Francisco vai até o fundo no caminho da humildade e pobreza
Pensamento de abertura
Há uma certa vinculação entre a pureza do coração e a mansidão, entre a transparência das profundezas e a serenidade, entre a santidade e a bondade essencial. Talvez, no fundo, a pureza não seja mais do que a transparência do ser, frente à Bondade original. Um homem, pelo menos, assim o entendeu. Era um sábio embora não cuidasse de o parecer. Ele viu que a pureza e a mansidão formavam a face de Deus. Por assim o haver entendido, esse homem renunciou ao poder que gera a violência, e ao dinheiro que está na raiz do poder. Deu de mão a toda a ambição de domínio, incluindo a mais sutil de todas, a dos clérigos. Rompeu com o sistema político religioso do seu tempo, a supremacia temporal da Igreja, as lutas feudais, as guerras santas. Fê-lo sem clamor, sem subverter a opinião pública, com suavidade, humildemente, mas realmente. Num mundo violento, eriçado de torreões, cavado de fossos, o seu universo não conhecia muralhas nem torres de vigia. Pobre de bens e de poder, estava em paz com todos, vivia ao nível de todos os seres, para todos tinha um olhar cheio de luz e respeito. O olhar, sobretudo, era nele maravilhosamente humano; humanos os sentidos todos. As criaturas já não eram objeto de posse e de domínio. Irmão do sol e das criaturas, caminhava num mundo aberto e esplendoroso. Era o pai de uma multidão de amigos. Nele se congregavam a pureza e a ternura, e nenhuma barreira lograva impedir que se expandissem pelo mundo. O seu horizonte não era o do Cristandade temporal, com seu prestígio, as suas fronteiras a defender ou a dilatar, mas apenas Jesus Cristo que urgia amar e servir, o homem que se impunha a salvar.
Éloi Lerclerc, Desterro e Ternura, Braga,
Editorial Franciscana, 1974, p.10-11
• A Família Franciscana, nos meses de setembro e outubro, se compraz em evocar e celebrar o fervor, a mensagem, a força desse Francisco da cidade de Assis. Para nós ele é guia, pai, irmão. Apesar de nossas limitações, e talvez por isso mesmo, temos muito orgulho em dizer que nos aproximamos confiantes desta figura, cópia de Cristo, alter Christus, no dizer de papas e estudiosos. Precisamos da limpidez de sua vida. Retomar sempre de novo o caminho por ele empreendido é para nós força de caminhada e ponto de referência para saber se estamos no caminho certo. Esse caminho não é outro senão o do retorno ao evangelho e a prática da vida fraterna.
• As Irmãs Pobres não cessam de recordar: “A forma e vida da Ordem das Irmãs Pobres, que o bem-aventurado Francisco instituiu é esta: Observar o santo evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem nada de próprio, e em castidade” (Regra, cap.I).
• “Visto que, por divina inspiração vos fizestes filhas e servas do altíssimo e sumo Rei, o Pai celeste, e desposastes o Espírito Santo, escolhendo viver segundo a perfeição do santo Evangelho, quero e prometo, por mim e por meus irmãos, ter sempre por vós diligente cuidado, e especial solicitude, assim como tenho por eles” (Forma de vida para Santa Clara). No texto da última vontade dirigido a Clara e suas irmãs: “…dou-vos o conselho de que vivais sempre nesta santíssima vida e pobreza”.
1. Atualidade
• Publicações as mais diversas, documentos da Igreja, pronunciamentos do Papa Francisco vão na linha de um retorno ao Evangelho, à pureza dos inícios. “Voltar a Jesus é muito mais do que introduzir algumas mudanças ou inovações de caráter pastoral ou de governo. A renovação que a Igreja precisa hoje está exigindo uma conversão em nível mais profundo, para que essas mudanças sejam feitas com o Espirito de Jesus e num clima mais evangélico. Precisamos voltar às raízes, converter-nos ao essencial, atualizar hoje de alguma forma a experiência fundante que foi vivida no início com Jesus. Não basta por ordem na Igreja nem introduzir algumas melhoras no funcionamento eclesiástico. Neste momento em que está ocorrendo uma mudança sociocultural sem precedentes, precisamos na Igreja também uma conversão sem precedentes para reproduzir hoje o essencial do Evangelho como algo sempre “novo” e “bom” no mundo” (Pagola, Voltar a Jesus, p. 46).
• Trata-se de reescrever, em nossa vida e em nossa sociedade, o Evangelho de Jesus. Estaria a família franciscana preparada para isso? Não somos herdeiros daquele que conseguiu realizar com sucesso essa empreitada? Julien Green, batizado na idade adulto e tendo recebido o nome de Francisco: “São Francisco de Assis é o e Evangelho em todo seu frescor matinal. É a redescoberta do Evangelho… Não teria Cristo oferecido uma segunda vez seu Evangelho durante o tempo da vida de Francisco?” Lenine teriam confessado que não teria necessário fazer a revolução na Rússia se tivesse lá encontrado uns três ou quatro Francisco. Clémenceau teria exprimido seu desejo de ter algumas gotas do sangue de Francisco circulando em suas artérias. Renan: “Pode-se dizer que, desde Jesus, Francisco foi o único cristão perfeito”.
