado na ponte para apanhar Irmãs Clarissas que vieram de Luanda, via Sumbe. Elas haviam noticiado a nossa chegada. A estrada junto à ponte mais parece um formigueiro humano. Pobre gente carregando produtos com seus carrinhos de madeira de duas rodas, chamados trotonetes ou troles; mulheres com sacos ou balaios na cabeça sob o sol causticante, tendo que deixar parte dos produtos extorquidos nos diversos controles. Quanto sofrimento pela sobrevivência! Tudo isso me fez pensar na ponte da ação missionária: como restabelecer a ponte para se conseguir a paz, como fazer a ponte pela presença missionária, sendo Jesus Cristo a ponte? Nós ficamos cuidando dos produtos que levávamos. Como foram gostosos os pães secos que tínhamos conosco, as bananas e a água pura, mesmo aquecida pelo calor do sol! Finalmente, pelas 14h00 chegou Frei José Zanchet. Tudo novamente embarcado, chegamos a Kibala. Na chegada, fomos apresentados às Irmãs Clarissas que nos receberam com carinho e entusiasmo.

02Projeto missionário e realidade concreta

Acolhidos por Frei Pedro Caron e Frei Hermenegildo Pereira – Frei Plínio estava acamado com hepatite – e refeitos, celebramos a Eucaristia, às 17h00, com a presença de alguns fiéis, que nos tinham esperado no dia anterior. Os novos missionários foram apresentados à Comunidade eclesial da Missão. À noite, mesmo cansados, abrimos o Encontro Regional, à luz da instalação elétrica de energia solar, trazida e instalada na Casa dos Frades e no Mosteiro por Frei José Zanchet. Foi uma avaliação de nossa Missão em Angola. Faltou apenas Frei Odorico Decker, que ficou sozinho em Malange. Frei Plínio apareceu rapidamente durante a ceia, mas logo recolheu-se, tentando a recuperação para, na segunda-feira, iniciar o seu retorno para o Brasil.

No início da reunião informal, ouvimos o depoimento dos missionários sobre seu testemunho heroico nesses anos de confinamento por causa da guerra. Uma coisa é certa: aguentaram firmes e solidários com o povo sofrido. Se não chegaram ao martírio de fato, confessores eles o são. Nas reflexões debateu-se uma questão de fundo: a Missão da Imaculada em Angola e a tensão entre o Projeto missionário da Província em relação a Angola e a realidade eclesial encontrada com as exigências próprias das Igrejas particulares, onde nos encontramos. O Projeto missionário da Província, à luz do “Projeto-África” da Ordem e do último Capítulo Geral, insiste na Evangelização pelo testemunho fraterno, na presença franciscana entre, ou seja, viver como irmãos menores com todos, caminhar com o povo local, juntos como irmãos. E, assim, evangelizar-se e evangelizar. Tudo isso em parceria com a Ordem II, a OFS e, enquanto possível, com irmãs franciscanas, numa integração da Família Franciscana. Em consequência, estabelecer a Ordem nestas partes do mundo, acolhendo e favorecendo a formação dos eventuais candidatos.

O que foi que os confrades encontraram? O que lhes é proposto e quase exigido pelas Igrejas particulares? Foram-lhes confiadas duas grandes Missões Católicas. O que significa uma Missão Católica em Angola e, de modo geral, na África e em outras terras missionárias consideradas como tais pela Igreja universal? Em Kibala, Missão Católica de Nossa Senhora das Dores e em Katepa (Malange), Missão Católica dos Santos Mártires de Uganda. Trata-se de todo um conjunto de elementos: casa ampla, com pátio e adjacências destinadas a acolher containers (aqui, contendores), Serviço da Caritas Internacional, veículos etc. Costuma ser sede paroquial, sem ser Paróquia propriamente dita, mas quasi parochia. Desse centro, os padres, e religiosas também, costumam atender, numa enorme extensão territorial, um pouco conforme as nossas Capelas no Sul.

A Missão Católica de Kibala tem 139 aldeias agrupadas em 19 Centros eclesiais maiores com Catequese organizada. Devido à guerra que já se estende por 34 anos em Angola, praticamente não se conseguiu fazer nada neste sentido até agora. Pede-se, portanto, dos nossos confrades também uma ação pastoral missionária franciscana inculturada. Impossível, se a Fraternidade for composta apenas de dois frades. Assim, não se pode ficar doente e o paludismo graça. A Missão Católica dos Santos Mártires de Uganda de Katepa tem 132 Comunidades Eclesiais com cerca de 250 aldeias, com três Centros (três municípios); Katepa, onde estão as Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria; Cangandala, a 28 km de Katepa, aonde pensam voltar as Irmãs Franciscanas de São José, e Mussolo, a cerca de 170 km de Catepa (Malange), onde estiveram e para onde poderão retornar as Irmãs de Jesus Crucificado, que no momento se encontram em Malange.

Em cada uma destas duas Missões são necessários ao menos dois frades sacerdotes e um irmão leigo. O ideal seria quatro, ao menos em Katepa, tendo em vista o Mosteiro das Clarissas. Claro que o frade irmão leigo deverá participar da ação evangelizadora, inclusive na pastoral. Parece-me que só assim enfrentaremos a tensão existente entre o Projeto missionário da Província e a realidade concreta a nós fornecida. Isso, sem exportar ou importar esquemas missionários e pastorais tradicionais ou modernos da Europa ou do Brasil, como o provimento de alimentos, roupas, esquemas mentais e métodos, remédios. Apenas o absolutamente necessário, para que o testemunho de fraternidade minorítica garanta a primazia: estar como irmãos pobres entre os pobres.

Dia 23 de setembro, sábado, depois de um repouso um pouco mais prolongado, Frei José Zanchet preocupou-se em mostrar a Missão aos confrades visitantes. A captação das águas, a energia, a luz. Admirável o dinamismo e o zelo deste nosso confrade já sexagenário. Preocupa-se com o bem-estar das Irmãs Clarissas e com os confrades. Realmente água e luz constituem dois elementos fundamentais para a vida de qualquer Comunidade, além de possuírem todo um significado simbólico no âmbito da fé. Por suas qualidades e seu zelo pela água e pela energia elétrica para força e luz, Frei José deveria chamar-se Frei Aquilúcio. Desculpe a brincadeira, Frei José: Seu zelo missionário é admirável em todo sentido.

Ainda na parte da manhã, combinei o trabalho a realizar com as Irmãs Clarissas até a festa de São Francisco sobre a Sagrada Liturgia. Ficaram muito felizes com este atendimento, visto que Frei Ari Praxedes, no ano passado, não tinha conseguido chegar a Kibala para o curso de Espiritualidade franciscano-clariana.

