Carisma - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Impressão das Chagas de São Francisco de Assis

Oitocentos anos dos Estigmas de São Francisco de Assis

Frei Vitorio Mazzuco OFM

Introdução

De 1224 a 2024 temos a oportunidade de celebrar mais um jubileu franciscano: oito séculos da impressão dos estigmas no corpo de São Francisco de Assis. Esta reflexão quer propor um caminho de compreensão deste evento, mas não esgota toda a riqueza que este tema vai suscitar durante todo o jubileu. Deus nos criou e imprimiu uma natureza e uma imagem em nossa alma. Com a Encarnação de seu Filho a natureza humana torna-se participante da natureza divina, uma fusão de naturezas. O maior encontro de todos os tempos.

Algo mudou definitivamente na identidade humana e divina. Isto invade a interioridade humana e todo o universo.  O Amor de Deus não tem limites e nos convida a buscar a felicidade. O caminho para a felicidade é portador de desafios. Alegria e dor estão conosco nas setas indicativas da vida. O que nos impacta nos leva à mudanças. Francisco de Assis é um homem marcado pela dor, amor, entrega e certeza de que o Senhor falou com ele e o abraçou com chagas de imenso amor.

No caminho franciscano isto manifesta-se como conversão: mudar de mentalidade, mudar de lugar, mudar de rumo, mudar o modo de pensar, mudar o modo de ser, de querer, de sentir e de amar. O próprio Jesus, ao vestir-se da carne humana, veste-se do máximo despojamento, da veste da minoridade e da pobreza. Ele quer estar entre nós, quer servir, quer amar, quer sofrer, quer morrer por Amor. Diante de um Amor assim temos que ter gratidão. Jesus assume com humildade o nosso jeito para nos tornar humildes. Francisco compreende e assume esta postura.

1.A dimensão franciscana dos estigmas na vida de São Francisco de Assis e nas Fontes Franciscanas

Para Francisco a Paixão de Cristo é a máxima expressão do amor humilde, porque é a máxima doação.  Ele olha, contempla a Paixão, mas, sobretudo, entra nela, sente-se engajado, incorpora-se, abraça e é abraçado.  Impressiona-se com a revelação do Cristo Crucificado. Ao olhar sente que a cruz fala. Ele vê e escuta. Francisco está passando por um momento de decisão e, exatamente na hora dos enigmas, a cruz fala. É a escuta de uma inspiração.  Vejamos estes textos das Fontes Franciscanas: “Já transformado perfeitamente no coração, devendo em breve transformar-se totalmente também no corpo, num certo dia, andando perto da igreja de São Damião que estava quase em ruínas e abandonada por todos. Conduzindo-o o Espírito, ao entrar nela para rezar, prosternando-se suplicante e devoto diante do Crucificado e tocado por visitações insólitas, sente-se diferente do que entrara.  Imediatamente, a imagem do Cristo crucificado, movendo os lábios da pintura, o que é inaudito desde séculos, fala-lhe, enquanto ele estava assim comovido. Chamando-o, pois, pelo nome, diz: “Francisco, vai e restaura minha casa que, como vês, está toda destruída”. Francisco a tremer fica não pouco estupefato e torna-se como que fora de si com esta palavra. Prepara-se para obedecer, entrega-se totalmente ao mandato. E, porque ele próprio não pôde exprimir a inefável mudança que sentiu em si mesmo, convém que nos calemos. Desde então, grava-se na sua santa alma a compaixão do Crucificado e, como se pode julgar piedosamente, no coração dele são impressos mais profundamente os estigmas da venerável Paixão, embora ainda não na carne” (2Cel 10, 1-8).

“(….) Então, a partir daquela hora, a alma dele se derreteu, assim que o amado lhe falou. Pouco depois, o amor do coração se manifestou por meio das chagas do corpo” (2Cel 11, 4-5).

“Pois, num dia, enquanto rezava assim isolado e estava, devido ao excessivo fervor, todo absorto em Deus, apareceu-lhe o Cristo Jesus, pregado na cruz. À vista dele, sua alma se liquefez e a memória da Paixão de Cristo ficou tão profundamente impressa no íntimo do coração dele que, a partir daquela hora, quando lhe vinha à mente a crucifixão de Cristo, mal podia conter-se exteriormente das lágrimas e gemidos, como ele próprio contou mais tarde, familiarmente, quando se aproximava do fim” (LM 1,5).

Estes relatos nos mostram como Francisco se abre de corpo e alma ao mistério da cruz. Integra a Paixão na sua natureza humana. A vida tem realidades mais desafiadoras e ásperas. Há uma força vital de oblação. Ele entra com emoção: chora por paixão, chora por alegria. Há transbordamento de emoção. Sofre a dor, mas mergulha no mar da gratidão. O mundo é tocado pelo sangue do amor oferente. Vejamos como isto aparece na Carta aos Fiéis: “Esta Palavra do Pai tão digna, tão santa e gloriosa, o altíssimo Pai a enviou do céu por meio de seu santo anjo Gabriel ao útero da santa e gloriosa Virgem Maria, de cujo útero recebeu a verdadeira carne da nossa humanidade e fragilidade” (2Fi 4). Da Encarnação até a Paixão a cruz dá os contornos da existência. Cristo é o centro da criação e o centro da história e da existência humana. Por isso a cruz também ocupa um lugar central como caminho norteador. Somos membros de um Corpo Místico do qual Cristo é a cabeça. Uma cabeça cingida das marcas da cruz, com seus espinhos penetrantes.  O Corpo Místico não é adornado com bugigangas do mundo, mas com as marcas de um Amor que foi capaz de sofrer. O caminho indicativo da salvação passou pelo Calvário.

Sofrer faz parte de um processo de purificação para instaurar uma nova vida. Isso mexe com a nossa vida. É uma convocação própria de Jesus: “Quem quiser me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mc 8,34). No sinal e na força da cruz aparece a nossa identidade de penitentes.

O olhar de Francisco de Assis sempre foi a partir da Paixão. Ele se encanta com o amor desinteressado, pelo amor que se esquece do próprio eu, querendo em tudo ser conforme o Cristo Crucificado. Para ele, o Cristo suspenso na cruz é expressão da máxima pobreza. Isto lhe dá uma nova visão de vida. Trazendo a cruz em seu coração, sua vida, espontaneamente, se tornou outra. As coisas, as pessoas, os acontecimentos, tudo lhe aparece numa nova luz.

A cruz passou a ser a medida de sua vida interior. Morte para as coisas do mundo, nascimento para uma nova valorização do mundo. O conforto mundano, o sonho da juventude, agora se tornou para ele cruz.  Ele está unido integralmente à Paixão do Mestre. Ele vence o egocentrismo de sua vida e a cruz torna-se o argumento forte da minoridade. Ele sai da camada do padecer sentimental, para viver o compadecer: sofrer porque o Mestre sofreu.  Diz São Boaventura: “O grande admirável mistério da cruz se revelou a este Pobre de Cristo de um modo tão perfeito, que durante toda a sua vida só seguia os passos do Crucificado, só encontrava a felicidade na cruz, e só pregava a glória da mesma cruz! ” (LM 3).

Quando o Senhor lhe tinha dado um número considerável de irmãos, a Forma de Vida, a Regra dos irmãos começa assim: “ A Regra e a Vida destes irmãos é esta: viver em obediência, em castidade e sem propriedade e seguir a doutrina e as pegadas de Nosso Senhor Jesus Cristo que diz: Se queres ser perfeito, vai e vende tudo que tem e dá aos pobres e terás um tesouro no céu; e vem e segue-me. E se alguém quer vir após mim, renegue-se a si mesmo e tome a sua cruz e siga-me” (Rnb 1,1). E no Testamento: “Nós vos adoramos, Santíssimo Senhor Jesus Cristo, aqui e em todas as igrejas que estão pelo mundo inteiro, e vos bendizemos porque pela vossa Santa Cruz redimiste o mundo” (Test 5).

2.Os estigmas e o modelo vivo que é Jesus Cristo

A vida de Francisco é voltada para o modelo totalmente oblativo de Jesus Cristo, na sua dimensão sacrifical. Gratidão em face a humildade extrema de Jesus Cristo. Força de reconstrução da vida a partir do Crucifixo de São Damião. Para o franciscanismo a cruz é um sinal evidente de missão: mudar-se e mudar o mundo.  É a trilha que nossos pés percorrem. O Cristianismo nos coloca no peito uma cruz. Não pode ser apenas um brilhante amuleto em prata ou ouro, mas uma exigente realidade de seguimento. Mudar para instaurar o Reino não é algo tranquilo. Há muitos “nãos” quando se apresenta um Projeto de Salvação. Pecado é um não de rebeldia ao sim que brota dos desafios. Jesus Cristo não abre mão de seu Amor, apesar de receber muitos nãos.

A vida é uma Via Sacra que revela o currículo do caminho feito pelo Mestre.  O Deus infinito, todo poderoso e amoroso, sapientíssimo e bondoso, se limita a estreiteza de um seio materno, às contingências de um embrião, de uma criança em todas as etapas nas graduações evolutivas de sua formação. Cresceu em idade, sabedoria e graça. Está consciente dos altos e baixos das caminhadas neste mundo.

Faz a vontade do seu Pai do céu. Faz de sua atuação o mais completo servir. Ganha pão no suor de seu rosto nos tempos ocultos de Nazaré: peso de trabalho e mão calejada. Vai confundir, aos 12 anos, os teólogos do Templo. Trinta anos de anonimato num lar pacato. Desconhece a violência dos revolucionários, mas exige conversão. Enfrenta a egolatria dos fariseus e não tem medo de repreende-los. Comprova a verdade de suas palavras com milagres, e achavam que ele fazia isto pelo poder dos demônios. É maltratado, injuriado, caluniado, e sempre fugindo das armadilhas dos que querem prendê-lo e leva-lo à morte. “ Se digo a verdade, por que não acreditais? ” (Jo 8, 46).