• “Amigo e irmão de todas as criaturas e de toda a criação, espalhou tanta solicitude, compreensão fraternal a todos, caridade no sentido mais elevado, quer dizer, amor, que a história como que lhe deu em troca a mesma simpatia e admiração afetuosa e geral. Todos os que falaram dele ou sobre ele escreveram – católicos, protestantes, não cristãos, incréus – foram tocados e frequentemente fascinados por seu encanto” (Jacques Le Goff, p.44).
• Nosso mundo parece instalado numa incredulidade prática. Nós, cristãos, sentimos necessidade de revelar ao mundo um rosto de Cristo mais natural, mais luminoso e mais verídico. Sentimos fracos e incapazes de fazê-lo. Sentimo-nos profundamente fragilizados. Ora, Francisco tem algo de essencial a dizer-nos sobre este caminho de pobreza espiritual. Pela vida de contemplação que levou ele é um farol. Seu jeito de viver e de colocar-se diante do Altíssimo e dos irmãos a todos encanta. Algo dele deverá transparecer na vida dos membros da família franciscana.
• George Duby no livro Les temps des cathédrales: “De parceria com Cristo, Francisco foi o grande herói da história cristã. Pode-se afirmar, sem exagero, que o que hoje resta de cristianismo vivo, provém diretamente dele”. P. Lippert: “Se Deus algum dia conceder à Igreja a ordem religiosa do futuro, para a qual já se voltam muitos olhares, essa ordem apresentará, sem dúvida, os traços espirituais de Francisco de Assis”.
• Devemos a dois Papas o fato de t Francisco esta bem colocado diante de nossos olhos na atualidade. Costuma-se dizer que nossa Igreja nem sempre está disposta a promover figuras rebeldes, como de alguma forma foi Francisco. E no entanto, dois pontífices recentes optaram por colocar em destaque Francisco, símbolo do radicalismo evangélico. Sempre fiel às autoridades da Igreja, Francisco com seu radicalismo causava preocupação a Roma. João Paulo II e Francisco deram prova de faro, de forte intuição ao colocarem em destaque a herança do Poverello.
• João Paulo II, em 1986, convida os responsáveis pelas grandes religiões a se dirigirem a Assis para rezar e jejuar em favor da paz. Correndo o risco de desagradar a uma parcela importante dos católicos avessos a toda sorte de ecumenismo, João Paulo II coloca a acentuação na mensagem pacífica de Francisco, “mediador pós-mortem” segundo formulação de Michel Sauquet. Cada um tem na memória a figura de Francisco encontrando o sultão, lançando uma ponte entre cristianismo e islamismo, inaugurando uma forma de diálogo e de respeito mútuo. A cidade de Assis ajuda, há um clima para esse tipo de encontros nos espaços que haviam sido ocupados por Francisco.
• O “faro” do Papa Bergoglio fez com que pontilhasse seu caminho com referências franciscanas. Antes de tudo tenha-se em mente a escolha do nome Francisco para ser designado como Papa. Depois de ter publicado com Bento XVI a exortação sobre a fé, o Papa Francisco publica Evangelli gaudium: alegria da vida fraterna, alegria que vem de Deus através de obstáculos, novidade que fora trazida pelo santo de Assis e sua perfeita alegria. Ainda Laudato Si’ de 2015 a respeito da ecologia que o Papa Francisco abre com uma homenagem ao Pobrezinho de Assis.
• “Não quero prosseguir esta encíclica sem invocar um modelo belo e motivador. Tomei o seu nome por guia e inspiração no momento de minha eleição para Bispo de Roma. Acho que Francisco é o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade. É o santo padroeiro de todos os que estudam e trabalham no campo da ecologia, amado também por muitos que não são cristãos. Manifestou uma atenção particular pela criação de Deus e pelos mais pobres e abandonados. Amava e era amado por sua alegria, a sua dedicação generosa, o seu coração univesal. Era um místico e um peregrino que vivia com simplicidade e em uma maravilhosa harmonia com Deus, com os outro, com a natureza e com si mesmo…” (n.10).
2. O encontro do Evangelho com a história
• A experiência evangélica de Francisco não é um simples episódio da história do cristianismo. Tem valor exemplar e profético. Foi como um novo despertar da Igreja no século XIII e conserva até nossos dias a força de renovação e de rejuvenescimento.
• Será que uma mera vontade de retorno às fontes, por mais generosa que possa ser, seria suficiente para ressuscitar a experiência de Francisco em sua pujança criativa?
• Três elementos na vida de Francisco contribuíram para fazer dele um guia seguro e um inovador: uma rica natureza humana, o sopro evangélico e a cumplicidade com a história.
• Rica natureza: personalidade original e criativa, ser dinâmico, cheio de claridade. Sai dele uma irradiação de plenitude de vida, forte e nova. Alguém que nos leva a caminhos ainda não percorridos. A vida retoma o perfume das origens. Capacidade extraordinária de se comunicar com os seres, poder de deixar-se maravilhar, de acolhimento, de devotamento, hospitalidade de espírito e de coração que o torna atento a todas as criaturas.
