Lampejos da forma de vida de Santa Clara de Assis
Por Frei João Mannes, OFM
Ao longo do triênio 2009-2012 a Família Franciscana do Brasil e do mundo prepara-se para a celebração dos 800 anos de conversão (1212) de Santa Clara (1194-1253), que se realizará em 2012. Na história cristã, Clara é, certamente, a mulher que mais fielmente se conformou ao Filho de Deus encarnado. Por isso, no presente artigo tem-se por objetivo chamar a atenção para alguns aspectos essenciais de sua Forma de Vida, inspirada pelo Senhor e Servo Jesus Cristo através do exemplo e da doutrina de São Francisco. Dar-se-á especial ênfase ao “privilégio da pobreza”, pois, outrora como agora, onde falta amor à pobreza não há autêntica experiência religiosa.
1 – A Forma de Vida começa “em nome do Senhor”
A primeira e originária Forma de Vida professada por Clara e suas Irmãs foi escrita por Francisco de Assis, e devia ser muito semelhante à primeira Regra (Proto-Regra) que ele escreveu para si e para os Frades (cf. RB 1,1; RSC 1,3). Pois, o mistério que dá origem à decisão de Francisco de seguir Jesus Cristo pobre e crucificado e viver aquela maneira ordenada por Cristo no Evangelho do Envio dos Apóstolos é o mesmo que encanta, fascina e converte Clara de Assis ao Evangelho de Jesus Cristo. Mais que em Francisco, Clara tem no mistério da expropriação divina o coração de toda a sua existência religiosa.
No entanto, é importante ter presente a luta intrépida de Clara, até sua morte, para obter a aprovação oficial da Igreja para a Regra que ela mesma escrevera. Essa Regra ou Forma de Vida genuinamente clariana só foi aprovada pelo Papa Inocêncio IV aos 09 de agosto de 1253 e recebida com a Bula papal por Clara no dia 10, portanto, um dia antes de sua morte, 11 de agosto.
Ao abrir a Regra de Santa Clara nos deparamos primeiramente com a Bula do papa Inocêncio IV que confirmou e assegurou a eclesialidade e perpetuidade da Forma de Vida da Ordem das Irmãs pobres. É na e através da Ordem das Irmãs Pobres, canonicamente aprovada pela Igreja, que flui até nós, para nós e para o mundo o espírito originário da Forma de Vida clariana. Sem a Ordem, certamente, não teríamos essa preciosa espiritualidade evangélica que, no decorrer dos séculos, vem encantando tantos homens e mulheres desejosos de seguir Jesus Cristo na vivência radical do Evangelho (cf. DORVALINO, 2009, p. 48-55). Na saudação inicial à senhora Clara, bem como às outras Irmãs, tanto presentes como futuras, o Papa deseja “saúde e bênção apostólica”.
Ao desejar a bênção apostólica às Irmãs, certamente o Papa expressou o seu ardente desejo de que elas fossem sempre imbuídas da força, do vigor e do ânimo que transformou aqueles homens, simples e rudes pescadores, em dedicados apóstolos e exemplares testemunhas de Jesus Cristo e de seu Evangelho. E é bem provável que ao desejar-lhes saúde, a autoridade apostólica expressou o desejo de que as Irmãs fossem sempre de alma pura, salva, livre, desprendida e desapegada de tudo o que pudesse ser impedimento à união total com o Amado Jesus Cristo. Assim, despojada de tudo, a Forma de Vida clariana seria sustentada unicamente pela força, pelo Espírito que nutriu e ratificou a vida dos apóstolos (cf. DORVALINO, 2009, p. 40-41).
Clara de Assis, em seu Testamento, destaca que foi o altíssimo Pai celeste que iluminou o seu coração para fazer penitência:
Depois que o altíssimo Pai celestial, por sua misericórdia e graça, se dignou iluminar o meu coração para fazer penitência, segundo o exemplo e doutrina de nosso bem-aventurado pai Francisco, pouco depois de sua conversão, com algumas irmãs que Deus me dera logo após a minha conversão, eu lhe prometi obediência voluntariamente (TestC 24s; cf. RSC 6,1).