De tarde, concelebramos Missa na capela da cidade, hoje praticamente depenada. Digo, na cidade, pois Kibala, embora pequena, é de grande importância estratégica por se tratar de um entroncamento para todas as direções da parte sul de Angola. Era uma cidade de colonização portuguesa de grande futuro. Cidade também em oposição à Sede da Missão, que fica 3 km distantes dela. Isso porque os missionários da recente e nova Evangelização de Angola, encetada, sobretudo, pelos Padres Espiritanos, a partir da primeira metade do século passado, estabeleciam a Sede da Missão um tanto afastada do centro da cidade habitada pelos portugueses. Queriam assim atingir prioritariamente as populações autóctones. Já era uma forma de inculturação. Nesta celebração, com frequência não muito numerosa por causa da insegurança ainda reinante, apenas nós éramos brancos. Houve nova apresentação dos missionários.

03Um encontro para planejar o futuro

À noite reservamos o tempo para uma reunião ou encontro formal do Regional de Angola, com o objetivo de planejar o andamento da nossa presença missionária. Coordenei a reunião. Montamos primeiro a pauta dos principais assuntos a serem tratados. Inicialmente relatei o COMLA 5 (V Congresso Missionário Latino-americano) celebrado em julho deste ano em Belo Horizonte, muito em consonância com o Projeto Missionário da Ordem. Continuando os assuntos, sentiu-se o desejo de maior empenho da Província pela Missão. Tentei mostrar como se está trabalhando na Província o despertar da dimensão missionária, o despertar de novos candidatos e sua formação, bem como a ação decisiva do Ministro Provincial e de Frei Estêvão como Delegado do Ministro Provincial. Alguns missionários achavam que o Ministro Provincial deveria ser mais incisivo no convite a confrades para engrossar as fileiras missionárias em Angola. Certamente, neste ponto, deverá haver mais comunicação entre os confrades da Província. O assunto principal, no entanto, era o tema da formação dos novos candidatos, com seus reflexos sobre as Fraternidades.

Antes, porém, se constituiu a coordenação da Missão: Frei Dílson Adão Geremia foi indicado para Responsável legal de toda a Missão. Ele foi eleito também Coordenador do Regional. Os dois Guardiães Frei Simão Laginski, de Kibala, e Frei Genildo Provin, respectivamente, Vice Coordenador e Secretário. Assim se constituiria uma espécie de Conselho da Missão. Frei Genildo foi logo empossado na função de Secretário. Seu relatório enviado ao Provincialado contém as resoluções e propostas da Reunião. Passamos, então, à questão das Casas de Formação, da Pastoral vocacional e da constituição das Casas.

Existem candidatos. Nestes últimos tempos de calamidade perdeu-se um pouco o contato com os possíveis candidatos. Será preciso organizar em cada Casa o serviço vocacional com um responsável que o coordene. Propõe-se o acompanhamento dos candidatos sem o Básico nas Casas. O correspondente ao 2º Grau aqui poderá ser feito em Malange. Num segundo momento deste 2º Grau, chamado Propedêutico, poderá ser feito o Postulantado. Candidatos com o 2º Grau feito poderão também fazer o Postulantado, com Programa próprio. Tudo isso em Malanje. Discutiu-se, então, sobre as dependências da Casa e o convívio entre frades e candidatos. Viu-se que para tanto serviço, com todo o trabalho da Missão em Malange, são necessários ao menos quatro frades. Não seria o caso de professos temporários da Província, após a Filosofia, fazerem um estágio missionário junto ao Postulantado em Malanje e depois voltar à Província, a fim de continuarem seus estudos e formação, seja de Teologia, seja em outra área? Ou por que não fazer os estudos de Teologia em Luanda quando lá funcionar o Instituto de Teologia, como se prevê? A missão tem seus riscos e desafios a enfrentar.

A abertura da Formação inicial traz consigo várias consequências. Todas as casas e cada frade se tornam formadores. Vai despertar a necessidade de as Fraternidades se voltarem para a formação continuada ou permanente. O Projeto de vida franciscana e missionária terá que ser trabalhado. Queremos formar frades angolanos, ajudando a formar uma Fraternidade Provincial Franciscana de frades no jeito africano de ser. O objetivo primeiro é formar frades menores no jeito angolano de ser. Já sonhamos com todos os passos da formação: Postulantado em Malange, Noviciado em Kibala e Estudos de Filosofia e Teologia em Luanda, com as adaptações necessárias para a formação dos frades candidatos a clérigos e leigos, acentuando sempre a formação do frade menor.

Com a abertura do Postulantado em 1996 e o estabelecimento da pequena Casa em Luanda também em 1996, serão necessários de imediato ao menos mais quatro missionários. Um para Malange, um para Kibala, reforçando o serviço na Missão e a assistência às Clarissas, formando uma Fraternidade de ao menos três, e dois em Luanda para formar a Fraternidade de ao menos três também, onde darão assistência às Irmãs Clarissas e animarão o Centro de Espiritualidade Franciscana que aí se deseja fazer nascer, além de todo o serviço de apoio às Casas de Katepa (Malange) e Kibala. Desde logo devemos pensar num Mestre de noviços, que poderia exercer também a função de Assistente das Irmãs Clarissas em Kibala.

Os confrades missionários são unânimes em afirmar que por ora devemos reforçar e consolidar as Fraternidades existentes, isto é, as três: Katepa (Malanje), Kibala e Luanda, garantindo em cada uma delas ao menos três frades. Claro, Katepa deveria contar com quatro. O momento é de consolidar nossa presença em Angola, depois desses anos tão cheios de provações. No momento não é hora de expansão, apesar da insistência dos Srs. Bispos no sentido de assumirmos outras “Missões”.

Acreditamos que a reunião, onde reinou muita franqueza e grande zelo fraterno e apostólico, foi de grande proveito. O diálogo franco mostrou a necessidade de reuniões periódicas desse gênero, para que se possa, com a graça de Deus, conciliar o Projeto missionário da Província e da Ordem com a realidade concreta que nos é oferecida.

04E começamos a trabalhar

Domingo, dia 24, concelebramos na Capela improvisada da Missão. A “igreja” cheia de gente das aldeias vizinhas. Participação vibrante com mais uma apresentação dos missionários. Quem dera ter tido comigo um gravador para registrar os belos cantos típicos dos angolanos com seus ritmos, melodias e instrumentos, cantados, sobretudo, na procissão do Evangelho e na das oferendas. Ao meio-dia tivemos um almoço de confraternização com as Irmãs Clarissas. Cardápio: um cabrito e cervejinha Sagres, importada de Portugal, doada à Missão. Foi bonito. à noite, antes de recreio fraterno, aproveitou-se ainda um tempo para amarrar alguns pontos das reuniões de trabalho das noites anteriores e decidir alguns pontos pendentes como a vinda das Irmãs da Sagrada Família a Kibala.

Dia 25 de manhã partiam de volta para o Brasil Frei Pedro Caron e, em férias e tratamento, e Frei Plínio Gande. Torcíamos todos para que Frei Plínio tivesse boa viagem até Luanda e daí para o Brasil. Frei Simão Laginski, Frei Valdir Nunes e Frei Genildo Provin iam com Frei Dílson por Luanda a Malange. Frei Hermenegildo Pereira iria a Sumbe cuidar da prorrogação do visto. Passadas algumas horas, Frei Dílson e Frei Valdir estavam de volta, pois o carro que deveria apanhar os frades do outro lado da ponte, não estava. Outra ponte improvisadamente reparada quebrara pelo peso de um caminhão e a chuva impedia uma passagem a vau por um desvio. Vinham, pois, buscar a motoneta, para irem até Condé, entre Gabela e a ponte, onde o carro fora retido. Soubemos depois que quando os dois chegaram à ponte, o padre de Gabela já havia chegado. Rumaram, então, por Sumbe, onde deixariam Frei Hermenegildo, para Luanda. E eu dei início ao curso de Liturgia às Irmãs Clarissas.