• “Talvez nunca tenha havido consciência mais aberta do que a de Francisco, de sensibilidade mais espontânea, mais delicada, nem mais vivamente vibrante a todos os toques que lhe vinham da natureza, dos outros seres e de Deus” (Louis Lavel).
• O sopro do Evangelho penetrando nesta rica natureza liberou todas as suas potencialidades. A conversão não danificou mola alguma de sua personalidade. Pessoas que praticam exercícios ascéticos, por vezes, tornam-se alheias à realidade e insensíveis. Não aconteceu assim com Francisco. Tudo o que era precioso em sua natureza continua a vibrar sob a mão de Deus. Mesmo a riqueza afetiva, o sentimento estético, o lirismo criador.
• Sua conversão: foi essencialmente comunhão com uma pessoa viva. Unindo-se a esta pessoa singular e transcendente as potencialidades de Francisco se desenvolveram. O beijo do leproso é o mais belo símbolo dessa abertura. A partir desse momento sua comunhão foi universal.
• Retorno ao Evangelho: “Todos os cristãos, em qualquer situação que se encontrem, estão convidados a renovar hoje mesmo seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, pelo menos, a tomar a decisão de se deixar encontrar por ele, de procura-lo dia a dia, sem cessar. Não há motivo para alguém pensar que esse convite não lhe diz respeito, já que da alegria trazida pelo Senhor ninguém é excluído. Quem arrisca o Senhor não o desilude; e, quando se dá um pequeno passo em direção de Jesus, descobre-se que ele já aguardava de braços abertos sua chegada” (EG n.3).
• Renovação a partir da história – O retorno ao Evangelho nunca há de faltar na Igreja e produzirá sem falta seu fruto de santidade. Há momentos em que privilegiadamente esse retorno se encontra com o movimento da história e com o advento de nova sociedade. Morria o mundo feudal e nascia o comércio, o mundo das cidades, as comunas, as associações. O movimento de libertação não conseguiu êxito por causa do dinheiro.
• Nesse contexto surge o caminho evangélico de Francisco de Assis. Oriundo desse ambiente urbano e de mercadores o filho de Pedro Bernardone traz em si a efervescência de sua época. Aspirações, ambições e turbulências. Francisco está insatisfeito. Descobre a miséria dos pobres. Remexe-se qualquer coisa dentro dele. Procura e reza. Finalmente ouve o evangelho. Não somente com os ouvidos mas com todo o seu ser. Descobre o que esperava. Produz-se então no coração desse homem um encontro extraordinário entre as exigências da boa nova e os anseios profundos de seu tempo.
• Francisco descobre o Cristo humilde e pobre que caminha entre os homens revelando-lhes o amor do Pai. O exemplo de Cristo se torna a grande luz de sua vida. Vai até o fundo no caminho da pobreza e da humildade. Logo surgem discípulos. São atraídos pela nova forma de vida caracterizada pela ausência de dominação nos relacionamentos humanos: todos são irmãos.
• “No coração de uma Igreja que tinha permanecido feudal e senhorial em seu modo de governar e em sua maneira de viver as relações humanas, esse filho da comuna, que leu o Evangelho com a sensibilidade de seu tempo, cria um mundo novo. Inventa uma forma comum onde não existe mais posição dominadora, nem mesmo de precedência. Em poucas palavras, cria fraternidade” (Éloi Leclerc).
“É isso que eu quero, que busco de todo o coração…”
Por sua exclamação, por seu gesto, Francisco nos convida a levar a sério o Evangelho. Antes de mais nada adota uma atitude de transparente verdade com respeito a si mesmo e ao que ele vislumbra ser a vontade de Deus a seu respeito. Esse ir despojadamente mundo afora é percebido pelo Poverello com uma evidência que brota do profundo de seu ser. Abandonando tudo vai entrando num caminho de conversão. Despoja-se exteriormente de seus bens, conservando apenas o essencial. Progressivamente vai se despojando do orgulho, de suficiência e de seu narcisismo. Progressivamente, e ao longo de toda a sua vida vai palmilhar um caminho de serviço, minorismo, fraternidade o que vai fazer com que abandone todo desejo de poder, de dominaçlão sobre quem quer que seja imitando o Cristo servo. Vai se abrindo à ação do Espírito e seu santo modo de operar, deixando ser transformado a partir do interior. Este despojamento, desencadeado pela escuta da Palavra vai se aperfeiçoar e purificar até a morte de Francisco, quando estiver nu sobre a terra nua. Lentamente a palavra germina nele e torna-se tão fecunda que chega a identificar Francisco com o seu Senhor e Mestre; essa mesma Palavra torna-se também fecunda para os outros que ouvem e veem a atuação do Espírito nele. A alegria, verdadeira alegria toma conta dele e transborda em ação de graças (Antonin Alis, ofmcap -Evangile Aujourd’hui 205, p. 38)
Frei Almir Guimarães