Sem dúvida, o exemplo e doutrina de Francisco teve grande influência na decisão vocacional de Clara. No entanto, ela mesma assegura que o processo de sua conversão teve início porque Deus, o Pai de misericórdia, se dignou iluminar o seu coração, e a elegeu para ser a discípula e esposa amada do seu Filho Jesus. Ademais, assegura a serva de Cristo, que a vida de penitência empreendida por ela é uma voluntária resposta à convocação divina de conformar-se a Jesus Cristo (cf. RSC 6,1). Enfim, a existência religiosa de Clara teve início em Deus, conforme também atesta o título do primeiro capítulo da Forma de Vida da Ordem das Irmãs Pobres: “Em nome do Senhor começa a forma de vida das Irmãs Pobres”.
A expressão “nome” (em nome do Senhor) indica aquilo que o Senhor é essencialmente, isto é, o seu modo de ser de servo. Paradoxalmente o Senhor é aquele que mais serve; o Senhor é aquele que se humilha até o extremo. De modo que, ao iniciar a sua Forma de Vida invocando o nome do Senhor, Clara dispõe-se a viver no vigor, na energia, na disposição do Senhor-servo. A Forma de Vida clariana nasce, cresce, amadurece e se consuma no espírito do Senhor e Servo Jesus Cristo. Portanto, na expressão “em nome do Senhor”, anuncia-se que o sentido fundamental da vida de Clara consiste em deixar-se impregnar e conduzir pelo “espírito do Senhor e seu santo modo de operar” (RB 10,9).
Por fim vale ressaltar que Clara estava convicta de que a sua Forma de Vida estava sendo gerada pelo Senhor no seio da Igreja (cf. TestC 46). Tinha a consciência de que não estava nesta Vida por iniciativa particular, sua, mas porque Deus a havia escolhido por sua pura benevolência e infinita misericórdia.
2 – Relacionamento esponsal com Jesus Cristo
A Dama Pobre de Assis, por inspiração divina, encontrou o sentido fundamental de sua existência na pessoa de Jesus Cristo, o Filho de Deus que incondicionalmente assumiu a condição humana na forma de Servo, até a morte de Cruz. O mistério da encarnação (kénosis) do Filho de Deus, tal qual aconteceu, em pobreza e humildade, está na raiz da espiritualidade de Santa Clara.
A opção fundamental de vida de Santa Clara é pelo seguimento de Jesus Cristo pobre. Ela “já não queria mais nada a não ser Cristo” (2LV 12). E ao colocar-se diante de Jesus não tinha diante dos olhos um programa de virtudes a serem praticadas, mas estava diante de uma pessoa, que trazia uma proposta capaz de apaixonar e atrair discípulos e discípulas para a grande aventura de viver o Evangelho. O discípulo/a é amante de Alguém que atrai e fascina, porque encarna e concretiza os anseios humanos mais profundos (cf. 2LV 7).
Por conseguinte, a essência da vida de Clara e de suas Irmãs é, antes de qualquer outra coisa, amar uma pessoa, Jesus Cristo, como resposta ao seu amor. “Ame com todo coração a Deus (cf. Dt 111; Lc 10,27) e a seu Filho Jesus, crucificado por nós pecadores, sem permitir que ele saia de sua recordação” (Er 11). Entretanto, nós, raramente, nos damos conta de que não somos nós que amamos, quando amamos. É o amor que nos ama, nos leva e nos faz amar o que amamos. Esta é a mística de Santa Clara que, no íntimo do seu coração, deixa-se simplesmente enlevar pelo amor do Amado, e, por isso, todo o seu afeto, amor e caridade para com as Irmãs (cf. LSC 38), aos pobres e doentes são manifestações concretas de sua relação amorosa com Jesus Cristo. É vivendo no amor a Jesus Cristo que se chega a ser morada de Deus (cf. Jo 14,23) e se adquire aquele olhar de fé que, graças a Ele, nos permite contemplar o rosto do Amado no rosto dos irmãos e irmãs.