Cada vez mais é apertado pelo círculo da perseguição. Encontra dormindo os que deviam vigiar. É traído. Passa por um tribunal que o condena. Quem o entrega é um dos doze, um de seus mais próximos seguidores. Não se defende. Os maus o acusam e os bons se trancam no medo. Muitas vezes Ele se cala. Ele é a encarnação real do Servo de Javé (Is 58). O Deus feito humano chega ao auge do sofrimento, experimentando um abandono total.  Da flor da sua idade, 33 anos, e do meio de uma benfazeja missão de três anos de pregação, presença e milagres, é arrancado e submetido as mais cruéis das torturas na flagelação e coroação de espinhos. O Deus feito humano, o ser mais livre, está preso na cruz. Não pode movimentar seus membros nem mexer a cabeça. Os soldados trancam o caminho dos que querem se aproximar.  Mesmo assim, neste momento, Ele sente vivamente a mão segura do Pai e entrega a Ele seu espírito. A partir de então seu Reino não é mais deste mundo, Ele não quer e nunca quis concorrer na luta pelo poder. Não veio para ser servido. Deu literalmente cada momento de sua vida para todos. Humanamente o que poderia ser um fracasso tornou-se uma força universal de amor. Cumpriram-se os planos de Deus para que Ele fosse Salvador e Redentor. A partir de então Ele não pode mais ser apresentado sem a sua cruz salvadora e nem nós, cristãos e cristãs, poderemos viver sem a cruz.

Ele ainda faz a derradeira prece de glorificação e triunfo: “Pai, chegou a hora. Revela a natureza divina do teu Filho a fim de que ele revele a tua natureza gloriosa. Pois tens dado ao Filho autoridade sobre todos os seres humanos para que ele dê a vida eterna a todos os que lhe deste”.  (Jo 17). Francisco entende bem esta força gloriosa da cruz a partir do olhar do Crucifixo de São Damião: entrar na Mística da Cruz é ver nela a glorificação! Isto não é para todos. É reservado aos pequenos, aos menores: “ Jesus exulta de alegria no Espírito e diz: Pai, Senhor do céu e da terra, eu te dou graças porque escondestes essas coisas aos sábios e inteligentes e as revelastes aos pequeninos. Sim, Pai, bendigo-te, porque assim foi do teu agrado! ” (Lc 10,21).

3.Francisco de Assis e o Amor que deixa marcas. O Amor toma forma num corpo. Uma interpretação entre tantas interpretações

“Homem novo, Francisco tornou-se famoso por novo e estupendo milagre: por singular privilégio, jamais concedido nos séculos anteriores, apareceu assinalado, ou ornado, com os sagrados estigmas, configurando o seu corpo mortal ao corpo do Crucificado. Tudo o que a humana língua possa dele falar sempre estará aquém do louvor de que é digno. Inútil procurar a razão, porque é maravilhoso, nem se trata de buscar um exemplo, pois é único. Todo o empenho do homem de Deus, quer em público, quer em particular, dirigia-se para a Cruz do Senhor. Desde o primeiro instante em que começara a servir sob o Crucificado, diversos mistérios da Cruz resplandeceram em torno dele” (3Cel 2,1).

Quem centra a sua vida numa determinada busca, numa focada paixão, num visível enamoramento, percebe claramente que o objeto deste Amor vai aparecendo nas nuances da vida. O que amamos nos surpreende em evidentes sinais como uma reveladora novidade.  Francisco de Assis foi estigmatizado, e os estigmas são como as marcas do Crucificado que São Paulo dizia trazer consigo. Um humano renovado se molda sobre um caminho de grandes desafios e porque não, de sofrimento. O Amor deixa marcas, e amar tem a sua glória e cruz, tem a sua flor e dor. Toda renovação vai à fonte inicial da vida que é parida em dor. E podemos perguntar: o que tem de humanidade nova nisto, o que tem de novidade? A novidade presente em sofrer por amor é muito raro na literatura espiritual antiga. Vamos encontrar no antigo Império Romano, a presença do termo novus ou novitas, no discurso de Cícero, orador romano, na sua peça de oratória, chamada “Pro Murena”, onde ele defende que não devemos ignorar as marcas deixadas pelo sofrimento nos caminhos da consolação. Para Cícero, as marcas da dor são glórias da luta. Cícero escreve isto para Murena, um senador romano, dizendo para ele que “as virtudes de um senador são mais importantes que o seu nascimento”. As marcas deixadas pelo Amor não são sofrimento pelo sofrimento, mas reconhecimento.

Novo homem, ou a novitas, pode ser entendido como o original. Em Francisco a sua Forma de Vida era viver o Evangelho segundo o Crucificado. Imprimiu na alma esta verdade, e da alma ficou impressa no corpo. Mas o que é o humano novo? São Paulo diz: “Em Cristo fostes ensinados a remover o vosso modo de vida anterior – o homem velho que se corrompe ao sabor das coisas enganosas, e a renovar-vos pela transformação espiritual de vossa mente, e a revestir-vos do homem novo, criado segundo Deus, na justiça e santidade da verdade” (Ef 4,20-24).  Ser uma nova criatura não é revestir-se de si mesmo, mas revestir-se de Cristo, fazer a investidura do que se ama. Isto é um processo para toda vida. A estigmatização de Francisco aconteceu vinte anos após a conversão, mas foram vinte anos de seguimento e de imitação apaixonada. Voltemos a São Paulo: “Vós vos revestistes do homem velho com as suas práticas e vos revestistes do novo, que se renova para o conhecimento segundo a imagem do seu Criador. Aí não há mais grego ou judeu, circunciso ou incircunciso, bárbaro, cita, escravo ou livre, mas sim o Cristo que é tudo em todos” (Col 3,10-11). O humano novo não é apenas um indivíduo particular ou uma aventura psicológica de mudança efêmera, mas é um humano singular, único e original que assume uma nova postura de vida, como que uma nova aliança.

Estigmatização é renovação vinda de um caminho percorrido, não é algo imaginário, mas real quando se percebe uma extraordinária transformação. Renovar-se é a força do humano que não se sente mais escravo de nada, é livre, diante da natureza e da lei, do selvagem ao civilizado, mas acrescenta algo a identidade humana. Francisco apresentou-se ao mundo com as marcas da fraternidade que vinha de uma vivência cristológica dia após dia. Ele marcou a vida de um modo todo seu; no Cântico das Criaturas ele integrou a terra e os astros, o masculino e o feminino, o selvagem e o civilizado. O seu corpo é o corpo da existência fraterna, por isso pode integrar o natural e o espiritual, o bárbaro e o comportado, o homem e a mulher.  “Se alguém está em Cristo, é nova criatura. Passaram-se as coisas antigas; eis que se fez uma realidade nova” (2Cor 5,17).

Voltando a Cícero, ele entendia o homem novo como aquele que assumiu um cargo público e deve ser o primeiro a mudar. Voltando a Francisco de Assis, ele é o mercador, filho de mercador, desprezado pela nobreza de então, mas assumiu o código de cavaleiro, não pela função em si, pois jamais fez a iniciação cavaleiresca, mas pelos valores que a sua vida exigia. Assim ele vence o desprezo e a incompreensão, ele vence a estigmatização social, mostrando que ele agora tem uma nova função, mesmo com todo sofrimento que isto implica. Ele não se identifica mais com as funções que o pai e a sociedade queriam para ele, mas sim com a nova função, levar ao mundo o jeito sempre novo da Boa Nova, nascida no presépio e complementada na cruz, caminho total de mudança radical. O Evangelho e o Reino anunciado e vivido por Jesus tornam-se a grande novidade: a inesperada humanidade de Deus e a inquietude humana em abraçar esta humanidade nova, que vai trazer a máxima liberdade, a fecunda liberdade, o espírito de coragem, o acesso definitivo à filiação divina.

No Testamento, Francisco diz: “Foi assim que o Senhor concedeu a mim” (Test 1), ele sabe que ele não foi um profissional da religião, mas um enamorado guardião de uma grande inspiração. Os estigmas de Francisco são sinais concretos e não imaginação. O Cristo que o inspirou não foi estigmatizado, mas crucificado! Os textos do Evangelho contam com mais detalhes a Paixão de Jesus do que o seu nascimento.

4.Os estigmatizados na história cristã

A intensidade de uma vida deixa marcas e consequências. Não devemos nos prender a confusão entre narrativa e iconografia. Tem gente que está preocupada em provar se São Paulo caiu ou não do cavalo em Damasco. Toda a questão é ver o que mudou na vida de São Paulo. Nós também não precisamos buscar o corpo de Santa Catarina de Sena, Santa Rita de Cássia, Verônica Giuliani, Catherine Emmerich, e Padre Pio de Pietrelcina, para ver fenômenos excepcionais que aconteceram na vida destes santos e santas, mas sim buscar indícios na vida do quanto aconteceu neles uma grande transformação do humano com sinais divinos, e estes sinais estão em marcas corporais que se aproximam das marcas do Cristo Crucificado. Estes personagens não foram canonizados ou beatificados por causa dos estigmas, mas sim pelas virtudes. A partir do próximo item vamos procurar entender os efeitos sobrenaturais num corpo natural. Não precisamos do exagero de sangue e feridas do filme de Mel Gibson, “A Paixão de Cristo”, de 2004, que conta as últimas 12 horas de Jesus de Nazaré, mas precisamos entender o que a mística franciscana afirma: quem muito ama, mais sofre; mas quem mais sofre por causa de um intenso amor, mais salva.

5.Os estigmas de São Francisco, fenômeno sobrenatural ou lepra?

Ainda que historiadores e escritores de literatura espiritual, com hermenêuticas e pesquisas, como por exemplo, Donald Spoto em seu livro, “Francisco de Assis, um Santo Relutante”, de 2003,  que inspirou o filme também de 2003, “Francisco de Assis, o Santo Relutante”, um bom documentário baseado na obra de Spoto , tendo como diretora, Pamela Mason Wagner, e o grande ator Robert Sean Leonard como Francisco e Liev Schreiber como narrador, defendam que Francisco de Assis teve o contágio da lepra e não estigmas, esta tese nunca foi comprovada e sobretudo os estudos de seus restos mortais feitos em laboratórios provaram que ele nunca teve hanseníase.

Os estigmas de Francisco são descobertos e decifrados depois da sua morte, mas as marcas de Cristo já estavam com ele em vida. Marcas são reconfigurações em vida e que a morte deixa como uma herança.

Francisco de Assis recebeu a marca de um serafim como a polivalência de uma teofania. É a chama que se acende quando o anjo e o homem se encontram. É a figura divina inacessível ferida de Amor e dor que toca o humano ferido de Amor e dor. É o encontro heroico com as marcas do Amor que glorificam uma entrega. Vida evangélica, vida mística, vida fraterna deixam marcas do interior para o exterior.