Dia 26, soubemos que Frei Hermenegildo não resolvera os problemas da comunicação em Sumbe e viajou para Luanda. Frei José Zanchet e eu continuamos nossa vida cotidiana em Kibala.
Dia 28, Frei José Zanchet foi visitar uma Comunidade e soubemos que no dia seguinte Frei Hermenegildo devia chegar de Luanda. Frei José foi até a ponte para apanhá-lo, mas voltou sem ele. Sábado à noite, finalmente, ele chegou. Foram três dias de peripécias. Um dia até Sumbe; dia seguinte, de boleia (carona) com um candongueiro, caminhoneiro que transporta produtos para a candonga (mercado paralelo, tipo nosso camelô, mas muito mais amplo, sistema de trocas do povo, pois só este funciona), até Gabela, com promessa de que, no dia seguinte, um padre o levaria até a ponte. Mas o padre estava muito ocupado com a preparação de primícias na cidade, encontrando dificuldades de levar o Frei. Então Frei Hermenegildo preferiu pegar mais uma boleia com novo candongueiro que, no entanto, o levou somente até Condé. Faltavam ainda 17 km até a ponte. O jeito foi fazer o trecho a pé. Por sorte, depois da ponte conseguiu nova carona que o trouxe até a Missão. Chegou cansado, sedento, os pés moídos e fortemente gripado, tossindo a mais não poder.

Domingo, 1º de outubro, de manhã, estive com as Clarissas e, de tarde, saí a passeio om Frei José Zanchet para conhecer um pouco do terreno da Missão. Dia 2 de outubro, último dia de trabalho com as Irmãs Clarissas: a compreensão cristã dos Salmos na Liturgia das Horas. O curso todo consistiu nestes três temas: a compreensão geral da Liturgia à luz dos três elementos principais de uma celebração; a Páscoa, o símbolo e o mistério, ou seja, o fato valorizado, a expressão significativa e a intercomunhão solidária; a Eucaristia e a Liturgia das Horas.

No fim, as irmãs Professas manifestaram suas preocupações sobre o futuro delas em Angola e Kibala. Isso tanto sob o aspecto material como espiritual. Certamente é urgente o encaminhamento da construção de um mosteiro por mais simples e pobre que seja, visto que até agora elas moraram sempre em Casas provisórias. Não menos importante seria uma assistência qualificada por parte dos frades. Importa ajudá-las para que se tornem autônomas em sua formação, mas a assistência da Ordem I será sempre importante na reciprocidade e complementaridade do carisma.

05Profissão solene das primeiras Irmãs Angolanas em Kibala

Dia 3 de outubro, o dia da grande preparação da Festa de São Francisco com a profissão solene das duas primeiras irmãs angolanas no Mosteiro de Nossa Senhora de África: Ir. Clara da Eucaristia e Ir. Regina de Jesus. À tarde chegou a Sumbe o Sr. Bispo Dom Zacarias Kamuenho. Frei Hermenegildo e eu ficamos na saudade da celebração do Trânsito de São Francisco, enquanto Frei José Zanchet buscava o pessoal na ponte para a Solenidade da Profissão.

Dia 4 de outubro: Solenidade de Nosso Pai São Francisco. Cedo, celebramos Laudes com o Sr. Bispo e duas irmãs da Congregação da Sagrada Família, que vão se instalar em Kibala. Com dois fascículos do Suplemento Franciscano enriquecemos o Louvor matinal. Frei Hermenegildo, no entusiasmo da festa, estava curado da gripe.

Às 09h30, Missa concelebrada de São Francisco com solene Profissão perpétua das duas primeiras irmãs angolanas do Mosteiro de Nossa Senhora, Mãe de África, Ir. Clara e Ir. Regina. A Missa e a Profissão realizaram-se no pátio interno do Mosteiro, junto a umas belas rochas, debaixo de grande árvore, com cantos típicos angolanos em kimbundo. Um dos momentos mais emocionantes foi o canto da Ladainha de Todos os Santos com a prostração das professandas. Experimentamos no rito o mistério da morte e ressurreição: as professandas prostraram-se sobre esteiras estendidas diante do altar. A Madre Abadessa cobriu as professandas com um lençol branco e pétalas de rosas. Após a Ladainha, elas como que renasceram das cinzas pela consagração ao Senhor. Neste rito de consagração refaziam-se as pontes. Eram 10 concelebrantes, além de religiosos, religiosas, representantes da UNITA que domina a cidade e das Forças de Paz da ONU e bom número de fiéis. Francisco e Clara traziam um pouco de Paz e de Bem para todos. A Celebração durou umas duas horas e meia. O almoço, a cabrito, foi no mosteiro, numa bela confraternização entre as Irmãs Clarissas, parentes das professandas, o Sr. Bispo, sacerdotes, frades e freiras. Uma festa de São Francisco diferente em terras angolanas!

Ao entardecer, Frei Hermenegildo e eu rezamos as II Vésperas de São Francisco e voltamos para o jantar nas Ir. Clarissas.

Dia 5 de outubro voltamos para Sumbe. Frei José Zanchet, em duas viagens, levou-nos até a ponte, onde nos esperavam o carro de Dom Zacarias e outro de Luanda, que tinham estacionado em Gabela. Iniciava novamente a aventura de atravessar a ponte. Cenas de cortar o coração! Quanto sofrimento para atravessar esta ponte com víveres, mantimentos e outros produtos de troca, trazidos a pé, empurrados nos troles ou carregados na cabeça pelas mulheres de uma distância de 80, 100 e mais km. Em cinco dias a ponte poderia ser reparada, mas não há nenhum interesse que isso aconteça. Só interessam as vantagens dos grandes. Para não se escorregar na passagem era necessário tirar até as meias. Foi o que fez, inclusive, o Sr. Bispo, em sua batina branca.

Esta ponte é bem o símbolo da nossa missão em Angola. Quantas pontes a serem construídas, para que se estabeleça a única e verdadeira ponte, o Sumo Pontífice Jesus Cristo, entre Deus e aquele povo. A ponte da fraternidade que ensina, na necessidade, a segurar a lanterna, para que o confrade mexa a sopa, que ensina a pôr a mesa enquanto o confrade esquenta a comida. A ponte da inculturação: entrar no ritmo do povo, bem diferente do nosso, largar os próprios planos de pastoral para aprender do agir do povo. A ponte da pobreza: uma pobreza sentida na alimentação, na saúde, no vestuário, nos móveis, nos utensílios, nos hábitos, na impotência na aplicação dos próprios conhecimentos. Transportados nas costas os produtos para os dois carros que nos esperavam, rumamos para Gabela. O outro carro foi direto para Luanda.

