O assistente espiritual da Ordem Franciscana Secular: formador da fraternidade e dos irmãos
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM (*)
A assistência espiritual tem por objetivo favorecer a comunhão com a Igreja e com a Família Franciscana através do testemunho e partilha da espiritualidade franciscana, cooperar na formação inicial e permanente dos franciscanos seculares e manifestar o afeto dos frades à OFS (Estatuto para a Assistência 2, 3).
1. Os franciscanos seculares gozam do direito de terem, em suas Fraternidades, a presença do Assistente Espiritual que, juntamente com a equipe de formação, oferece sua colaboração indispensável e de qualidade na tarefa formativa dos irmãos. Não é ele o último responsável pela formação. Esta repousa sobre o conselho local e a equipe por este organizada. Falar em formação é tocar em assunto complexo e intrincado. Formar alguém para ser cristão e para a vida franciscana é tarefa que não dá descanso. Estamos sempre em processo de formação. Nunca podemos descansar. A experiência nos diz que uma das maiores dificuldades da OFS entre nós é a de realizar formação sólida dos irmãos e das irmãs, de sorte que sejam leigos maduros, buscadores de santidade, capazes de construir sua identidade franciscana ao longo do tempo e serem “restauradores” da Igreja. As poucas observações que aqui fazemos podem ser aplicadas à formação em geral, bem como à que, mais particularmente, dá o Assistente. Neste texto são apresentadas as perspectivas da formação inicial juntamente com as da formação permanente.
2. A Regra da OFS nos diz na Fraternidade “os irmãos e as irmãs, impulsionados pelo Espírito para atingir a perfeição da caridade no próprio estado secular, se empenham pela profissão a viver o Evangelho à maneira de Francisco e mediante a Regra” (cf. Regra 2). O número 1 da Regra fala dos franciscanos como aqueles “que se sentem chamados ao seguimento do Cristo, à maneira de São Francisco de Assis”. Esse é objetivo da OFS. Ressaltemos, aqui, alguns elementos: seguimento de Cristo, fraternidade com irmãos e irmãs, busca da santidade, vivência do Evangelho no estado secular mediante a Regra, ir pelo mundo em missão. Nessas poucas linhas aparecem alguns dos conteúdos da formação franciscana dos seculares.
3. Não podemos deixar de frisar que, como dizem nossos documentos, a primeira formadora é a Fraternidade, ou seja, a vida da fraternidade. Um conselho responsável, cujos membros buscam a santidade, a simples presença do Assistente, as reuniões bem preparadas, sem “devocionalismos” nem sempre sadios, a certeza de que uns podem contar com os outros, o fato de se ver irmãos carregando os fardos uns dos outros: que melhor formação podemos pedir? Reuniões com equilíbrio entre oração, estudo e convivência, presença regular de todos, alegria dos encontros. Pouco adianta organizar cursos de formação quando a concretude da vida em Fraternidade deixa a desejar. O Assistente, quando necessário, exortará para que as reuniões gerais sejam de muito boa qualidade.
4. No caminho franciscano se fala muito desse “seguir a Cristo”. Penso que o Assistente, de modo particular, pode ajudar os irmãos e as irmãs a colocarem seus pés nos passos do Senhor. Quando um franciscano secular não entendeu existencialmente este seguimento do Senhor que leva à conversão, faltou alguma coisa de capital no seu itinerário espiritual. O conhecimento experimental do Cristo ressuscitado é fundamental. José Antonio Pagola, na apresentação de um livro que escreveu sobre Jesus, assim se exprimiu: “Em quem pensei em escrever este livro? Antes de mais nada, tive em mente cristãos e cristãs que conheço de perto. Sei como se inflamará sua fé e como desfrutarão do fato de serem crentes se conhecerem melhor a Jesus. Muitos deles, mulheres e homens bons, vivem da “epiderme da fé”, alimentando-se de um cristianismo convencional. Procuram segurança religiosa nas crenças e práticas que encontram a seu alcance, mas não vivem uma relação feliz e prazerosa com Jesus Cristo. Ouviram falar dele desde quando eram crianças, mas o que sabem dele não os seduz nem enamora. Sua vida se transformaria se se encontrassem com Jesus. Conheço bem a tentação de viver corretamente dentro da Igreja, sem preocupar-nos com a única coisa que Jesus procurou: o reino de Deus e sua justiça. É preciso voltar às raízes, à primeira experiência que desencadeou tudo (…) Nada é mais importante para a Igreja do que conhecer, amar e seguir mais fielmente a Jesus Cristo” (Jesus. Aproximação histórica, Vozes, p. 26-27). O Assistente, com sua formação teológica e seu zelo espiritual, pode ajudar a acender esse fogo, sem o qual a Ordem marca passos. Os franciscanos seculares fazem uma promessa da sequela Chrsti.