Francisco de Assis tem que ser visto na inteireza de sua vida e não no fato isolado de sua estigmatização. Porque os estigmas são convergência de um caminho de santidade, de fundador de uma Ordem, de um profeta de um novo mundo. Os estigmas recontam a vida de Francisco do início ao fim, mostram a inteireza de sua existência. Ele é o humano novo dentro de um mundo envelhecido de ontem e de hoje. Ele libertou o mundo de então do medo, do voltar-se para o egoísmo, ambição e avareza, do fixar-se em propriedades, dos privilégios de sangue nobre e castas sociais, e fez com que a fraternidade não fosse apenas um modo de monges viverem juntos, mas o jeito de conviver nas estradas do mundo. Ele fez Cristo voltar a andar nos caminhos mais costumeiros da vida, e este Cristo que um dia andou pelas estradas da Palestina amou tanto que foi crucificado. Sofrimento e perfeita alegria. Transformação e laços consanguíneos com o Amado. O corpo de Francisco foi marcado pela centralidade da sua busca: ser igual a Cristo! Ele tatuou em sua carne a palavra encarnada e inovadora.

Quem um dia deixou-se marcar pela cruz trouxe a salvação para a humanidade. O Amor não tem sofrimento inútil. O Amor é uma fusão de vontades amantes. Diz Tomás de Celano: “O filho respondeu diligentemente ao pai, sabendo que pelo Senhor lhe era dada a palavra da resposta: “Dize-me, por favor, ó pai, com quanta diligência teu corpo obedeceu às tuas ordens, enquanto pôde? ” Ele disse: “Filho, dou meu testemunho de que ele foi obediente em tudo, em nada poupou a si mesmo, mas quase se precipitava sob todas as ordens. Não fugiu de trabalho algum, não escapou de incômodo algum, bastava-lhe poder cumprir as ordens” (2Cel 211).

O corpo de Francisco de Assis não é mais dele, mas do Amor! Não é apenas um fragmento de macrocosmo, uma simples modalidade de viver nesta terra, não é um sangue anônimo. Ele é um corpo transfigurado pela vontade do Amor! É um corpo livre do mundo, da eclesiologia, das doenças e dos demônios, e de tudo o que o ameaça.  Agora não é mais corpo em forma de carne humana, mas sim totalidade de uma vida, é Corpo de Cristo! É um corpo ritual e sagrado. Ele agora pode mostrar a dramatização de uma Encarnação: de Greccio ao Alverne este corpo mostra o que o Amor moldou em si. Em Greccio Francisco encenou o Presépio, no Alverne Francisco sangrou a identificação com a Palavra Encarnada!  E agora, não é um Natal para crianças, mas uma Natividade para adultos. Quer amar? Então toque o Verbo na sua manifestação mais natural e mais amorosa. Não é mais apenas ouvir a Palavra, mas ter a Palavra no sangue. A Palavra se fez carne porque a carne fez-se Amor. É a Palavra expressiva num corpo expressivo. Agora o corpo tem uma importância eterna porque tem as marcas do Amor!

Francisco estigmatizado é o corpo traspassado de um desejo profundo. É o corpo que se fez portador da vontade do Senhor assim como Maria: “Faça-se em mim segundo a tua vontade! ” (Lc 10,38). Maria deu-nos o Menino, o Emanuel, o Deus Conosco. Francisco deu-nos o Cristo Pobre, Humilde e Crucificado. Greccio e Alverne se encontram na mesma verdade! Este Corpo arde e fala! Este corpo concretizou encontros e rupturas. Deu todos os bens para abraçar a pobreza. Deu todo o afeto para abraçar o leproso. Deu toda a sua pureza de coração para abraçar a fraternidade. Deu todo os seus ouvidos ao Crucificado de São Damião que pediu a reconstrução da casa. Deu um novo início ao Evangelho transformando-o em forma de vida.

No corpo estigmatizado de Francisco a impressão de sua vida inteira, estigmatizada pela pobreza, obediência e pureza de coração. No corpo de Francisco as marcas de sua marginalidade assumida, pois foi rejeitado por nobres e cidadãos de sua época.  No corpo de Francisco o Amor devorante de Deus e por Deus, um Amor capaz de assumir a fraternidade dos marginalizados da sociedade oficial. Como o Amado ele também abraçou os cegos, os camponeses, os paralíticos, os que não podiam ganhar nada para viver, as mulheres que não podiam nem falar e nem seguir fora da vigilância das autoridades. Ele assumiu em si os estigmas sociais de seu tempo. Não foi um bode expiatório, sim um reformador fraterno de um modo mais leve de viver o Evangelho.

No corpo estigmatizado de Francisco a responsabilidade de conduzir uma Fraternidade que nele acreditou e que não tinha onde reclinar a cabeça. Eram peregrinos e viandantes, vivia com os seus companheiros primitivos a beleza de estar no mundo como um claustro transitório. Neste mundo encontraram a criação que restituíram ao Criador, pois viram nela a fonte da beleza, do louvor e da graça e, por isto, podem falar da criação como uma consanguinidade familiar, um laço universal que autoriza a falar de todas as criaturas como irmãos e irmãs. Devolveram tudo para não ter posse e inveja de nenhum acúmulo. Viveram uma metamorfose ambulante.

No corpo estigmatizado de Francisco a consolação bela e prudente da serena irmã e companheira, Clara de Assis! Ela entendeu que a cruz tinha que ser guardada e cuidada para sempre, e que Francisco era seu espelho. Francisco foi ao mundo levar o Evangelho. Clara ficou no claustro para reviver o ventre de Maria. O Amor tem que ser concebido cada dia. Francisco teve que sofrer pela liberdade de Clara, mas os dois foram muito felizes na liberdade do Amor. A natureza do Amor foi reconstruída como o verdadeiro claustro. Em Clara a vida do Mosteiro é matriz na qual cada dia a palavra de Deus vem ao mundo. Clara não é apenas uma seguidora de Francisco, ela beija o sangue dos estigmas que ele conquistou e bebe na mesma Fonte. Diz Ângela de Foligno: “Na plenitude de Deus, eu colho o mundo inteiro, além de tudo, dos mares e dos abismos, do oceano de cada coisa. E em tudo, não percebo outra coisa que não seja a potência divina, de modo inenarrável. Então, no ápice da admiração, a minha alma exclama: esta natureza de Amor é grávida de Deus!” (Ângela de Foligno, Memoriale, VI, 1285-1298 ).

No corpo externo estigmatizado de Francisco o esponsal com o corpo interno, a sua vida interior, marcada pelo Amor ao Crucificado. É uma prova evidente: ele que tocou com o Amor toda a obra de Deus, foi tocado com muito Amor pelo próprio Deus. Não é dor corporal, mas sentidos da vida que passam pelo crivo da entrega mais radical por Amor. Francisco não somatizou a dor, mas sim deixou que o Amor marcasse seu corpo. Ele e o Amor tornaram-se um!

6.Uma experiência pessoal a partir da visita ao Monte Alverne

Fiz várias visitas ao Monte Alverne, na Itália, onde no dia 17 de setembro de 1224, Francisco de Assis recebeu os estigmas. A montanha é sempre um sinal de elevação. Para as grandes tradições religiosas é o lugar onde a divindade se manifesta. São vários lugares expressivos que revelam a presença do sagrado: Monte Sinai, Monte Tabor, Monte Athos, Monte Olimpo, Monte Horeb. A ascensão física corresponde a uma ascensão espiritual. Da terra para o céu. É o lugar da mediação onde o grande e pequeno universo se tocam. A montanha é sinal de fortaleza, estabilidade, permanência, uma posição dominante, soberana, que deve ser escalonada degrau por degrau.

É o reflexo de uma mística de busca e senda da iluminação. Lugar da culminância, do silêncio e da meditação necessária. Perto do firmamento, do sol, da lua e das estrelas; ela possui cavernas e grutas para mostrar que é preciso viver dentro e viver sobre o mais alto. Nas culturas temos as Pirâmides do Egito, a Torre da Babilônia, as torres dos templos e os altares. Muitas celebrações feitas na montanha são para estar mais perto daquele que brilha no alto e que aparece e se esconde entre nuvens, relâmpagos e trovões. O sol nasce e se põe entre montanhas e amplos horizontes. É o lugar de grandes e especiais ensinamentos, secretos ou explícitos. O Sermão da Montanha é a grande síntese da pregação de Jesus. Francisco de Assis chega ao Monte Alverne porque quer encontrar e contemplar seu tesouro escondido, a sua mais profunda união mística. Compreender o significado do lugar mais elevado foi a minha primeira experiência no Alverne.

A segunda grande experiência foi encontrar-me, em maio de 1989, com monges budistas, em retiro meditativo neste monte onde Francisco recebeu as chagas. Numa parte mais alta do Monte Alverne estabeleci um inesquecível diálogo com um destes monges que veio das montanhas do Tibet. Minha conversa com ele iniciou-se com a pergunta: Por que um monge budista no Alverne? E ele respondeu: Estamos aqui por dois motivos: primeiro porque este lugar é sagrado; segundo, porque Francisco de Assis é o ser humano cristão mais iluminado do ocidente. E o diálogo continuou com outra pergunta: qual o significado dos estigmas para um budista? E o monge disse que tinha lido nas Fontes Franciscanas que um Serafim, com o rosto de Jesus Cristo marcou Francisco de fora para dentro. E que para eles, que também tem monges estigmatizados, as marcas vêm de dentro para fora. São explosões iluminadas de santidade que correm no coração e nas veias e explodem nas extremidades fontais do corpo. Mente, coração, mãos e pés são conexões com o mundo de dentro para fora. E o monge questionou: Por que vocês no ocidente têm tantas doenças vindas, da coluna, do coração, tumores no cérebro, nas mamas e nos ossos? Porque travam as energias do amor e da fé. É preciso deixar fluir mais a força afetiva e espiritual. Doenças são bloqueios de energias. Santidade tem a ver com o sadio da existência, e Francisco de Assis, mesmo doente dos olhos, dos ossos, sofrendo no corpo e na alma, permitiu que a força divina saltasse de seu interior. Esta experiência em ouvir uma outra cultura, marcou e ampliou a minha experiência de Alverne.