À medida que Clara, “serva indigna de Cristo e plantinha (em latim plantula = rebento, broto) do bem-aventurado pai Francisco” (RSC 1,3) mergulha na mais íntima solidão de sua alma, reencontra-se a si mesma e a todas as criaturas, que antes abandonara por amor a Deus. Sair de si, desprender-se do eu é achegar-se ao portal da origem de todos os seres. Nesse total desprendimento de si a alma humana entrevê o aceno do Divino que se revela e se esconde no interior de cada criatura. De modo que a clausura material de Clara e de suas Irmãs (cf. RSC 11) não é fuga nem rejeição do mundo, mas é, antes, expressão de um silêncio e recolhimento interior (cf. LSC 36), que possibilita a contemplação de si mesma e de todos os seres do universo, à luz da Palavra criadora que jorra do silêncio eterno de Deus. Na vigência do radical desprendimento e da total disponibilidade revela-se toda a profundidade ontológica das criaturas. Somente Deus é ser, toda a criatura é um sendo que tem de receber o ser de Deus.
Portanto, Clara, com todas as fibras do coração, procurou evitar que “toda soberba, vanglória, inveja, avareza, cuidado e solicitude deste mundo” (RSC 10,6) desviassem o seu coração do único necessário, Jesus Cristo. Ser puro, casto e virginal é ser livre dos apegos que traduzem os falsos absolutos da vida: a autopromoção, o acúmulo de honra, fama, riqueza e poder. Ter o coração puro significa não se deixar sufocar pelos cuidados e solicitudes deste mundo, mas voltar-se totalmente para Deus, de tal maneira que Ele possa habitar no coração de forma permanente (cf. 2LV 29). Foi assim, conservando o seu corpo casto e virginal, que Clara reviveu espiritualmente o mistério da mãe do Senhor, que humildemente dispôs-se à ação transformadora do Espírito Santo e tornou-se efetivamente a mãe do Filho do altíssimo Pai (cf. 3In 24-25).
Entretanto, ser mãe do Filho de Deus e tê-lo como único esposo não é um privilégio exclusivo das Damas pobres. Conforme atesta Francisco na Carta aos Fiéis, todos aqueles e aquelas que realizam as obras do Pai celestial “são esposos, irmãos e mães (cf. Mt 12,50) de Nosso Senhor Jesus Cristo” (2Fi 50). Essa formulação de Francisco, repetida por Clara, tem base no texto bíblico: “Aquele que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, irmã e mãe” (Mt 12,50; cf. Mc 3,35).
3 – A graça do “privilégio da pobreza”
Clara sente-se profundamente agraciada por Deus e por isso continuamente dá graças e louvores a Deus por todos os benefícios recebidos, conforme admoesta o apóstolo Paulo: “Em todas as circunstâncias dai graças porque esta é a vontade de Deus em Jesus Cristo” (1Ts 5,18).
Entre os vários benefícios outorgados por Deus, está o inestimável dom da vida de todas as criaturas. A vida de todos os seres emerge continuamente do mistério abissal da gratuidade divina que funda a existência finita sem porquê nem para quê, unicamente porque quer manifestar-se ad extra por amor às suas criaturas. Cada criatura é um ente (ens) que tem de receber o ser de Deus. É alhures, portanto, que lhe vem a vida, a inteligência, a vontade ou qualquer outra potencialidade.
Basicamente, foi por graça do Pai celeste que se iniciou nossa história terrena. Ser filho ou criatura significa ter a honra de ser portador da força e do vigor de alguém que tomou a iniciativa de criar-nos, fazer-nos surgir sem nenhum merecimento nosso. De fato, Deus ama com amor eterno cada criatura, não por causa dos méritos da beleza e bondade delas, mas ama simplesmente porque é esse o seu modo próprio e íntimo de ser. Deus é Amor gratuito; de graça é sua benevolência para com todos, até para com os ingratos e maus (Lc 6,35). Compreende-se, então, porque a vida de Clara tornara-se um hino de louvor e de ação de graças Àquele que a criou, guiou e protegeu: “E bendito sejais Vós, Senhor, que me criastes” (LSC 46,5).
Contudo, não somente o fato de existirmos é dom de Deus. Também nossas boas obras procedem do Sumo Bem, que se comunica a si mesmo no ser e operar de cada criatura. Razão pela qual ninguém poderia se apropriar e se vangloriar de suas boas obras, nem invejar as do seu próximo.