06Retiro em Sumbe

Em Gabela tive a grata surpresa de conhecer o Pe. Farias, português, pertencente à Sociedade Missionária Portuguesa, chamada também Boa Nova, que já passou por Teófilo Otoni, fã dos meus livros sobre Liturgia, que muito desejava conhecer-me. Após o almoço, sempre no carro do Sr. Bispo, continuamos viagem para Sumbe. Estávamos no caro, o Sr. Bispo, o motorista, eu, duas irmãs da Sagrada Família e uma senhora de Luanda, amiga e benfeitora de uma das irmãs clarissas que havia professado. Não demorou e lá se foi um pneu. Descemos. Cadê macaco, cadê chave? Graças a Deus, fomos amavelmente socorridos por um chofer de caminhão, lotado de jovens que fizeram uma festa por poderem socorrer um Bispo na estrada. Tudo pareia em ordem, quando se verificou que o estepe também estava quase vazio. Por sorte, o homem do caminhão andava prevenido e o calibrou. Sem maiores percalços, chegamos, à tardinha, a Sumbe.

Convidado por Dom Zacarias para pregar um retiro franciscano para as irmãs de sua fundação, não lhe podia negar. Pensava iniciar no mesmo dia 5 à noite, mas o ritmo em Angola é outro. O Sr. Bispo achou que talvez se pudesse iniciar no dia 8, domingo. Assim, o Senhor me concedeu a graça de três dias de vida eremítica num quartinho de um prédio praticamente abandonado. Consegui defender-me dos mosquitos. Tínhamos algumas horas de energia fornecida por geradores. Água encanada não existia nesta capital de Província (Estado); conseguimos também uns barris de água para banho e descarga sanitária.

Domingo, dia 8, celebrei às 10h00 na catedral e à tarde abri o retiro para a Congregação das Irmãs Franciscanas da Visitação de Maria do qual participaram também quatro irmãs da Sagrada Família que também professam a Regra da TOR. O retiro realizou-se na Casa de Noviciado da nova Congregação, onde já moraram as Irmãs Clarissas de Kibala. Como seria importante uma assistência por parte dos frades, ajudando-as a adquirirem o rosto africano e angolano de Francisco e de Clara e, aprendendo do entusiasmo delas, um rosto inculturado para os nossos futuros frades angolanos, sobretudo agora que Dom Zacarias, o Bispo Fundador, é transferido para Lubango.

No 2º dia do retiro fui acometido, creio eu, de uma intoxicação ou infecção intestinal com intensa diarreia e consequente desidratação. Já pensei que fosse o paludismo. Fizemos o teste e, graças a Deus, deu negativo. Comecei a ter mais cuidado com a água, o funge (espécie de pirão d’água) e congelados.

Havia combinado com Dom Zacarias que sábado, dia 14, alguém me levaria a Luanda. Tendo lembrado isso às irmãs no dia 12, 5ª-feira, disseram-me que o carro iria 2ª feira, dia 16. Insisti que deveria ser dia 14, sábado, pois 2ª feira prendia preparar tudo em Luanda, para, o mais tardar 3ª feira, dia 17, ir a Malange. Atenderam atenciosamente o meu pedido. Viajei para Luanda, sábado de manhã, de carona (boleia) com dois juízes muito finos e cultos. Pude divertir-me com o anedotário dos grandes do Governo e da UNITA nos anos da Revolução pela independência de Angola e da Guerra Civil que depois se instaurou e ainda não chegou ao fim. E já são 34 anos seguidos de guerra. Ao partir, o juiz motorista tirou uma Ave-Maria para que tivéssemos boa viagem. Dando meio-dia, o outro juiz puxou todo o Angelus, não o mutilado das três Antífonas sem resposta que, não sei a título de quê, se está introduzindo na Província. Era o mesmo juiz que na partida escondeu a arma debaixo do tapete sob os pés. Sinal da insegurança por toda parte. Soube que a Evangelização de Angola tinha formado belo grupo de intelectuais católicos, agora em dificuldade de sobrevivência.

Prisioneiro da burocracia

Em Luanda, no Convento Nossa Senhora de Fátima, dos Capuchinhos, encontrei ainda o Frei Pedro Caron e Frei Plínio, em recuperação da hepatite no Carmelo, onde Ir. Dominique, o nosso Anjo da Guarda em Luanda, acolhe os religiosos e as religiosas missionários para recuperação de paludismo e de outros males. Dia 16, 2ª feira, preparei-me para ir a Malange; Frei Pedro e Frei Plínio, para voltarem ao Brasil, no voo do dia 17. Tiramos fotos para renovação da documentação e dirigimo-nos para o PAM (Programa Alimentar Mundial) que fornece passagens para diversos lugares através da Caritas Internacional. Teria tido uma passagem para o mesmo dia, mas pouco experiente, achei já muito em cima da hora. Depois, Frei Dílson, que se tinha afastado com o carro, atendendo a outro serviço, alertou-me sobre a bobagem que tinha feito. O funcionário da PAM pediu-me que voltasse, então, na terça-feira, para garantir o bilhete para quarta, pois terça não haveria voo para Malange.

07Dia 17, sempre conduzido por Frei Dílson, fomos novamente confirmar a passagem pela PAM para quarta-feira, dia 18 e, em seguida, levamos Frei Pedro Caron e Frei Plínio para o aeroporto. No mais, acompanhamos a vida da Comunidade capuchinha. Dia 18, quarta, Frei Dílson me deixa no aeroporto, onde eu pegaria o avião para Malange e ele continua com Frei Simão Laginski pela cidade, preparando sua ida a Kibala no dia seguinte. Partiriam cedinho e Frei Dílson voltaria na sexta-feira. Meu avião deveria partir às 14h00. Esperamos lá no aeroporto. Chegou a hora e nada acontecia. Pelas 14h30 soubemos que o voo tinha sido cancelado. Sorte que consegui uma boleia de volta para o convento. Frei Dílson ainda estava na cidade com Frei Simão. Frei Conrado, o solícito Guardião do Convento, foi comigo à Sede do PAM para ver se confirmávamos a passagem para quinta-feira. Mas tudo já estava fechado. As repartições em Luanda só funcionam na parte da manhã, conforme me informou Frei Dílson.

Ao entardecer voltaram Frei Dílson com Frei Simão. Frei Dílson me viu e no momento nem se lembrou de que me tinha deixado no aeroporto. Expliquei-lhe o que havia acontecido. Chegamos à conclusão de que não mais valeria a pena ir a Malange sem ter renovado o visto que esgotava dia 21, sábado, pois dificilmente seria prorrogado em Malange e não haveria tempo hábil de se enviar o passaporte de volta a Luanda. Pronto! Era prisioneiro da burocracia! Assim, dia 19, quinta, entreguei o passaporte à Ir. Dominique para que ela o encaminhasse ao DEFA para a prorrogação do visto por um mês, em regime de urgência. Dia 20, sexta-feira à tarde, Frei Dílson está de volta de Kibala. Boas notícias de lá e eu, treinando a paciência, com dificuldades de chegar ao novo local de trabalho.