Conclusão

Encerro esta reflexão com um texto necessário na comemoração deste jubileu. Após a Legenda I Fioretti temos um anexo que se intitula: “Dos sacrossantos estigmas de São Francisco e de suas considerações”, e na terceira consideração lemos: “(…) Deus cuida com solicitude de mim; porque dentro de poucos dias Deus fará tão grandes e tão maravilhosas coisas sobre este monte que todo mundo ficará maravilhado; porque Ele fará algumas coisas novas, as quais não fez mais a nenhuma criatura neste mundo”.(…) E orava desta forma: “Ó Senhor meu Jesus Cristo, duas graças te peço que me faças antes que eu morra; a primeira é que em vida eu sinta na alma e no corpo, quanto for possível, aquelas dores que tu, doce Jesus, suportaste na hora da tua acerbíssima Paixão; a segunda é que eu sinta no meu coração, quanto for possível, aquele excessivo amor do qual tu, Filho de Deus, estavas inflamado para voluntariamente suportar uma tal Paixão por nós pecadores”. E estando por longo tempo nesta oração, compreendeu que Deus o escutaria e que quanto fosse possível a uma simples criatura, tanto lhe seria concedido sentir as preditas coisas. Tendo São Francisco esta promessa, começou a contemplar devotissimamente a Paixão de Cristo e a sua infinita caridade: e crescia tanto nele o fervor da devoção que todo ele se transformara em Jesus pelo amor e pela compaixão. E estando assim e inflamando-se nesta contemplação, naquela mesma manhã viu vir do céu um serafim com seis asas resplandecentes e inflamadas; o qual serafim com voo veloz aproximou-se de São Francisco de modo que ele o pôde discernir, e viu que trazia em si a imagem de um homem crucificado, e suas asas estavam assim dispostas: duas asas se estendiam sobre a cabeça, duas se estendiam para voar e as outras duas cobriam todo o corpo. (…) E estando nesta admiração, foi-lhe revelado, por aquele que lhe aparecia, que por divina providência aquela visão lhe era mostrada em tal forma, para que ele compreendesse que, não por martírio corporal, mas por incêndio mental, devia ser todo transformado na expressa similitude do Cristo crucificado. Nesta aparição admirável todo o Monte Alverne parecia arder em chama esplendidíssima, a qual resplendia e iluminava todos os montes e vales vizinhos, como se fosse o sol sobre a terra” (CSE 3). Com este expressivo texto das Fontes concluímos esta reflexão para mostrar o sinal iluminado e sagrado que tomou forma num corpo. Em louvor de Cristo, Amém!


Texto original publicado na revista: https://franziskaner.net/zeitschriften/mission/FM-2024-1-DO/10/

Arrebatado em Deus quis ser crucificado (LM XIII, 3)

José Luiz Cruz Duarte

Assim relata o primeiro biógrafo de São Francisco, Tomás de Celano, escrevendo 4 anos após sua morte, em 1226.

Dois anos antes de devolver sua alma ao céu, permanecendo ele no eremitério que pelo lugar em que estava situado se chama Alverne, viu, numa visão divina (cf. Ez 1,1; 8,1), um homem à semelhança de um Serafim que tinha seis asas, o qual pairava acima dele com as mãos estendidas e com os pés unidos, pregado à cruz. Duas asas se elevavam sobre a cabeça, duas se estendiam para voar, duas enfim cobriam todo o corpo (cf. Is 6,2). E o bem-aventurado servo do Altíssimo, ao ver isto, enchia-se da mais profunda admiração, mas não sabia o que esta visão queria significar. Também rejubilava-se muito e alegrava-se mais intensamente pelo benigno e gracioso olhar com que percebia era olhado pelo Serafim, cuja beleza era demasiadamente inestimável, mas embaraçava-o completamente a crucifixão e a crueldade da paixão dele. … Pensava solícito o que poderia significar esta visão… E como não percebesse nada dela com inteligência clara e como a novidade desta visão se apoderasse do coração dele, começaram a aparecer-lhe nas mãos e nos pés os sinais dos cravos, à semelhança do homem crucificado que pouco antes vira acima dele”.

“Suas mãos e os pés pareciam traspassados no meio por cravos… Igualmente o lado direito fora como que traspassado por uma lança, ficando fechada uma cicatriz, e dele muitas vezes jorrava sangue… – Quão poucos, enquanto vivia o servo crucificado do Senhor crucificado, mereceram ver a sagrada chaga do lado! Mas feliz foi Elias que, enquanto o santo vivia, de algum modo mereceu vê-la; mas não menos feliz foi Frei Rufino que a tocou com as próprias mãos (cf. 1Jo 1,1)”…

“Com muito empenho escondia estas coisas dos estranhos, ocultava-as com muita cautela dos mais próximos, de modo que os irmãos que estavam a seu lado e eram devotíssimos seguidores, por muito tempo as ignoraram. – E, embora o servo e amigo do Altíssimo se visse ornado com tantas e tais pérolas como com gemas preciosíssimas (cf. 2Cr 9,9) e decorado mirificamente acima da honra e glória de todos os homens (cf. Sir 3,19; Sl 8,6), no entanto, não ficou vaidoso em seu coração nem daí procurou agradar (cf. Gl 1,10) a alguém por desejo de vanglória; mas, para que o aplauso humano não roubasse a graça que lhe fora concedida, esforçava-se por escondê-las (cf. Mt 6,18-19) com todos os modos com que podia” (1Cel 94-95)”.

“Estas coisas ele suportou por quase dois anos em toda paciência e humildade, dando em tudo graças a Deus (cf. Tb 2,14; 1Tm 5,18)”   (1 Cel 102,1)”.

Encontramos outros relatos posteriores baseados no relato de Tomás de Celano e na tradição popular, como na Legenda Menor (Lm III,6), Legenda dos Três Companheiros (LTC XVII, 69),  Atos do Bem-aventurado Francisco e companheiros (AtF IX, 68), Vida de São Francisco, de Juliano de Espira (Jul XI, 61-62), Considerações sobre os Sagrados Estígmas (CSE – Terceira consideração dos sacrossantos estígmas), Tratado dos milagres de Tomás de Celano (3Cel II, 2-4). Além do relato acima transcrito de Tomás de Celano, transcrevemos trecho da carta de Frei Elias, contemporâneo de São Francisco e partes do relato empolgante de São Boaventura, na Legenda Maior.

Na Carta de Frei Elias: “… Não muito tempo antes da morte, nosso irmão e pai apareceu crucificado, trazendo em seu corpo as cinco chagas que são verdadeiramente os estigmas de Cristo (cf. Gl 6,17). Suas mãos e pés tinham como que as perfurações dos cravos, traspassados de ambas as partes, conservando as cicatrizes e deixando ver o negrume dos cravos. Seu lado apareceu traspassado por uma lança e muitas vezes fazia jorrar sangue” (El 17-19).

Na Legenda Maior de São Boaventura: “Francisco, o homem angélico, tinha o costume de nunca deixar de fazer o bem,…E assim, dois anos antes de entregar seu espírito ao céu, conduzindo-o a divina providência, foi levado … a um lugar alto à parte (cf. Mt 17,1) que se chama Monte Alverne. E como aí tivesse começado, segundo seu costume, a jejuar uma quaresma em honra do Arcanjo Miguel, … Por oráculo divino foi-lhe colocado na mente que, à abertura do livro do Evangelho, lhe seria revelado por Cristo o que nele e dele seria aceito por Deus…. Mandou … que fosse aberto em nome da Santíssima Trindade o sagrado livro dos Evangelhos… como nas três aberturas do livro sempre ocorria a paixão do Senhor, o homem cheio de Deus compreendeu que, como havia imitado a Cristo nos atos da vida, assim devia ser conforme a ele nas aflições e dores da paixão, antes de passar deste mundo. … Quis ser crucificado, numa manhã, na proximidade da festa da Exaltação da Santa Cruz, e enquanto rezava num lado do monte, viu um Serafim que tinha seis asas (cf. Is 6,2) tão inflamadas quão esplêndidas a descer da sublimidade dos céus. E como tivesse chegado em vôo rapidíssimo a um lugar no ar próximo do homem de Deus, apareceu entre as asas a imagem de um homem crucificado que tinha as mãos em forma de cruz e os pés estendidos e pregados na cruz… Vendo isto, ficou profundamente  estupefato, e o coração experimentou alegria misturada com tristeza… era olhado por Cristo sob a forma de Serafim, mas a crucifixão traspassava a sua alma… Compreendeu a partir disto, revelando-o Deus, que tal visão fora assim apresentada diante dele pela divina providência para que o amigo de Cristo conhecesse … que deveria transformar-se todo na semelhança de Cristo Crucificado não pelo martírio da carne, mas pelo incêndio do espírito. Desaparecendo, então, a visão, deixou no coração dele um admirável ardor, mas também na carne imprimiu a não menos admirável imagem dos sinais… Começaram a aparecer nas mãos e nos pés dele os sinais dos cravos (cf. Jo20,25), do mesmo modo como vira pouco antes naquela figura de homem crucificado. As mãos e os pés pareciam bem no meio traspassados pelos cravos, aparecendo as cabeças dos cravos na parte interior das mãos e na parte superior dos pés, e as pontas deles saindo da parte contrária (cf. Mc 15,39)… Também o lado direito, como que traspassado por uma lança, era coberto por uma cicatriz vermelha e muitas vezes, derramando sangue, manchava a túnica e os calções”(…).

Depois que o verdadeiro amor de Cristo transformou o amante na própria imagem (cf. 2Cor 3,18), tendo completado o número de quarenta dias,… Francisco, o homem angélico, desceu do monte, trazendo consigo a imagem do Crucificado, não esculpida em tábuas de pedras ou de madeira pela mão do artífice, mas desenhada nos membros de carne pelo dedo do Deus (cf. Mt 17,9; Ex 31,18) vivo” (LM XIII 1,1-5-4).

Apesar de sua linguagem simbólica, esses relatos desvelam, mas não revelam plenamente o mistério, o sagrado. A linguagem simbólica por mais que fale, não esgota o mistério. É um mediador que aponta para o sagrado, para o mistério sem cristalizá-lo, engessá-lo. 9 Querem mostrar que algo intrigante aconteceu naquele monte e que Francisco jamais revelou claramente o acontecimento, mas o que foi consumado em seu corpo e alma é consequência de um processo, de uma opção e obediência a essa opção.