Agradeço ao Doador da graça, do qual cremos que procedem toda dádiva boa e todo dom perfeito (Tg 1,17), pois adornou-a com tantos títulos de virtude e a fez brilhar em sinais de tanta perfeição, para que, feita imitadora atenta do Pai perfeito (cf. Mt 5,48), mereça ser tão perfeita que seus olhos não vejam em você nada de imperfeito (2In 3-4).
No entanto, motivo de maior louvor e gratidão a Deus é que o ser humano seja capaz de corresponder à bondade de Deus que graciosamente comunica todo o seu ser a cada criatura. Em outras palavras, o ser humano é de uma dignidade especialíssima por ter sido criado e chamado por Deus a ser à imagem e semelhança de Deus. Entre todas as graças recebidas da generosidade do Pai está, pois, o inestimável dom da vocação:
Entre outros benefícios que temos recebido e ainda recebemos diariamente da generosidade do Pai de toda misericórdia e pelos quais temos que agradecer ao glorioso Pai de Cristo, está a nossa vocação que, quanto maior e mais perfeita, mais a Ele é devida (TestC 2-3).
A alma humana, porque criada à imagem de Deus, é essencialmente receptividade e difusão gratuita de si mesmo. Recebemos nossa vida como dom e com a capacidade de doá-la gratuitamente aos outros à semelhança de Deus que renunciou à sua condição divina e assumiu a condição de Servo, em Jesus Cristo. E ao assumir a condição de Servo, até a morte de Cruz, agraciou-nos com a vocação de sermos semelhantes a Ele. Eis o sentido absoluto do nosso ser e viver: “Ele mesmo, o Pai celeste, que em seu Filho muito amado, Jesus Cristo, vem se dando a cada um de nós num convite e chamado para que a Ele nós também nos doemos do mesmo modo, num encontro de pura gratuidade” (DORVALINO, 2009, p. 216-217).
Sem dúvida, Clara intuiu de forma extraordinária a vocação divina do humano, ou seja, de nada reter para si mesmo para que totalmente nos receba aquele que totalmente se nos oferece (cf. Ord 29). Apropriar-se de qualquer coisa é, na perspectiva clariana, macular a imagem de Deus impressa na alma humana, bem como é ser ladrão, é praticar um roubo a Deus. Apoderar-se de alguma coisa é um ultraje, um abuso à bondade de Deus que distribuiu tudo com copiosa benignidade aos dignos e aos indignos.
Clara lutou até a morte, com todas as fibras do seu coração, pelo “privilégio” de viver em total pobreza. O “privilégio da Pobreza”, como foi chamada a bula de Inocêncio III, foi concedido às Damas Pobres em 1216. O Papa escreveu:
Como é manifesto, desejando ardentemente dedicar-vos unicamente ao Senhor, abdicastes ao desejo das coisas temporais; por isso, tendo vendido e distribuído tudo aos pobres, proponde-vos a não ter absolutamente nenhuma propriedade, aderindo totalmente aos vestígios daquele que por nós se fez pobre, caminho, verdade e vida… Portanto, como haveis suplicado, corroboramos o vosso propósito da mais alta pobreza com o favor apostólico, concedendo-vos com a autoridade da presente que não possais ser por ninguém obrigados a receber propriedades” (Privilégio da Pobreza, In: FC, p. 142).
Clara amou a pobreza e fez dela o seu modo de vida porque o Filho de Deus, vindo a este mundo, escolheu ser pobre desde Belém até a Cruz. Na concepção de vida clariana, a alegria maior da pobreza consistia precisamente na possibilidade de restituir tudo ao Senhor, a exemplo de Jesus que, totalmente despojado na Cruz, restituiu sua vida (espírito) ao Pai: “E, inclinando a cabeça, entregou o espírito” (Jo 19,28-30).