Passa o sábado sem novidades, a não ser uma dor de barriga persistente. Será a água? Com dores de estômago e diarreia, também se foram o gosto e a vontade para qualquer outra atividade. Nem a leitura para passar o tempo apetece. Já uma semana de espera! Pensei em São Paulo. (Quem sou eu para com ele comparar-me?). Mas me lembrei de que ele em Corinto, não tendo resposta à sua ação evangelizadora, pôs-se a fabricar tendas. Domingo, dia 22 de outubro, Dia mundial das Missões. Frei Anastácio, Vice Provincial dos Capuchinhos, sabendo que eu estava querendo “fabricar tendas”, deu-me a Missa das 10h30 na Paróquia. Esforcei-me por celebrar de modo adaptado àquela assembleia. Sob o aspecto do canto a Liturgia é certamente bastante inculturada. Na Missa da Juventude às 08h15 a enorme igreja estava repleta. Os cantos são menos barulhentos e movimentados do que costumam ser as nossas missas dos jovens. Os cantos têm ritmos próprios dos negros, sim, mas são mais calmos e contemplativos. Talvez menos show para a assembleia à espera de aplausos. A meu ver, de modo geral deu-se pouca ênfase ao Domingo das Missões. Também a Igreja missionada é chamada a ser missionária. Acontece, frequentemente, que a Igreja local é formada para a dependência, para o assistencialismo, que mata as lideranças locais. Lembrei-me da Campanha Missionária do mês de outubro na Província, do Projeto missionário da Província, do entusiasmo missionário que está despertando nas nossas Casas e Comunidades eclesiais. Por outro lado, a gente aqui de mãos amarradas, sem conseguir chegar ao local da missão. É o Espírito que age. A nós compete antes ser ou realizar a função de Moisés em oração, enquanto Josué combate. Afinal, somos servos inúteis.

Dia 23, segunda-feira. Os comprimidos para o estômago, umas frutas e água mineral, arranjados por Frei Dílson, fizeram-me recuperar o ânimo, inclusive retomar a leitura e esta crônica. Um pormenor. Uma garrafa de água mineral, importada de Portugal custou mais do que um tanque de gasóleo (óleo Diesel), com que Frei Dílson pode rodar por um mês pela cidade de Luanda. Iríamos viver mais uma estação daquilo que já estava sendo um rito diário: passagem pelo Carmelo, para ver como andavam as tratativas da prorrogação do visto, cuidar do bilhete no PAM. À tarde, nova rodada. Como segunda-feira nada funciona, já nos fomos conformando com terça. Enfim, é a esperança que sustenta e alimenta a paciência. Fomos ver a possibilidade de bilhete para viajar com a TAAG. Frei Dílson foi informado que haveria voo na quinta, mas que não estavam emitindo bilhetes por falta de formulários. Assim, certamente o voo de quinta seria cancelado.

Dia 24, terça-feira. De manhã, passamos na Ir. Dominique, na esperança de que o visto estivesse pronto. Esperamos até o meio-dia e nada de Ir. Dominique. Voltamos à tarde, pelas 14h00, pensando que ela estaria de posse do passaporte. Nada. Mas prometeu que voltaria à tarde ao DEFA, certa de que haveria de conseguir. Disse-lhe que estava me preparando para a próxima estação. Respondeu-me que ainda estava longe da 14ª estação. Mas já lá se iam 11 dias de espera. Saímos de lá rumo ao PAM com o intuito de reservar passagem para o dia seguinte, mas encontramos a Repartição fechada. À tardinha Frei Dílson passou no Carmelo mais uma vez para ver se Ir. Dominique conseguira a prorrogação.

Continuamos aguardando, praticando a paciência, animada pela esperança. Sorte que voltara o ânimo e o gosto pela leitura. Li um interessante livro de José Nunes, O.P., sobre a inculturação da Igreja na África e particularmente em Angola. Pela índole do povo, acentuada pela situação político-social, quem aqui vem tem que apreender muita coisa. O angolano é senhor do tempo; nós é que somos seus escravos. Nós fazemos planos. Executá-los é expressão de dominação e poder. Temos que nos despojar dos nossos planos, para ficarmos atentos aos planos de Deus. Experimentamos uma profunda impotência, a partir de nós mesmos, das nossas ações. A força de Deus quer manifestar-se na fraqueza. A salvação vem de Deus. Isso leva a purificar-nos, a confiar mais em Deus. Parece que Jesus Cristo e Francisco querem ensinar-nos à força que o primeiro modo de evangelizar-se e de evangelizar do frade menor é “ir entre”, é “estar entre” e não fazer isto ou aquilo; é agir como o bom samaritano: aproximar-se, ter compaixão, e só então, fazer o que estiver ao nosso alcance.

Frei Dílson trouxe o passaporte com o visto prorrogado por mais um mês. No dia seguinte poderíamos partir para a próxima estação: conseguir o bilhete para Malanje. Graças a Deus! Consegui um bilhete pelo PAM quinta-feira, às 14h00. Agora era torcer para que o voo realmente se efetuasse.

Dia 26 de outubro. Amanheceu um dia claro. Ainda não começaram as chuvas. Aliás, dizem que em Luanda chove pouco. De manhã, como de costume, concelebramos a Missas às 06h30. Uma constatação interessante: ela é bem frequentada e participada. Conta com a presença de irmãs de várias Congregações, os frades, os coroinhas da Paróquia e fiéis em geral. Só religiosas são em torno de 50. Rezam-se as Laudes integradas na Missa. Pode-se cair um pouco na rotina, mas é certamente um valor que poderia ser cultivado em nossas Comunidades eclesiais. Daí o sentido da publicação da Liturgia das Horas em volume único, apenas com Laudes, uma Hora Menor, Vésperas e Completas, e a utilidade de uma edição mais reduzida ainda com o Saltério apenas.

08Três semanas em Malange

Desta vez, pelas 14h15, a avioneta, como são chamados aqui os pequenos aviões, levantou voo para Malange com pessoal do PAM e da UNICEF. Um pouso em Endalatando com pista de terra batida. E pelas 15h30 chegamos a Malange. Felizmente, Frei Valdir estava me esperando no aeroporto. Passamos pelo Departamento de Polícia, pois também nas Províncias existe o controle de circulação de estrangeiros. Foi uma alegria o encontro com os confrades: Frei Odorico Decker, Frei Genildo Provin e Frei Valdir Nunes.

O dia 27 serviu para tomar pé. Estive no Mosteiro das Irmãs Clarissas para combinar o curso de Liturgia a ser iniciado na segunda-feira, dia 30. De tarde, apresentamo-nos ao Sr. Bispo Dom Eugênio Salessu. Ele desejava um retiro para o clero, em princípio, do dia 5 a 10 de novembro, algumas conferências sobre Liturgia para os leigos e religiosas, que seriam nos dias 13 a 15 de novembro. Fazendo as contas, passaram-se 15 dias para passar de um campo de ação para outro. Portanto, haviam sobrado praticamente três semanas para Malange.