 “…a partir daquela hora, seu coração ficou
de tal modo ferido” 
(LTC V,14,1)

1205: Francisco tem seu primeiro encontro real com o crucificado na pequena e em ruínas igrejinha de São Damião, na qual, entrou, impulsionado por uma força que até ele mesmo desconhecia, e ali permaneceu calado a contemplá-lo. Aquele Jesus Crucificado, não pregado, vivo, que parecia se desprender de sua moldura para abraçá-lo, que fitava fixamente aquele jovem, como que sabendo de todas as suas dúvidas, angústias, perguntas, incertezas existenciais que ele trazia no coração e na alma (cf. Sl 17,3; 139,1-3.23).  E por graça, o Senhor se manifestou em seu coração ávido de respostas: “Francisco, não vês que a minha casa está destruída? Vai, portanto, e restaura-a para mim”. Francisco hipnotizado por aquele olhar respondeu timidamente: “fa-lo-ei de boa vontade, Senhor(LTC V,13,6-13: LM II,1; Lm I,5).

“As palavras Divinas encheram-no de alegria e a sua alma iluminou-se de viva luz. Ficou plenamente convencido que foi Jesus Crucificado que lhe dirigiu aquele apelo”. 10

“Foi assim que o Senhor concedeu a mim, Frei Francisco, começar a fazer penitência” (Test 1). E começou sua jornada até o Monte Alverne , em 1224.

Escreve Inácio Larrañaga: aquele jovem “entrou no ambiente sombrio e, logo que seus olhos se acostumaram com a escuridão, ajoelhou-se com reverência diante do altar, olhando para o crucifixo bizantino. Olhou-o longamente. Era um crucifixo diferente: não expressava dor nem causava pena. A figura de Jesus tinha uns olhos negros bem abertos, por onde se manifestavam a grandiosidade de Deus e os abismos da eternidade. Uma estranha combinação de doçura e de majestade envolvia toda a imagem, provocando confiança e devoção em quem o contemplava. Seduzido por aquela expressão de calma e de paz, Francisco ficou imóvel, não se sabe por quanto tempo. Segundo os biógrafos, teve nesse momento uma altíssima experiência divina”. 11

Essa experiência mística de Francisco não foi por acaso. Conforme o biógrafo, ele foi levado. Alguém o chamou. Uma “mão” misteriosa o conduziu. E porque aquele homem? Será que não havia outro menos pecador em Assis? Para essa pergunta não temos resposta, a não ser a que encontramos em São Paulo: “o que é loucura no mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios; e o que é fraqueza no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte; e o que no mundo é vil e desprezado, o que não é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é, a fim de que nenhuma criatura possa vangloriar-se diante de Deus” (cf. 1Cor 1,27-29).

Então, como entender esse encontro com o Crucificado?

Francisco tinha aproximadamente 23 anos. Recordemos alguns fatos até a primavera do ano de 1205.

Nasceu entre 1181 e 1182 e recebeu o nome de João, dado por sua mãe no Batismo. Quando o pai retornou de uma viagem comercial, deu-lhe o nome de Francesco, o francezinho, em homenagem à França, que tanto apreciava comercialmente e afetivamente.

O biógrafo e teólogo Donald Spoto em sua obra “Francisco de Assis o Santo relutante”, escreve que no ano de 1181, a região da Úmbria, Itália central, teve uma colheita excepcional. O vale de Spoleto viu os galhos de suas vinhas, oliveiras, amoreiras se curvarem de tanto fruto, bem como a abundância dos campos de trigo e milho. Tal abundância não se repetiu no ano seguinte, quando uma violenta tempestade assolou a região trazendo a morte sobre homens, animais e plantações. Foram 5 anos de fome, miséria e morte. A maioria dos recém nascidos não sobreviviam por muitos meses. As crianças sucumbiam pelas infecções, diarreias, gripe. Os adultos pela pneumonia, febre tifoide, malária, tuberculose, varíola, lepra, sífilis e outros males advindos daquela realidade.

Francisco sobreviveu, pois as famílias afortunadas escapavam dessa situação desastrosa. Seu pai, um dos mais ricos comerciantes de Assis, tinha como prover e proteger sua família.

As condições sociais eram miseráveis. A educação, os costumes, os comportamentos: execráveis e vergonhosos. Os relacionamentos matrimoniais eram frágeis (1 Cel I,1), uma vez que os homens partiam para as guerras sem a certeza da volta. O clero, apesar das reformas de Cluni e do papa Gregório VII (1073 – 1085), ainda era desacreditado e a educação teológica sólida ao clero, não era uma realidade geral. Podemos somar a essa realidade, a situação da igreja e do papado (3 antipapas entre 1159 – 1180), que precedeu ao nascimento de Francisco. Outro fato ocorrido durante a infância de Francisco, foi a terceira cruzada (1189-1192), empenhada a libertar Jerusalém das mãos dos muçulmanos. Se pensava que a tomada de Jerusalém pelos infiéis, fosse uma punição divina pelos pecados da igreja cristã. Anos depois, o Papa Inocêncio III, o maior Papa de toda a cristandade, convocou a 4ª cruzada (1202-1204). Lembramos que morrer numa cruzada ou martirizado nas mãos dos “infiéis” ou “sarracenos”, como eram denominados os muçulmanos, levava o martirizado à santidade. O martírio por Cristo era o caminho mais curto à santidade, como nos primeiros séculos da cristandade.

Francisco acompanhou seu pai em algumas viagens comerciais ao sul da França. Aprendeu um pouco de francês e conheceu povos, grupos sociais e artísticos diferentes, ambulantes, peregrinos, monges, grupos religiosos de penitentes e até grupos heréticos (cátaros, valdenses).

Apesar do mundo à sua volta estar tão agitado, Francisco desfrutava de uma vida juvenil irresponsável, festiva, sem pretensões pessoais e sociais. Contudo, seu pai, Pedro Bernadone, ansiava pertencer à nobreza de Assis, mas o único caminho para essa ascensão social, era o filho conquistar o status de “cavaleiro”. Sobre esse assunto, indicamos as obras literárias: “Francisco de Assis e o modelo de amor cortês-cavaleiresco”, de Frei Vitorio Mazzuco Filho, e de Jean-Marc Charron, que procura estudar a identidade de Francisco, com a ajuda da psicanálise ( “Da Narciso a Gesú – La ricerca dell’identità in Francesco d’Assisi”).

Por volta de 1198, aflora o conflito entre os nobres e as outras classes ricas não pertencentes à nobreza, pelo poder político na cidade de Assis. As famílias nobres se refugiam em Perúgia.

Em 1202, os nobres de Perúgia com os nobres de Assis, refugiados em Perúgia, se aliam e vencem os burgueses ou ricos de Assis. Os que não fugiram, foram presos. Entre eles estava Francisco. Depois de um ano na prisão, seu pai veio resgatá-lo. As condições insalubres da prisão trouxeram graves doenças para os prisioneiros. Francisco foi acometido por uma grave enfermidade, provavelmente malária. Ficou convalescente até fins de 1204, sob os cuidados da família.

No final desse ano ou inicio de 1205, Francisco parte para nova guerra na Apúlia, mas em Espoleto, meio acordado e meio dormindo, talvez febril devido a malária, ouviu uma voz lhe dizer: “Quem pode ser-te mais útil, o Senhor ou o servo? Ele respondeu: O Senhor. A voz prosseguiu: Porque então deixas o Senhor pelo servo e o Príncipe pelo vassalo?” (LTC II,6; AP 6). Ao amanhecer ele retorna a Assis, depois de vender o cavalo e as vestes caras de cavaleiro. Algo o despertou. Volta à casa paterna enfraquecido pelos efeitos da malária, pela humilhação de seu fracasso, deprimido, sem objetivos e sem o prazer que outrora lhe proporcionavam as festas, banquetes e outras extravagâncias. Aguarda respostas, mas só recebe silêncio. Ele se encontrava na batalha mais difícil de sua vida: ele consigo mesmo!

A sua crise existencial chegara ao auge. Talvez tenha se perguntado como o poeta:

“Deus! Ó Deus, onde estás que não respondes?

Em que mundo, em que estrela tu te escondes

Embuçado nos céus?

Há dois mil anos te enviei meu grito

Que embalde, desde então, corre o infinito…

Onde estás, Senhor Deus?”…

(Castro Alves em “Vozes da África”)

Francisco chegara ao fundo do poço.

Talvez o caro leitor esteja se perguntando: o que tem tudo isso a ver com a estigmatização no monte Alverne, em 1224? Mas nada acontece por acaso (cf. Sl 139,1-3).

Em meio a essa batalha pessoal e quando rezava fervorosamente, ele recebeu a resposta: ”Francisco, se queres conhecer a minha vontade, é necessário que desprezes e odeies tudo o que amaste carnalmente e desejaste ter… Alegrando-se nestas palavras e confortado no Senhor, ao cavalgar pelas cercanias de Assis, encontrou um leproso… Desceu do cavalo e ofereceu-lhe uma moeda, beijando-lhe a mão. Depois de ter recebido (do leproso) o ósculo da paz (beijo), montou em seu cavalo e prosseguiu seu caminho. A partir de então, começou cada vez mais a desprezar a si mesmo até chegar de maneira perfeita, pela graça de Deus, à vitória sobre si” (LTC IV,11). Francisco confessa em seu Testamento: “Foi assim que o Senhor concedeu a mim, Frei Francisco, começar a fazer penitência: como eu tivesse em pecado, parecia-me sobremaneira amargo ver leprosos. E o próprio Senhor me conduziu entre eles, e fiz misericórdia com eles…Aquilo que me parecia amargo se me converteu em doçura de alma e de corpo;” (Test 1-3).


Sobre o autor: José Luiz Cruz Duarte, filho espiritual da OFM, Província da Imaculada
Conceição do Brasil, estudou Teologia e Filosofia no ITF, em Petrópolis (RJ), entre 1977 e 1981; Licenciatura em Filosofi a, História e Sociologia pela Faculdade Salesiana de Ciências e Letras, em Lorena (SP), entre 1982 e 1985; Professor no propedêutico Seminário Frei Galvão e Escola Estadual Conselheiro Rodrigues Alves , em Guaratinguetá (SP); irmão da OFS. Autor do livro “O Crucifi xo de São Damião: espiritualidade, história e arte”.

9. HEIDEGGER, M; “O lugar da linguagem simbólica no conhecimento da revelação”; IN https://www. maxwell.vrac.puc-rio.br/18801/18801_5.PDF; P.118.