Em síntese, Clara de Assis, ao não abrir mão do privilégio da pobreza, não apenas quis o privilégio de uma vida sem privilégios, mas o privilégio que Deus concedeu a cada ser humano de poder ser semelhante ao Filho encarnado do Pai eterno. O Filho encarnado foi pobre porque seu saber era a sabedoria do Pai, seu querer era a vontade do Pai, seu poder o poder do Pai e seu viver e seu amor eram o viver e o amor do Pai. Na radical pobreza e humildade, Clara participa do destino da vida, do sofrimento e da morte de Jesus Cristo:
Se você sofrer com ele, com ele vai reinar; se chorar com ele, com ele vai se alegrar; se morrer com ele (cf. 2Tm 2,11.12; Rm 8,17) na cruz da tribulação, vai ter com ele mansão celeste nos esplendores dos santos (Sl 109, 3). E seu nome, glorioso entre os homens, será inscrito no livro da vida (2In 21-22).
4 – Fidelidade criativa ao “ponto de partida”
Na Segunda Carta de Clara a Santa Inês de Praga, a serva das pobres damas louva imensamente a decisão de Inês que renunciara a todas as benesses de um casamento imperial para unir-se livremente em matrimônio com o Cristo pobre. Exorta-a, no entanto, de manter sempre viva em sua memória o propósito que fizera por uma pobreza radical por amor a Jesus Cristo. Por outras palavras, exortou-a de jamais perder de vista o princípio, isto é, o “ponto de partida” de sua decisão de unir-se em matrimônio com Jesus Cristo:
Não perca de vista seu ponto de partida, conserve o que você tem, faça o que está fazendo e não o deixe (cf. Ct 3,4) mas, em rápida corrida, com passo ligeiro e pé seguro, de modo que seus passos nem recolham a poeira, confiante e alegre, avance com cuidado pelo caminho da bem-aventurança. Não confie em ninguém, não consinta com nada que queira afastá-la desse propósito, que seja tropeço no caminho (cf. Rm 14,13), para não cumprir seus votos ao Altíssimo (Sl 49,14) na perfeição em que o Espírito do Senhor a chamou (2In 11-14).
Foi o irrestrito amor do Amante Jesus Cristo que a priori “sequestrou” o coração de Inês de Praga e acendeu nela um ardentíssimo desejo de deixar todas as vaidades desta terra e unir-se ao Cordeiro imaculado como sua digníssima esposa. Clara exorta-a, então, que ela olhe, considere e contemple sempre esse Filho de Deus, que fixou terna e afetuosamente sobre ela o Seu olhar e suscitou nela uma resposta, consciente e livre, de amor total a Ele (cf. 2In 19-20).
Clara aconselhou a todas as Irmãs, de acordo com a última vontade de Francisco escrita para Santa Clara (cf. UV 1-3), que não se desviassem da pobreza por nenhum preço (cf. TestC 40s. 52-57). Para isso faz-se necessária uma contínua vigilância. Pois, as muitas solicitações do complexo mundo em que vivemos, tanto na ordem do ter, do poder, do saber, como na ordem do prazer, são contínuas ameaças ao “ponto de partida”. Dizendo de outra forma, as solicitações do mundo são tão sedutoras que não somente podem ofuscar, mas até mesmo fazer perder totalmente de vista aquela disposição inicial e o propósito de doar-se livre, responsável e criativamente aos irmãos e irmãs, sob a inspiração da vida e doutrina de Francisco de Assis.
Sem dúvida, a advertência de Clara à Inês estende-se a nós todos, discípulos e discípulas de Jesus Cristo. Pois, em tudo aquilo que fazemos, sentimos um forte apelo à satisfação dos nossos sentidos. A busca da auto-satisfação é, certamente, o maior de todos os perigos, que nos afasta gradativamente da afeição originária de nossa vocação, ou da nossa paixão por Jesus Cristo e compaixão pela humanidade.