5. Não se pode esquecer: a primeira opção de um cristão é seguir Jesus. Essa decisão muda tudo. “É como começar a viver de maneira diferente a fé e a realidade de cada dia. Encontrar, por fim, o eixo, a verdade, a razão de viver, o caminho. Poder viver dando um conteúdo real à adesão a Jesus; crer no que ele creu; viver o que ele viveu; dar importância àquilo que ele dava importância; interessar-se por aquilo que ele se interessou; tratar as pessoas como ele as tratou; olhar a vida como ele a olhava; orar como ele orou; transmitir esperança como ele transmitia” (Pagola, p 569-570). Ora, esse trabalho de conversão é obra do Espírito Santo, mas está também colocado nas mãos de um Assistente atilado. Podemos avaliar como é prejudicial a uma Fraternidade não ter assistência ou uma assistência exercida ocasional e precariamente. Não seria essa a razão da existência de Fraternidades enfraquecidas?
6. Não podemos esquecer que vivemos em tempo de turbulência. Quando falamos em formação não temos apenas uma bagagem a transmitir como a lição de um livro, mas o encontro de pessoas que vivem no século XXI, com a grandeza do Evangelho que é perene, mas que precisa atingir histórias concretas Tantas características delicadas: as pessoas precisam escolher a cada instante, não recebem herança feita, estão sempre escolhendo, precisam saber escolher; tudo é móvel, tudo é substituível, tudo é precário; somos centros de nós mesmos (escolhemos filmes, lojas, marido, mulher); somos anônimos no grande mundo; convivemos com pessoas de outras religiões, sem religião, até mesmo dentro de nossa casa; tudo tem que ser rápido, muito rápido; não queremos, não sabemos dar tempo ao tempo; vivemos no mundo do provisório. Por melhores que sejam os textos de estudo, eles devem passar pelo filtro de um formador inteligente, capaz de entender os sinais dos tempos e de ajudar os formandos a se deixarem evangelizar no terreno movediço da cultura de hoje. Não se trata de aceitar as coisas como elas se apresentam. É precisamente nesta instabilidade que se constrói a identidade do franciscano secular, sobretudo com as cores de um laicato inserido no mundo e desejoso também de contemplar na oração. O Assistente espiritual é alguém que pode e deve ajudar formadores e formandos a se situarem nesse mundo do individualismo, da provisoriedade, da descartabilidade. Repito, as páginas de nossos livros de formação e apostilas de cursos não conseguem fazer isso.
7. Pano de fundo de toda a formação, seja aquela realizada pela equipe formadora ou pela Assistência, é o de um laicato maduro. A Ordem Franciscana Secular dará uma contribuição ímpar à Igreja na medida em que tiver membros conscientes de sua laicidade, não desejosos de cultivar apenas “devocionalismos” e alimentar emoções, gente que sabe viver no mundo, com gente do mundo, na família, no casamento, na educação dos filhos, nesses tempos de turbulência. Um laicato maduro não tem como primeira meta ser ministro da Palavra ou da Eucaristia (o que não significa que não possam assumir estas tarefas), mas ser transformador da sociedade por posturas claras no campo da vida de todos os dias. É aquele que aprende a dinâmica do ver-julgar-agir. Enquanto nossos percursos formativos não caminharem nesta direção, teremos fraternidade que, talvez, em sua mentalidade, sejam anteriores ao Concilio do Vaticano II. O Assistente espiritual, nas reuniões do Conselho, nos encontros da Fraternidade, em dias de estudo, terá condições de levar esse grupo de cristãos a um processo de maturação da laicidade franciscana. Este é um ponto de honra de toda boa formação.