10. DUARTE, José L.C.; “O Crucifi xo de São Damião: espiritualidade, história e arte”; 2024, p.7.
11. LARRAÑAGA, Inácio; “O Irmão de Assis”; Paulinas; São Paulo 2012; 20ª Ed.; pag.67.

O Memorial da Cruz na Mística Franciscana

Frei Fidêncio Vanboemmel

Introdução

 São Francisco de Assis, no início do seu caminho de conversão, depois de ouvir atentamente a proclamação da Palavra do Evangelho na igrejinha da Porciúncula, exclamou: “É isto que eu quero, é isto que eu procuro, é isto que eu desejo fazer do íntimo do coração[1]. Foi assim que o Pobre de Assis fez do Evangelho o seu projeto de vida e missão. E quanto mais meditava a Palavra, melhor compreendia que havia uma Pessoa que lhe falava a partir do livro dos Evangelhos. Essa Pessoa o atraiu e convidou, o despojou e o revestiu com as vestes da altíssima pobreza que tinha o formato da cruz, isto é, “uma túnica que traz a imagem da cruz[2].

Francisco, muito atento, “não foi um ouvinte surdo ao Evangelho[3], pois seu desejo era “observar por tudo o santo Evangelho[4],  compreendeu que esta Pessoa um dia se encarnou e se fez Pessoa na figura de um Menino pobre, nascido “por nós à beira do caminho[5]. Por isso, encantado, queria vê-lo com os próprios olhos carnais e representá-lo assim: deitado sobre o feno numa pobre manjedoura, envolto em panos entre um boi e um burro, passando por todas as privações como as crianças dos pobres. Foi assim que Francisco, a partir do mistério da Encarnação (Natal), deixou-nos este pilar da espiritualidade franciscana.

Do mesmo modo, na leitura atenta do livro dos Evangelhos, ocorreu o confronto com a outra imagem dessa Pessoa, agora com o rosto ferido e ensanguentado, machucado e desfigurado, crucificado e glorioso que “reina a partir do lenho da cruz[6], sinal maior do Amor de Deus pela humanidade, representado no Crucifixo da São Damião. Assim, a partir do mistério da Cruz e do Crucificado, herdamos de São Francisco de Assis o outro pilar da espiritualidade franciscana, isto é, a Mística Franciscana da Cruz que tem seu ponto culminante na estigmatização no Monte Alverne, nosso ‘calvário franciscano’, cujo memorial celebramos neste ano jubilar.

Neste retiro queremos perfazer o itinerário das manifestações do Crucificado na vida de São Francisco para compreender (interiorizar) o modo como Francisco permitiu que o Cristo Crucificado, há 800 anos, lhe assinalasse com os sagrados estigmas. Queremos fazer deste memorial jubilar não uma simples recordação de um fato pontual passado na vida de Francisco de Assis, mas uma atualização para revivermos em nós o mesmo pacto de fidelidade que havia entre São Francisco e o “livro da Cruz” do Senhor (Evangelho).  Queremos também reavivar em nós a plenitude do mistério da vida de nosso Senhor Jesus Cristo que por nós se fez o Caminho, desde a Encarnação até a Paixão (Morte e Ressurreição/Ascensão). Caminho este que, no Testamento de Santa Clara, assim é apresentado: “O Filho de Deus fez-se para nós o Caminho, que nosso bem-aventurado pai Francisco, que o amou e seguiu de verdade, nos mostrou e ensinou por palavra e exemplo” [7].

Portanto, neste retiro, não podemos deixar em segundo plano a fiel escudeira de Francisco: Clara de Assis! Ela, a seu modo, isto é, na qualidade de filha, esposa, mãe e serva, assimilou o convite de abraçar e apaixonar-se por inteira pelo “amor daquele Deus que pobre foi posto no presépio, viveu pobre no mundo, e ficou nu no patíbulo[8].

Portanto, assim “como Francisco de Assis, também Santa Clara, no seu ardente amor, não se satisfez em ser uma simples presença orante diante de Deus. Ela, transformada e conformada “em tudo a Cristo por uma vida de perfeita imitação da Sua vida”[9], permaneceu sempreno santo serviço do pobre Crucificado… que suportou por todos nós a paixão da cruz”. Este permanecer sempre no santo serviço foi qualidade humano-espiritual que a modelou e nela criou uma unidade em todos os seus atos: a oração, a contemplação, o trabalho, a animação, a formação, o acolhimento e as dores das suas co-irmãs, zelando pela humanidade singular de cada Irmã e formando a comunidade na “unidade do amor mútuo, que é o vínculo da perfeição[10].

  1. A cruz: Um caminho proposto pelo Senhor no Evangelho.

Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e me siga” (Mt 16,24).

A história nos revela que a cruz, na linguagem cristã, é o lenho sobre o qual Jesus foi crucificado, passando a ser o maior sinal e símbolo do Cristianismo. Desde criança aprendemos a traçar sobre nós o sinal/símbolo da cruz como que interiorizando em nós todo o mistério da cruz de Cristo (pelo sinal da santa Cruz)[11]: do Cristo-Mestre que nos convida a segui-lo e nos ensina a fazer o que ele fez; e do Cristo Morto e Ressuscitado que nos concede a graça de renascer a cada dia. A cruz é a própria representação de nosso Senhor Jesus Cristo.

Quem compreende este sinal/símbolo da Cruz, mesmo se revestido da dor que causa medo, acolhe a cruz como um sinal de Deus que se coloca do nosso lado para o nosso próprio bem. Nesta perspectiva, imerso em profunda oração, Francisco busca a mais profunda conformidade com Cristo para poder amar Deus, os irmãos e todas as criaturas. Amando assim, nasce, como veremos, a grande declaração do Tu de Deus, nos Louvores a Deus Altíssimo: Tu és o Senhor onipotente, misericordioso Redentor” , da cruz de São Damião ao Serafim do Monte Alverne.

O caminho da estigmatização se dá na dupla dinâmica: do subir até Ele, com todas as exigências da desapropriação de si mesmo, mas também do descer com Ele para a realidade da pobreza da existência humana. Fazer-se discípulo é acolher e perfazer o caminho de Jesus Cristo, que desceu da glória do Pai e veio ao encontro da realidade da humanidade ferida para nela cumprir a missão suprema do Amor misericordioso de Deus. Esta é a maior “glória” do Filho cuja luz se reflete a partir do Crucificado de São Damião.

O conhecido relato da Perfeita Alegria nos ensina que o caminho para se encontrar a verdadeira alegria, isto é, o tesouro escondido no campo, que nos levou a vender tudo e para comprar aquele campo, segue as exigências do caminho da cruz:  “Mas na cruz da tribulação de cada aflição nós nos podemos gloriar, porque isto é nosso e assim como diz o apóstolo: Não me quero gloriar, senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo[12].

  1. a) Evangelho

Cristo, ao longo da sua vida, dedicou-se inteiramente ao cumprimento da missão do Pai, cujo programa foi solenemente proclamado na sinagoga de Nazaré: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para anunciar aos prisioneiros a libertação, aos cegos a recuperação da vista, para pôr em liberdade os oprimidos e para anunciar um ano de graça do Senhor” (Lc 4, 18-19). E acrescenta: “Hoje se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir” (v. 21). Jesus, começando entre o seu povo de Nazaré, expôs sem medo a sua missão. Veio para dizer que Deus vem ao encontro de todas as pessoas de todos os tempos e lugares, na situação concreta em que cada um se encontra, portanto, no seu “hoje”. Mas ele quer partilhar esta sua missão com seus discípulos e lhes deixa a exigência fundamental para o seguimento. Assim encontramos passagens onde Jesus faz referência à cruz: [13]

  • “Quem não toma a sua cruz e não me segue, não é digno de mim” (Mt 10,38);
  • Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e me siga” (Mt 16,24);
  • “Se alguém quiser seguir-me, negue-se a si mesmo, tome a cruz cada dia e me siga” (Lc 9, 23);
  • “E quem não carrega a sua cruz e me segue, não pode ser meu discípulo”(Lc 14,27).

Jesus Cristo levou necessariamente (é necessário) este plano salvífico até às últimas consequências na paixão, mas com a promessa da Ressurreição. Pedro, por exemplo, procurou chamar Jesus à parte, dizendo “Deus não permita, Senhor, que isso aconteça” (Mt 16,22) ou “Pedro se pôs a repreendê-lo” (Mc 8,32). Assim, “quando a ressurreição de Jesus foi plenamente iluminada e esclarecida pelo Espírito Santo no Pentecostes, é que os apóstolos conseguiram compreender que a cruz não havia sido obstáculo ao cumprimento de sua missão”[14].

  1. b) A voz do apóstolo Paulo

Da mesma forma as primitivas comunidades cristãs foram instruídas por Paulo, o Apóstolo dos gentios, acerca da glória da cruz de Cristo:

  • “Quanto a mim, não pretendo jamais gloriar-me a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” (Gl 6,14-15);
  • “Pois Cristo não me enviou para batizar, mas para evangelizar, e não em sabedoria de palavras, para que não se desvirtue a cruz de Cristo. Porque a doutrina da cruz é loucura para os que se perdem, mas é poder de Deus para os que se salvam” (1Cor 1,17-18);
  • “Na realidade, pela Lei eu morri para a Lei a fim de viver para Deus. Estou pregado à cruz de Cristo. Eu vivo, mas já não sou eu, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,19-20);
  1. d) A história da Igreja

A doutrina da Cruz, símbolo cristão (catequese e liturgia batismal), teve forte difusão na Igreja Primitiva, particularmente a partir do séc. III.  Por exemplo: ao traçar o sinal da cruz sobre o nosso corpo, estamos afirmando pelo menos três verdades fundamentais de nossa fé: Deus, que é Uno e Trino; a Encarnação de Jesus e a Morte na Cruz. Os catecúmenos, no início do catecumenato, recebiam o livro da Palavra e eram assinalados com a cruz de Cristo.

A devoção à Santa Cruz teve seu crescimento ao longo dos séculos (S. Atanásio, S. João Crisóstomo, Sto. Ambrósio, St. Agostinho), e popularizou-se na profissão monástica, “entendida como um segundo batismo – viver crucificado com Cristo diante do mundo do pecado, com a participação plena na alegria e na paz do Senhor Ressuscitado”[15]. A vida monástica define-se pela escolha de um modo de vida implicitamente crítico em relação à sociedade de consumo (sair do século). Não é uma fuga, mas um despojar-se de si mesmo para tomar a cruz e seguir o Cristo.