Sábado, dia 28, ficou livre. Celebrei nas Clarissas. Domingo, dia 29, celebrei novamente nas Clarissas e Frei Odorico comigo almoçamos com o Sr. Bispo. A semana de 30 de outubro a 04 de novembro teve algumas novidades, fora o curso para as Clarissas. Frei Odorico ocupadíssimo com a construção de um forno para fazer pão. Dia 31, Frei Genildo foi iniciado no paludismo e Frei Valdir partiu para Luanda, a fim de dali tomar o avião para o Quênia, onde participaria de uma reunião de Formadores da Vice Província franciscana da África. Dia 04 de novembro, sábado, Frei Genildo passou por uns momentos abafados em seu batismo paludístico. O Sr. Bispo comunicou-me que estava cancelado o retiro para o clero por falta de quórum. Eu daria, sim, uma série de palestras sobre Liturgia para as religiosas e as lideranças leigas, de segunda a sexta-feira, das 16 às 17h30.

Dia 5 de novembro, domingo, celebrei nas Clarissas. Às 15h00 encontrei-me com um Grupo da OFS em formação. Interessava-me sentir o andamento do Grupo. Constatamos ser um grupo coeso e de grande boa vontade; mas lhe falta uma assistência mais firme e bem consciente de sua função. De fato, o Grupo encontra-se no Período de Iniciação (antigo Postulantado), podendo em janeiro-fevereiro, por ocasião da visita do Ministro Provincial, ser admitido ao Tempo de Formação (antigo Noviciado). Terminado o Tempo de Formação com duração de dois anos (ao menos um, conforme a Regra) poderão ser admitidos à Profissão e então poderá ser erigida canonicamente a Fraternidade. Aliás, consta que “em 1604 chegaram a Luanda os Frades da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência. O Governador deu-lhes o terreno, onde está hoje o Hospital Central. Construíram aí o Convento São José e organizaram a Confraria conhecida pelo nome de Ordem Terceira de São Francisco da Penitência que ainda existe na igreja do Carmo” (D. Eduardo André Muaca, História sobre a Evangelização de Angola 1491-1991, Conferência Episcopal de Angola e S. Tomé, 1990, p. 35). Ela transformou-se numa “Irmandade”, totalmente isolada da Ordem Franciscana Secular renovada.

Existe também uma Fraternidade autêntica, embora envelhecida, junto ao Convento de Nossa Senhora de Fátima, dos Capuchinhos, em Luanda. Está praticamente abandonada a si mesma. Certamente mereceria uma atenção por parte dos Irmãos Capuchinhos. Já falei sobre isso com Frei Luís Manuel Novais Leitão, OFMCap., do Convento de Santo Antônio em Luanda, que está realizando um belo trabalho de implantação da OFS em Angola, junto às Fraternidades Capuchinhas. São cinco as Fraternidades em formação, com possibilidade de serem eretas muito em breve. As Fraternidades OFS deverão integrar a Fraternidade Nacional de Angola. Também os Conventuais Brasileiros que têm duas Casas em Angola pretendem cuidar que junto a eles surja a OFS.

Fora disso, o domingo é vazio para os frades. Aliás, os dias de semana também. Isso pastoralmente. Outra coisa será quando a situação se normalizar. O território da Missão Católica de Katepa hoje é imenso. Compreende o que podemos chamar de três municípios que formam três Centros: Katepa, na periferia de Malange, Cangandala, a 28 km de Katepa, e Mussolo, a cerca de 170 km de Katepa. Atualmente nem frades nem freiras estão visitando as cerca de 130 Comunidades com aproximadamente 250 aldeias. Estão se restringindo às três aldeias que formam a Comunidade de Katepa. Imaginemos a atividade pastoral necessária para o atendimento de 130 Comunidades a partir dos três Centros! Quando as estradas se abrirem, quando tudo estiver desminado, pensa-se contar com as Irmãs Franciscanas de São José em Cangandala, com as Irmãs de Jesus Crucificado em Mussolo e com as Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria em Katepa. Estas últimas continuaram sempre firmes aqui, vizinhas dos Frades, onde, inclusive, têm atualmente o seu Postulantado. Mesmo com um bom trabalho entrosado com as Irmãs e os Catequistas, é evidente que esta Fraternidade precisa de ao menos quatro frades, dois deles liberados para o trabalho da Missão.

O dia a dia dos frades hoje

O que os frades estão fazendo agora? Realmente não estão fazendo, estão sendo, estão vivendo a fraternidade e de maneira muito bonita. São os próprios frades que cuidam da casa. Rezam em comum. Preparam as refeições. Muitas vezes num mutirão de última hora. Acontece que um põe o sal e o outro repete. E todos aceitam numa boa. Inventam-se pratos como a polenta, o pirão d’água. O pão, em geral, é velho, pois é guardado na geleira (congelador) comunitária da Missão dos Espiritanos, junto à Sé. Frei Odorico é mestre em construir fornos. Já fez uns quatro ou cinco. Mas os faz grandes para poder fazer pão para um mês, a fim de conseguir mais tempo para o apostolado junto aos miúdos (crianças) e aos enfermos. Os confrades chegam a reclamar que o pão está velho. Mamão e bananas há bastante. Algum abacaxi. Não se pode dizer o mesmo dos produtos básicos e da carne. Um peixe seco é mais fácil de ser adquirido. A caça e o gado, bem como porcos e galinhas foi tudo consumido nos 34 anos de guerra. Não vi uma só cabeça de gado. O amendoim (ginguba) e a mandioca são produtos abundantes. Aliás, sendo os arredores de Malange muito minados, o povo está plantando em todos os cantos em torno e até dentro da cidade.

As surpresas são frequentes. Rompe-se o cabo de ligação do motor para puxar água do poço escavado por Frei José Zanchet para as caixas. O técnico não existe. Sorte que Frei Genildo entende de mecânica. Ele arranja outro fio de aço e com a ajuda minha (imaginem) instala outro cabo de arranque. Que alegria, quando feita a montagem, o motor arranca. De noite falta a energia que funciona das 18 às 21h30, a partir de um gerador que serve às irmãs e aos frades. De repente apaga a luz. Vai-se ver: faltou o gasóleo (óleo Diesel), porque no dia anterior permanecera ligado mais tempo. Além desse tempo, entram em ação a vela, a lâmpada ou o lampião. Depois das refeições todos cuidam da louça.

Durante o dia, os frades ocupam-se com trabalhos manuais: limpeza, construção de galinheiro, pequenas lavouras (lavras) de aipim e batata doce, plantio de árvores frutíferas, verduras e legumes. Ocorre também o atendimento a este ou àquele. As Irmãs Clarissas pedem algum serviço. Vai-se à cidade, que dista quase três km de Katepa para cuidar do correio que já está funcionando melhor, providenciar passagens, arranjar material de construção, cuidar de projetos, de encaminhamentos de passagens para Luanda, tentando conseguir boleia (carona), munidos de uma paciência de Jó. Passa-se nas praças de comércio paralelo, chamadas candongas. Aqui em Malange existem ao menos três, sempre repletas. Aí se troca de tudo. São a garantia de sobrevivência do povo. Oxalá se estabeleça a paz em Angola. O povo está sofrendo demais. Aos poucos, parece que as condições de reconciliação nacional entre o Governo e a UNITA estão se firmando. Há esperança de que em breve se abram as estradas, se restabeleçam as pontes, se desminem as estradas, as tropas da UNITA sejam acantonadas, para que aos poucos se forme um exército único regular. Tudo isso faz parte do Protocolo de Paz firmado em Lusaka. O problema é saber se as partes estão realmente interessadas na reconciliação e na paz.