8. Leigos no mundo, na Igreja, leigos franciscanos, quer dizer, gente que aprende a alegria de viver das coisas e nas coisas simples. Discípulos do Poverello adotam um estilo de vida simples que se concretiza em todos os campos de sua ação e de sua vida: casa sem luxo, moderação no uso do dinheiro, distância de uma sociedade cruelmente consumista. Não basta apenas vestir uma camisa com estampas de Francisco e Clara, mas ter um fascínio pela simplicidade do Evangelho e pela pobreza do Filho de Deus. Leigos maduros que são capazes de conviver com o diferente, tanto no dia a dia da vida quanto no campo das religiões. Leigos maduros que criam zonas e áreas de proximidade com as pessoas, de fraternidade, num mundo marcado pelo individualismo. Não cabe ao Assistente ajudar os Conselhos e as Fraternidades a passarem nas provas de um laicato maduro?
9. Mundo da superficialidade, das coisas feitas com rapidez, sem profundidade. Reuniões superficiais, liturgias banais, tudo sem densidade. Gente que repete credos e orações sem atinar para o que estão dizendo. Pessoas que pronunciam palavras religiosas mas que não conhecem seu significado mais profundo. Cabe ao Assistente espiritual desenvolver todo um programa de compreensão do que vem a ser a verdadeira oração. Será preciso levar os irmãos ao deserto, a ouvirem a voz do Senhor, a descobrirem o lugar onde talvez suas existências possam ser transfiguradas. O Assistente velará a que os retiros tenham profundidade, que as celebrações eucarísticas não sejam adaptadas aos gostos individuais, mas reflitam o tempo litúrgico, as leis mais simples da boa participação, consciente e densa.
10. Parece importante que nossos irmãos e irmãos adquiram ou readquiram o apreço pela celebração cotidiana da Eucaristia ou ao menos vivenciem em profundidade a missa do domingo. Cabe ao Assistente despertar nos irmãos o gosto pela Eucaristia, sobretudo que os leigos se deem conta da nobreza do sacerdócio comum dos fiéis e que façam uma oferenda de si mesmos no decorrer do movimento da Eucaristia. Cantar quando se deve cantar e o que se de deve cantar. Calar e escutar. Escutar com as entranhas. Na Eucaristia fazemos de nós uma oferenda com Jesus que vem estar conosco no regime da fé, nas aparências do pão e do vinho.
Conclusão (ou Apêndice)
O Assistente, presente, amigo, incentivador, acompanhante, formador deverá levar a Fraternidade ao âmago de sua escolha, a compreender forma de vida escolhida. Costuma-se dizer que a pobreza é ponto central da espiritualidade franciscana. Neste contexto pensamos na Admoestação XIV de São Francisco. A vivência desta exortação marca o estagio de maturidade do franciscano. Vale a pena transcrevê-la: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus (Mt 5,3). Muitos há que, insistindo em orações e serviços, fazem muitas abstinências e macerações em seus corpos, mas, por causa de uma única palavra que lhes parece ser uma injúria ao seu próprio eu ou por causa de alguma coisa que lhe lhes tire, sempre se escandalizam (cf; Mt 13.21) e se perturbam. Estes não são pobres de espírito, porque quem é verdadeiramente pobre de espírito se odeia a si mesmo e ama quem lhe bate na face (cf. Mt 5, 39).”