O próprio hábito monástico foi uma forma de compreender que o monge tem o dever de levar continuamente a cruz de Cristo. Nesse sentido é interessante observar a afirmação de Frei Tomás de Celano acerca da troca de vestes no processo da conversão de São Francisco: “Desde então, prepara para si uma túnica que traz a imagem da cruz para nela expulsar todas as fantasias demoníacas; prepara-a muito áspera para nela crucificar a carne com seus vícios e pecados; prepara-a, finalmente, paupérrima e grosseira, para que de maneira alguma possa ser desejada pelo mundo” (1Cel 22,6-8)[16].

Na medida que a vida monástica se aprofundava no mistério da cruz, a devoção popular se manifestava nas reproduções de cruz, particularmente na arte. A cruz passa a ser símbolo e sinal de cura e proteção, de assegurar as bênçãos de Deus, até para a fertilidade da terra. Esta devoção popular teve seu crescendo a partir da festa da  Exaltação da Cruz[17]  (primeiro no Oriente, depois no Ocidente).

Nos séculos XII a XV temos o período áureo e fecundo da doutrina da cruz, com belas reflexões: na literatura temos Sto. Anselmo, Guilherme de Saint-Thierry, São Tomás, S. Bernardo, S. Boaventura; e na arte, por exemplo, as pinturas de Fra Giovanni da Fiesole ou simplesmente Frei Angélico (+1445). Em todos eles percebemos o olhar profundo para a humanidade de Cristo, a compaixão por Cristo padecente e sofredor que culminou com o surgimento da Via-Sacra (no sec. XVII – o Papa Inocêncio XI permitiu aos franciscanos colocarem as estações da Via Sacra nas suas igrejas para poder imitar a experiência que viviam os frades nas ruas de Jerusalém). Período em que se dá a propagação da devoção ao Sagrado Coração de Jesus[18].  Os frades, durante o séc. XV, como eles eram guardiães dos lugares santos, começaram a fazer a propagação da via dolorosa em suas igrejas, junto aos conventos, erguendo estações de via-sacra.

Impressiona-nos que, dentre os Escritos de São Francisco, o Ofício da Paixão do Senhor[19] é o que mais está impregnado da mística da cruz. Cada Salmo, retalho de outros salmos e textos bíblicos, forma uma cena ou um quadro cristológico, emoldurado pelas orações iniciais e final. A cena, como em forma de slides, se muda a cada hora canônica, onde o orante é por excelência o próprio Cristo: Horto das Oliveiras, oração no Getsêmani (Salmo I); Encontro noturno no sinédrio (Salmo II); interlúdio matinal (Salmo III); Jesus no pretório de Pilatos (Salmo IV); Oração dolorida a partir da cruz (Salmo V); Passagem deste mundo para o Pai (Salmo VI); Aclamação pascal da vitória de Cristo (Salmo VI); Oração ao Senhor salvador, para que não tarde (Salmo VIII); O cântico novo no dia do Senhor (Salmo IX); Grito de louvor (Salmo X); Esperança em Deus (Salmo XI); Súplica ao Senhor e confiança Nele (Salmo XII); Canto de confiança ao Senhor vencedor (Salmo XIII); Confiança em Deus que levará a cumprimento seu plano salvador (Salmo XIV); Exultação pela mistério do nascimento de Jesus (Salmo XV).

  1. A documentação sobre o evento dos Estigmas nas Fontes Franciscanas[20]

            Entre os escritos pessoais de São Francisco não encontramos nenhuma referência ao fato da estigmatização, nem sequer no Testamento, o úlimos dos seus escritos. Por outro lado possuímos um escrito autografado por Francisco no chamado “Bilhete para Frei Leão” no qual encontramos dois textos: os Louvores a Deus Altíssimo e a Bênção a Frei Leão.

2.1. A Chartula de São Francisco a Frei Leão (Benção e Louvores a Deus Altíssimo)

Os Louvores a Deus Altísismo, afirma C. Vaiani, “pode ser considerada o eco orante de Francisco diante do dom inesperado dos estigmas”[21]. Neste mesmo bilhete possuímos as observações providenciais de Frei Leão:

“Dois anos antes de sua morte o bem aventurado Francisco fez a Quaresma no Monte Alverne, em honra da bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus, e do bem-avenurado São Miguel Arcanjo, desde a festa da Assunção da Santa Virgem Maria até a festa de São Miguel em setembro. E fez-se sentir sobre ele a mão do Senhor: depois duma visão e colóquio com um Serafim, e impressão dos estigmas de Cristo no seu corpo, compôs estes Louvores e os escreveu de próprio punho no verso desta cártula, rendendo gaças ao Senhor pelo benefício recebido”. 

E depois da palavra paz, a mesma mão escreve: “O bem-aventurado Francisco escreveu esta bênção de próprio punho para mim, Frei Leão”.

E no final, sob o sinal do Tau: Igualmente desenhou ele de próprio punho este sinal T (tau) com a cabeça.

2.2. A Carta Encíclica de Frei Elias sobre a morte de São Francisco:

Depois de anunciar com profunda dor a morte do pai Francisco, Frei Elias contrapõe à dor o anúncio de uma grande alegria: “anuncio-vos uma grande alegria e a novidade de um milagre. Nunca se ouviu dizer no mundo tal sinal, a não ser realizado no Filho de Deus, que é o Cristo Senhor. Não muito tempo antes da morte, nosso irmão e pai apareceu crucificado, trazendo em seu corpo as cinco chagas que são verdadeiramente os estigmas de Cristo. Suas mãos e pés tinham como que as perfurações dos cravos, traspassadas de ambas as partes, conservando as cicatrizes e deixando ver o negrume dos cravos. Seu lado apareceu transpassado por uma lança e muitas vezes fazia jorrar sangue” (CtFE 15-19).

2.3 – A Vida Primeira de Frei Tomás de Celano:

Assim como Frei Elias, que coloca os estigmas dentro do mistério da morte de São Francisco, Frei Tomás de Celano apresenta pela primeira vez a descrição do episódo do Alverne. Assim, o episódio do Alverne e o lamento dos frades sobre o corpo de São Francisco, se tornam para os biógrafos seguintes dois lugares obrigatórios para afrontar o tema dos estigmas.

O episódio do Alverne, aliás, assume um lugar significativo no todo da estrutura de Vida de São Francisco de Assis; a primeira parte da Vida culmina com o relato do Natal de Greccio (1Cel 1-87) e a segunda parte (1Cel 88-118), que abraça os dois últimos anos da vida de São Francisco, parte do Alverne e culmina com a morte na Porciúncula.

A estrutura do episódio da Estigmatização:

  1. O retiro de São Francisco num lugar de recolhimento e silêncio, com seu desejo de cumpir inteiramente a vontade do Pai celeste e a tríplice abertura do livro do Evangelho que sempre recai sobre o mistério da paixão de Jesus (cf. 1Cel 92-93);
  2. A visão de um homem em forma de serafim (1Cel 94);
  3. Reação de Francisco com termos conrapostos: elegria e terror; triste e alegre; alegria e amargura;
  4. aparecimento dos sinais dos cravos (1Cel 94-95)
  5. As testemunhas das feridas (Elias e Rufino) (1Cel 96)

O segundo momento de refexão sobre os estigmas de São Francisco foi oferecido a Tomás de Celano quando descreve o lamento dos frades e do povo sobre o corpo de São Francisco. Se trata de todo um capítulo que podemos ler em 1Cel 112-115, com relato mais preciso dos estigmas de São Francisco. Os temas aqui propostos por Celano são: a novidade do prodígio; a beleza do corpo de Francisco morto, presságio da resurreição; a providente graça de Deus que renova seus milagres para confortar os frágeis; uma longa reflexão sobre o significado alegórico do Serafim (seis asas correspondetes a virtudes; e se conclui com a descrição da conformidade de Francisco com Jesus Cristo, que explica o significado dos estigmas  (1Cel 115).

Também a oração conclusiva do segundo livro da Primeira Vida (1Cel 118) faz a última referência aos estigmas: “Eis, ó santíssimo e bendio pai, que te acompanhei com devidos e dignos louvores […] Apresenta, ó pai, a Jesus Cristo, Filho do Pai supremo, os sagrados estigmas dele e, por conseguinte, mostra-lhe os sinais da cruz – do lado, das mãos e dos pés -, para que ele se digne misericordiosamene mostrar as próprias chagas ao Pai que, na verdade, por causa disto sempre há de compadecer-se de nós miseros, Amém

2.4 – Segunda Vida de Celano:

O episódio dos estigmas é lembrado na narrativa da Cruz de São Damião (2Cel 10-11) e no desejo de Francisco de não revelar a ninguém este mistério (2Cel 135-139) e um aceno por conta da devoção do Santo (2Cel 203) como pleno cumprimento do encontro com o Crucifixo, lugar da glória, só realmente compreensível por quem experimentou.

2.4 – Tratado dos Milagres (3Celano):

Dedica um inteiro capítulo (3Cel 2-13), relatando em primeiro lugar o relato da aparição do serafim o Alverne e o desenvolvimento de uma reflexão sobre o tema da cruz, isto é, a acentralidade da cruz na vida de São Francisco: “Todo o empenho do homem de Deus, quer em público quer em particular, dirigia-se para a cruz do Senhor”, e antecipa as etapas das aparições da cruz narradas por São Boaventura, na Legenda Maior.

2.5 – A Legenda Maior de São Boaventura

Frei Boaventura concentra sua reflexão sobre os estigmas no cap. XIII da Legenda Maior, que aqui chega ao ponto culminante. Boaventura faz uma releitura biográfica de São Francisco com diversas manifestações da cruz e que culmina no episódio dos estigmas no Monte La Verna. Os estigmas falam da cruz e a cruz é, segundo Boaventura, a chave interpretativa de São Francisco. Repete o esquema de Tomás e Celano:

  1. Retiro sobre um monte excelso
  2. Tríplice abertura do Evangelho
  3. Visão do serafim
  4. Realização de Francisco: alegria e tristeza
  5. Aparições dos sinais dos cravos
  6. O segredo do Senhor (Francisco relata a Frei Iluminado a aparição do Crucificado)
  7. Aprofunda a descida do monte (novo Moisés que carrega as esfígies de Cristo)
  8. Fala também do pranto dos frades sobre o corpo de Francisco (verificação) LM XIV, 1-5

Característica de São Boaventura: a estigmatização é a confirmação (o selo) de uma vida de santidade e das obras de São Francisco. Aproxima, assim, a Regra e os estigmas (conf. LM IV,11). No prólogo (LM Prol 2) Francisco é o anjo do 6º selo, que é confirmado pelos estigmas do santo.