Dia 6 de novembro. De manhã cedo, iniciou-se o dia com a celebração matinal com o povo. As pessoas foram chegando pelas 06h00, trazendo o material e os instrumentos para a lavra. Rezaram o terço e às 06h30 iniciamos a Missa, com as Laudes integradas. Frades, Irmãs e povo em geral. A salmodia costuma ser até polifônica. É muito bonito e devoto. Depois da Missa, encontrei-me com um senhor da Comunidade e, falando sobre o paludismo que Frei Genildo tinha pego, fiz-lhe a seguinte observação: “Pois é, Frei Genildo pegou o paludismo e está sofrendo bastante. Nem participou da celebração matinal. Nós pegamos fácil a doença, ao passo que vocês parecem estar imunizados!” O senhor pediu licença para segurar minha mão direita, esfregou-a levemente e disse: “Pois é, pobrezinhos de vocês, são tão branquinhos, tão fraquinhos!” A carapuça desceu fundo pescoço abaixo.

Dediquei a manhã à Fraternidade das Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria e, à tarde, iniciei o Curso de Liturgia para missionárias e leigos da cidade no Colégio das Irmãs de São José de Cluny, companheiras dos Padres Espiritanos na Evangelização de Angola. O salão esteve repleto. Assim foi de segunda a sexta.

Terça, quarta e sexta-feira de manhã continuei com o curso de Liturgia para as Clarissas.

Na terça-feira, dia 7, voltou Frei Valdir Nunes sem ter ido ao Quênia. Por prudência, devido à prorrogação da permanência em Angola, preferiu não arriscar a saída do país no momento. Quinta, dia 9, as duas Fraternidades, a dos frades e a das Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria, fizemos o retiro mensal numa Colônia de meninos órfãos, perto de Luanda, chamada “Casa do Gaiato”. Meditamos sobre nossa vida eucarística celebrada e vivida. Sábado, dia 11, passei-o com as Religiosas da cidade. Refletimos sobre a Liturgia das Horas como caminho de santidade, como espelho do mistério pascal de Cristo e da Igreja a ser contemplado e vivido várias vezes ao dia. Houve boa participação e grande interesse.

Rito de despedida

Dia 12 de novembro, domingo. Iniciei a última semana em Malange. O domingo foi marcado pela comemoração dos 20 anos de independência de Angola (dia 11) e a despedida solene de Frei Odorico Decker, transferido para Kibala. A Missa com o povo expressou esses dois aspectos: Missa de reconciliação e de paz. Transpareceu a dimensão missionária da Comunidade eclesial que com o envio de Frei Odorico se tornava participante dessa ação missionária. Ao final da Missa, realizaram-se os ritos de despedida, bem ao gosto do povo. Houve oferta de presentes com dança e Frei Odorico tocou para as numerosas crianças que o rodearam diante do altar com grande carinho e pesar pela partida do amigo. Frei Odorico realmente se fizera amigo das crianças e dos enfermos no bairro da Katepa. Ao meio-dia prolongou-se a festa de despedida com almoço fraterno no Convento das Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria. Às 15h00, houve mais um encontro, agora, ordinário, com a OFS em formação. Deixamos orientações para o seu bom encaminhamento e foi eleito um Conselho Provisório.

Dia 13, São Diogo de Alcalá, Frei Odorico conseguiu partir de avioneta para Luanda. Esta semana estava planejada da seguinte forma: segunda e terça de manhã terminaria o curso de Liturgia com as Irmãs Clarissas, ficando as tardes livres. Quarta-feira de manhã abriria o retiro mensal das Irmãs Clarissas. Minha intenção era ir a Luanda quinta-feira, dia 16, aliás, por sugestão do Sr. Bispo na minha chegada. Mas o mesmo Sr. Bispo segurou-me, pois quis que passasse um dia com o clero na quinta-feira, na Casa do “Gaiato”. Pela experiência do passado não muito distante, fiquei preocupado com a viagem a Luanda, pois o avião para o Brasil estava previsto para terça-feira, dia 21. O Sr. Bispo tranquilizou-me. Disse-me que também teria que viajar na segunda a Luanda. Assim fez-me compreender que em Angola hoje se vive o extraordinário como ordinário. Vamos rezar e confiar na sorte.

Dia 14, terça-feira, encaminhamos o pedido de boleia com a PAM para Luanda na sexta-feira, dia 17. O dia transcorreu como planejado, na paz e na fraternidade. Dia 15 de novembro, quarta. Na parte da manhã, abri o retiro mensal para as Irmãs Clarissas. Antes da abertura elas fizeram questão de realizar o rito de despedida, com danças e recordações. Transcrevo aqui a poesia que elas cantaram na entrega das lembranças.

AMAR É ENTREGAR-SE

Amar é entregar-se
Esquecendo-se de si,
Fazendo o que ao outro
Possa fazer feliz,
Fazendo o que ao outro
Possa fazer feliz
Refrão:
Que lindo é viver, para amar,
Que belo é ter, para dar,
Dar alegria, felicidade, (bis)
Dar-se a si mesmo,
Isso é amar.

Frei Alberto, muito obrigado
Pela sua dedicação.
Desde agora e para sempre, (bis)
Nosso espelho serão os salmos.

Três semanas de liturgia
Foram de grande proveito,
Pois ficamos feitas mistérios,
Descobrindo a nossa páscoa,
Com a expressão significativa
Nós faremos fraternidade.

Após a abertura do retiro, passei pelo Paço Episcopal para ver se estava confirmado o retiro do clero. A tarde dediquei-a a assuntos pessoais. Dia 16 de novembro, quinta, dia de retiro para o clero. Pelas 09h00 fomos à “Casa do Gaiato”. Houve boa participação do clero. Éramos 9 ao todo. O Clero diocesano é composto de 6 ou 7 padres, sendo um português. Meditamos sobre a Liturgia das Horas na vida do presbítero, na linha do artigo que escrevei para a REB: A Liturgia das Horas, caminho de santidade. O retiro foi encerrado com a Missa às 16h30, presidida pelo Sr. Bispo. Na volta, passamos pelo PAM, onde obtive a boa notícia de estar na lista do voo do dia seguinte, às 10:00h para Luanda.