Por fim, trazemos uma pequena história, atribuída a S. Kierkegaard, que ilustra muito bem como os muitos trabalhos e solicitações do mundo podem nos fazer perder de vista o “primeiro amor” de nossas vidas:
Certa vez, um europeu que viajava pelo Oriente conheceu uma linda mulher chinesa numa estação de trem. Encantou-se por ela, “amor à primeira vista”, mas tinha dificuldades de comunicar-se, pois não conhecia seu idioma. Quando voltou ao país de origem, ele começou a aprender chinês intensamente, para comunicar-se com sua amada. E assim o fez. Os dois correspondiam-se constantemente e alimentavam o amor de um pelo outro através das cartas. Enquanto isso, ele mergulhou no estudo da língua e da cultura chinesa, num esforço gigantesco, a ponto de tornar-se um especialista no assunto. Então, passou a ser requisitado em muitos lugares, para cursos, palestras e eventos. Não tinha mais tempo para escrever à sua amada, e ela nem sabia mais para onde escrever suas cartas, pois ele estava em constante viagem. O homem tornou-se um personagem importante. Mas o custo foi muito alto: esqueceu a mulher que o motivou a aprender o chinês.
Conclusão
Clara e Francisco são fundamentalmente duas versões distintas e complementares de uma mesma Forma de Vida instituída por Francisco: Observar o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Na esteira de Francisco, Clara e suas Irmãs se fizeram filhas e servas do altíssimo Pai celeste, e desposaram o Espírito Santo, escolhendo viver segundo a perfeição do santo Evangelho (FV 1-2). E dirigindo-se ao sucessor do bem-aventurado Francisco e a todos os frades da Ordem, recomenda e confia-lhes suas Irmãs, presentes e futuras, “para que nos ajudem a crescer sempre mais no serviço de Deus e principalmente a observar melhor a santa pobreza (TestC 51). E Francisco afetuosamente promete, por si e por todos os seus irmãos na Ordem, ter sempre por elas um diligente cuidado e especial solicitude (cf. RSC 6, 3-4).
Oxalá, Clara nos inspire hoje e sempre a colocarmos a mente, a alma e o coração no Espelho da Perfeição humana e divina: Jesus Cristo crucificado. Contemplar o Espelho da Perfeição significa deixar-se inflamar cada vez mais no ardor da caridade, da bondade, da compaixão e da misericórdia de Deus manifestada em Jesus Cristo. É isso que Clara deseja e propõe a Santa Inês e a cada um de nós: “Tomara que você se inflame cada vez mais no ardor dessa caridade” (4In 27). Pois, o ápice da vida contemplativa inaugurada por Clara de Assis é ver, considerar e agir no mundo com o amor maternal de Deus Pai. “O Senhor que deu o bom começo dê o crescimento (cf. 1Cor 3,6.7) e também a perseverança até o fim” (TestC 79).
SIGLAS
Escritos de São Francisco
2Fi = Carta aos Fiéis (Segunda Recensão)
FV = Forma de Vida para Santa Clara
Ord = Carta a toda a Ordem
RB = Regra Bulada
UV = Última Vontade a Santa Clara
Escritos de Santa Clara
Er = Carta a Ermentrudes
2In = Segunda Carta a Inês de Praga
3In = Terceira Carta a Inês de Praga
4In = Quarta Carta a Inês de Praga
RSC = Regra de Santa Clara
TestC = Testamento de Santa Clara
Fontes biográficas de Santa Clara
FC = Fontes Clarianas
BC = Bula de Canonização de Santa Clara
LSC = Legenda de Santa Clara
2LV = Legenda Versificada de Santa Clara
BIBLIOGRAFIA
FONTES CLARIANAS. Tradução, introduções, notas e índices de J. C. PEDROSO. Petrópolis: Vozes/CEFEPAL, 1994.
FONTES FRANCISCANAS E CLARIANAS. Apresentação Sergio M. Dal Moro; tradução Celso Márcio Teixeira et. al., Petrópolis: Vozes/FFB, 2004.
FASSINI, Frei Dorvalino. Forma de Vida da Ordem das Irmãs Pobres – Leitura e Comentários. Cascavel: Federação Sagrada Família dos Mosteiros da Ordem de Santa Clara do Brasil, 2009.
AUTOR:
Dr. João Mannes, OFM
Doutor em Filosofia pelo Pontifício Ateneo Antonianum, Roma (1998).
Professor do Centro Universitário Franciscano do Paraná, Curitiba, PR, e da Faculdade Padre João Bagozzi
J.mannes@yahoo.com.br