As reflexões de Thaddée Matura sirvam de conclusão para toda nossa reflexão: “Costuma-se afirmar que a pobreza é o ponto central e a característica própria da espiritualidade franciscana (…). Mesmo sendo verdade que Francisco fez para si mesmo e para seus irmãos uma escolha radical de pobreza social: recusa de toda propriedade, do dinheiro etc. deturparíamos gravemente sua visão levando em consideração apenas este aspecto, que ele não propõe aos que vivem no mundo. Sua concepção da verdadeira pobreza que atinge as raízes do ser aponta para insuspeitadas profundezas. Antes de se manifestar na pobreza material da qual é, de alguma forma, um sacramento visível, ela consiste em três comportamentos: 1) reconhecer que todos os bens proveem de Deus; 1) reconhecer que somente o mal e o pecado nos pertencem; 3) carregar cada dia cruz que consiste na submissão a todos, e na aceitação da rejeição, da doença e da morte.
Aquilo que alguém é, que pode realizar, de modo especial no campo das realidades espirituais, é digno de ser considerado grande e belo. Normal e legítimo que venhamos a nos alegrar e nos envaidecer. Pode-se, no entanto, se insinuar uma sutil tentação: eu sou isto, é meu, eu me basto, eu sou como Deus. Para não cair nessa tentação será preciso não nos apropriar de bens que não são nossos. Sim, “não nos gloriemos, não nos exaltemos interiormente com boas palavras e boas ações, nem de algum bem que Deus faz ou diz ou opera em nós e por nós; restituamos todos esses bens a Deus… reconheçamos que eles lhe pertencem, demos-lhe graças por tudo “ (RNB 17, 6-17). O primeiro passo é reconhecer o que há de bom em nós. Uma vez feito isso será preciso devolvê-lo, restituí-lo ao único proprietário, Deus, o único bom. A verdadeira e mais profunda pobreza é de tudo possuir pelo dom de Deus, sem ter nada para si.
“E saibamos que nada nos pertence, a não ser nossos vícios e pecados” (17, 7). A partir do momento em que reconhecemos que incontáveis dons e bens que somos ou que temos, como propriedade de Deus, e que os tenhamos restituído a Deus num movimento de ação de graças, que nos resta? (…) Nada, senão, de acordo com esta dura e forte palavra de São Francisco, “nossos vícios e pecados”, ou ainda segundo a menção de São Paulo “nossas fraquezas” (…) Nossa pobreza consiste na aceitação humilde e misericordiosa desta parte obscura de nós mesmos. Reconhecer esta pobreza, sofrer com ela como se fosse uma doença,, procurar curá-la, saber que não o conseguiremos inteiramente, gritar a Deus em nosso sofrimento e esperar que o médico celeste nos liberte dela, eis a outra face da verdadeira pobreza.
A Admoestação V de São Francisco, tão semelhante em seu conteúdo ao belo relato da perfeita alegria, depois de ter descartado todo motivo de orgulho que repousasse por sobre êxitos humanos e dons espirituais os mais elevados, assim se conclui: “”Nisto podemos nos gloriar, de nossas fraquezas e em carregar cada dia a santa cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (Adm V). Sabemos o que se deve entender por fraquezas. Em que consiste nossa participação cotidiana na cruz de Cristo? “Devemos alegrar-nos quando formos submetidos a diversas provações e quando suportamos quaisquer angústias da alma e do corpo ou tribulações neste mundo por causa da vida eterna” (RNB 17, 8). O horizonte que Francisco evoca é marcado pelo sofrimento do qual ninguém pode escapar e que o fiel precisa assumir no seguimento de seu Senhor crucificado. Esse desconforto ocorre cada dia em muitas circunstâncias. Se quisermos ser “menores e submissos a toda criatura”, haveremos de encontrar incompreensão, oposição, até mesmo perseguição. Pode ser mesmo que venhamos a ser rejeitados, como Francisco, por seus próximos, como aparece descrito no texto da perfeita alegria. E a vida é ameaçada pela doença e pela morte, duas companheiras inevitáveis que cedo ou tarde chegam para nos visitar” (Thaddée Matura, François d’Assis. Maître de Vie Spirituelle, Ed. Franciscaines, Paris 2000, p. 61-81). Ora, o Assistente espiritual deverá ajudar os franciscanos seculares a viver no mundo esse altíssimo espírito de pobreza.
(*) Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
Assistente Nacional da OFS pela OFM e Assistente Regional do Sudeste III