Dia 17 de novembro, Santa Isabel da Hungria. Após a missa matinal passamos pelo Bispado, despedindo-nos do Sr. Bispo e fomos ao aeroporto. O voo da avioneta do PAM, programado para as 10:00h foi pontual. Chegamos a Luanda pelas 11:30h. Estando Frei Dílson para Kibala, alguém dos capuchinhos foi-nos apanhar no aeroporto, onde tínhamos aguardado mais de uma hora, eu, Ir. Francisca, das Irmãs Missionárias de Santa Teresinha, Congregação brasileira do Pará, e uma aspirante da Congregação das Franciscanas Missionárias de Maria. Assim que chegamos, soube que o avião de Luanda para o Brasil agora estaria indo às quartas-feiras. Fiquei preocupado com a Reunião do Conselho Missionário Provincial, marcada para quarta, dia 22, em São Paulo. Esperei Frei Dílson para informação mais segura; enviamos um fax ao nosso Provincialado, pedindo que os Conselheiros prolongassem a reunião até o dia 23 ao meio-dia. Trataríamos da Missa em Angola no dia 23 de manhã.

Tudo incerto: somos servos inúteis

Dia 18, sábado. A questão foi apenas deixar passar o tempo. Dia 19, domingo. O Vice-Provincial dos Capuchinhos, que também é pároco da Fátima, deu-me a Missa no Marçal, um Hospital perto do Convento, às 08h30. Saí pelas 08h00 rumo ao Hospital, junto à Av. Brasil. Indo na direção do hospital, passei por uma rua, onde se situa a Sede do Partido do Governo de Angola, o MPLA. Sem me aperceber passei pela rua com alguns sinais de trânsito proibido. O guarda me deu ordens de parar. Atendi. E a ordem de prisão veio imediata: Está preso! Mas, Sr. guarda…, tentei explicar o que estava acontecendo… O Sr. entrou na zona de morte. Mas me desculpe, Sr. guarda, não percebi. Vi alguém passar por aqui sem problemas e me dispus a passar também. Não, o Sr. está preso, entre aqui! Mas, Sr. guarda, o Sr. me desculpe. Eu vou voltar atrás… Passo pela outra rua. Sou padre e vou celebrar a Missa aqui perto, onde já estão esperando por mim. Não! O Sr. invadiu território proibido! Mas, Sr. guarda, posso falar com seu chefe? Por favor, me atenda, eu sou brasileiro!… Enfim, a gente não conhece todas as normas… Não! O Sr. entrou em espaço proibido, espaço de morte. O Sr. não aprendeu na escola as normas de trânsito? Pensei comigo: 25 anos de escola e não aprendi nada. Arrisquei ainda: A gente não poderia falar com o seu chefe? Nisto, por acaso, apareceu alguém no portão. Parece que era um superior ao guarda. Perguntou o que se passava. Novamente, com toda a humildade, pedi desculpas por estar passando naquele lugar proibido e expliquei a situação: que era padre do Convento dos Capuchinhos e que ia celebra a Missa aí perto. Felizmente, encontrei clemência. Permitiu-me logo que fosse adiante. Agradeci e continuei o caminho.

Neste episódio senti a gravidade da situação que se vive em Angola. Tudo incerto. Ameaças por toda parte. Situação ainda de guerra. Os grandes querendo a gasosa, sinônimo de propina. Uma situação de insegurança total. Estas arbitrariedades acontecem por toda parte. Quantas vezes Frei Dílson é barrado nas ruas pelos guardas à procura de propina. Em mim o guarda certamente viu um gringo com dólares. O pior é que não tinha um tostão no bolso.

Dias 20 e 21 foram dias de espera em Luanda: Frei Hermenegildo Pereira, Frei José Zanchet e eu. Se soubéssemos do adiamento do voo para o Brasil, bem poderíamos ter permanecido mais alguns dias em Malange. Mas tudo bem. Ao menos já estávamos em Luanda. Dia 21 voltamos a visitar o Mosteiro das Clarissas em construção e o possível terreno para o nosso Convento em Luanda.

Dia 22 de novembro. Nosso voo estava marcado para as 12h30. Pelas 09h30 partimos para o aeroporto a fim de fazer o check-in. Uma verdadeira tortura coletiva. Nunca vi tantos postos de controle. Uma burocracia infernal. O mais engraçado é com as malas. Você despacha as malas e, finalmente, depois de passar por quatro ou cinco controles, onde cada um deles tenta reter o que sobrou de dinheiro, seja em cuanzas seja em dólares e isso descaradamente, você é alertado, quando o é, de que suas malas estão no pátio do aeroporto para reconhecimento. Você, então, tem que verificar se as suas malas estão realmente aí na pilha da bagagem que deve ir para o avião, e cuidar que ela seja carregada na carreta. Daí você embarca no maximbombo – ônibus –que o leva até o avião sem que você possa saber se realmente a bagagem também subiu. Depois de toda aquela angústia, é claro que os passageiros estão tensos. Mas nada se pode fazer. Estávamos finalmente no avião para o retorno ao Brasil.

Depois de agradável travessia do Atlântico, chegamos praticamente no horário, ao Rio de Janeiro, ainda com sol. Lá compareceu o Guardião do Convento de Santo Antônio, Frei José Pereira. Frei Hermenegildo ficou no Rio de Janeiro. Frei José Zanchet e eu tomamos o primeiro avião para São Paulo, aonde chegamos pelas 20h30. Frei Salésio Hillesheim, que nos esperava no aeroporto, levou-nos diretamente a um restaurante, onde se encontravam os confrades do Provincialado, já iniciando um agradável juntar. Cotamos sobre a Missão em Angola.
Não sei se por causa do longo jejum ou se ainda por influência da água tomada em Luanda nos últimos dias, esse jantar me trouxe sério problema intestinal. Custou mais de uma semana para ser superado. Desidratação e, creio, infecção intestinal. A reunião do Conselho Missionário Provincial realizou-se normalmente sem minha presença no dia 22 de novembro. Melhor assim. Contudo não perdi a viagem a São Paulo: pude relatar a experiência da viagem a Angola ao Ministro Provincial. No dia 23, realizou-se no Provincialado o Encontro da Pastoral dos Santuários na Província, ao qual fora convidado para dar uma assessoria.

Finalizando, poderia dizer que a ida a Angola foi de grande proveito. Em primeiro lugar, pude experimentar in loco a realidade da vida cotidiana dos nossos confrades missionários. Segundo, aprendi muita coisa em matéria de vida fraterna, de pobreza e de testemunho, colocando o ser frade menor acima de planos e eficiência de programas elaborados. Isso ajudará a melhor exercer a função de Secretário da Evangelização Missionária da Província. Terceiro, percebi como a missão em Angola constitui um grande desafio para quem vai e para toda a Província. Pairam sobre a missão enormes ameaças à vida. Aquelas ameaças que estão sintetizadas na Ladainha de Todos os Santos: Da peste, fome e guerra livrai-nos, Senhor. Sim, as ameaças à vida que partem da guerra, as ameaças que partem da falta de alimento, da fome, e as ameaças que partem das doenças, sobretudo, das diversas formas de malária, chamadas paludismo. Colocaria um quarto desafio: o desafio da inculturação, que exige o despojamento de muitas coisas, atitudes, métodos. Só assim formaremos aquela ponte de Cristo para aquele povo a ser evangelizado, na medida em que nós nos evangelizarmos.

Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 1995