2.6 – Os Fioretti

No filal do relato dos Fioretti o tema dos estigmas é desenvolvido nas “cinco considerações sobre o sagrados estigmas”.

1ª) Subida ao Monte Alverne – como novo Moisés.

2ª) Os preparativos no Monte Alverne;

3ª) A abertura do livro do Evangelho e a oração das duas graças;

4ª) Retorno de São Francisco a Santa Maria da Porciúncula, com os milagres dos esgitmas;

5ª) Várias visões de diversos frades.

As outras biografias e legendas pouco ou nada falam: LTC; AP, LP. CA

3.O itinerário de Francisco de Assis, assinalado pela cruz

As Fontes Franciscanas nos oferecem um farto material para o estudo e a meditação da temática da Cruz e a consequente Estigmatização na vida de São Francisco. Como abordar a riqueza desse material? Quais caminhos e textos nos podem orientar? Com tanta riqueza de textos que encontramos nos chamados “Escritos” e “Fontes Biográficas” (Vidas e Legendas), sirvo-me com liberdade de todos, porém me guiarei pela Legenda Maior de São Boaventura, capítulo XIII, que traz como título: “Os sagrados estigmas.

No início deste capítulo, o Doutor Seráfico, S. Boaventura, afirma: “Francisco, o homem angélico, tinha o costume de nunca deixar de fazer o bem, mas, pelo contrário, à semelhança dos espíritos celestes na escada de Jacó, ora subia a Deus ora descia ao próximo. Aprendera, pois, a dividir tão prudentemente o tempo que lhe fora concedido para seu mérito que gastava um tempo às laboriosas conquistas do próximo e dedicava outro aos tranquilos arroubos na contemplação” (LM XIII,1).

Francisco, na incansável busca do bem, deixa-se guiar pela exigência evangélica de “abraçar a cruz”. Permite a Cruz lhe falar, faz da Cruz seu livro-guia, chora o amor não correspondido do Crucificado, aceita sentir em seu corpo a dor das chagas e se encanta pela glória do Crucificado que reina a partir do lenho da cruz e diante do qual elabora a sua primeira oração: “Altíssimo, glorioso Deus, iluminai as trevas do meu coração, dai-me uma fé reta, uma esperança certa e caridade perfeita, sensibilidade e conhecimento, ó Senhor, a fim de que eu cumpra o vosso santo e veraz mandamento”.  

3.1 – A Cruz, proposta de conversão (‘volta’) e caminho a ser abraçado.

Francisco de Assis, como os cristãos do seu tempo, conheceu a espiritualidade da cruz, fortemente presente na mística das Cruzadas que significava morrer como mártir, no combate pela fé cristã para resgatar a Terra Santa, que estava sob o domínio islâmico. O termo “cruzada” se refere à cruz que os cavaleiros usavam em suas roupas quando estavam em marcha da Europa até o Oriente.

No ímpeto de lançar-se nesse combate, associado ao sonho de glórias da nobreza, eis que um estranho sonho alterou os planos de Francisco, de passagem e pernoite na cidade de Espoleto, a caminho das guerras na Apúlia. Sonho estranho: um castelo cheio de escudos, assinalados com as armas da cruz, de onde uma voz misteriosa o interpelou a retornar para Assis: “volta para a terra em que nasceste…” (2Cel 6).

São Boaventura, na Legenda Maior, descreve Francisco como o “valente soldado de Cristo” (LM XIII,9) que, estigmatizado pelo Sumo Pontífice Cristo, traz em seu corpo os sinais certíssimos que confirmam que a nova batalha empreendida valeu a pena. Esse itinerário apresenta seu ponto de partida na primeira visão que tiveste”, para ser o futuro “comandante na cavalaria de Cristo”.

1.a) A nova cavalaria na primeira visão da cruz

“Agora foi verdadeiramente realizada a primeira visão que tiveste, a saber, que como futuro comandante na cavalaria de Cristo deverias ser honrosamente condecorado com as armas celeste e com o sinal-da-cruz (LM XIII, 10,1)

O episódio da primeira visão vem detalhada no primeiro capítulo da Legenda Maior, quando o Doutor Seráfico descreve o modo de vida de São Francisco no hábito secular (cf. LM I,3)[22]. A volta para a “tua terra”, segundo Boaventura, “prefigura um cumprimento espiritual a realizar-se em ti não por disposição humana, mas por disposição divina”.  E assim ele volta para Assis, humanamente fracassado como nas outras perdas (prisão em Perusa), porém “sereno e alegre, e, tornando-se já modelo de obediência, aguardava a vontade do Senhor”.  Portanto, há uma nova batalha pela frente, um novo caminho a ser trilhado, sem as certezas das seguranças humanas (vende o cavalo, dá as suas armaduras a um cavaleiro pobre).

1.b) A visão e o mandato do Crucificado

Crê-se que foram verdadeiras, de acordo com o que confirmaste com a tua palavra sagrada, a visão do Crucificado – vem no início da tua conversão – a qual te traspassava espiritualmente com a espada de dor compassiva, como também a audição da voz que procedia da cruz como de sublime trono e do secreto propiciatório de Cristo” (LM XIII, 10. 2). 

Derrotado, sem ter ido à batalha, Francisco regressa a Assis, repito, sem as armas das seguranças humanas, para abraçar a nova batalha que estava por vir. Encontrando-se de volta em Assis, começa a indagar-se qual seria este “querer de Deus”. Os hagiógrafos nos relatam que certo dia, ao entrar numa igrejinha para indagar o querer desse estranho Senhor, ouviu novamente a voz que veio do Crucificado (imagem do Cristo da Cruz de São Damião) que propôs uma nova missão: “Vai, Francisco, restaura a minha Igreja que, como vês, está em ruínas”.

Os “MEMORIAIS” dos biógrafos (2Cel 10; 3Cel 2; LM II,1; LTC 13) são ricos em detalhes, em impressões e experiências vividas na primitiva fraternidade minorítica. Nenhum deles estava presente naquele momento. Porém, há um fato histórico que originou e possibilitou os frades a fazerem “memória” daquilo que Francisco fez memória, já no final da vida, ao ditar o seu Testamento que é “uma recordação, uma exortação e o meu testamento  que eu faço por vós (Test 34): “O Senhor me deu tanta fé nas igrejas que simplesmente orava e dizia: “Nós vos adoramos, Senhor Jesus Cristo, aqui e em todas as vossas igrejas que há em todo o mundo, e vos bendizemos, porque, pela vossa santa cruz, remistes o mundo” (Test 5).

  • 2Cel 10: Reverência ao Crucificado (o Senhor); o crucificado fala-lhe; chama-o pelo nome; prepara-se para obedecer; entrega-se totalmente ao mandato; sentiu uma mudança em si mesmo; grava-se na sua santa alma a compaixão do Crucificado.
  • 3Cel 2: Evidencia o milagre dos Estigmas e descrevendo Francisco como “homem novo” que acolhe as palavras do Crucificado (fala da cruz que lhe marca o coração). Por isso ele se encerra na cruz pelo hábito de penitência (em forma de cruz), conveniente ao servo da pobreza. Sua mente se havia revestido do Senhor Crucificado para que seu corpo se revestisse da cruz de Cristo.
  • LM II,1: Uma igreja de campo ameaça ruir; dentro dela o Crucificado; Francisco prostra-se e fica repleto de consolação do espírito; olhos lacrimosos, atentos à cruz do Senhor; ouve com seus ouvidos corporais uma voz vinda da cruz três vezes; mandato: “restaura minha casa que, como vês, está toda destruída; Francisco fica estupefato por ter ouvido tão admirável voz, percebendo com o coração a força da palavra divina; prepara-se para obedecer; recolhe todas as forças ao mandato de restaurar a Igreja que Cristo adquiriu com seu sangue; levantou-se munido com o sinal da cruz…
  • LTC 13: Na proximidade de São Damião foi-lhe dito em espírito que entrasse para a oração; rezou com fervor diante do Crucificado que piedosa e benignamente falou: “Francisco, não vês que minha casa está destruída”? Restaura-a para mim! Fá-lo-ei de boa vontade. Repleto de luz, entendeu que o Crucificado lhe tinha falado... faz arder a lâmpada diante do Crucificado.

Em São Francisco as ‘marcas’ da estigmatização se consolidam num permanente itinerário de vida e chega ao seu ponto culminante na “quaresma” vivida no Monte Alverne, em 1224. Da mesma forma como Francisco fez o seu itinerário de configuração com Cristo que passa pela visão, audição e acolhimento do mandato e martírio, assim também podemos compreender Santa Clara quando ela exortou Inês de Praga e todas as Irmãs a percorrerem o mesmo caminho:  começa pela visão (OLHE) do Crucificado, passa pela audição (escuta – CONSIDERE) e chega ao acolhimento do mandado do Crucificado (CONTEMPLE – sair/descer transfigurado)[23]. 1.c) A Cruz na missão (pregação)

Frei Tomás de Celano, narrando a decisiva iluminação que São Francisco de Assis teve, provinda da escuta e do entendimento do Evangelho na igrejinha da Porciúncula[24], confirma sua radical decisão exultado de contentamento: “É isto que eu quero, isto que procuro, é isto que desejo fazer do íntimo do coração”. E como penitente de Assis, não se fazendo um ouvinte surdo do Evangelho, mais uma vez celebra a troca da veste, ou seja, despe-se para revestir uma túnica que traz a imagem da cruz. Não é troca de pano, mas mudança de atitude interior que vem carregada do vigor da cruz, e para isso não importava se o hábito estivesse remendado por fora ou por dentro:

E os que já prometeram obediência tenham uma túnica com capuz e, se quiserem, outra sem capuz. E os que forem obrigados por necessidade poderão trazer calçados. Todos os irmãos usem vestes pobres, podendo, com a bênção de Deus, remendá-las de burel e outros retalhos de pano. Eu os admoesto e exorto a que não desprezem nem julguem os homens que virem usar vestes delicadas e coloridas, tomar alimentos e bebidas finas, mas, antes, julgue e despreze cada qual a si mesmo (RB II 14-17) [25].

Frei Tomás de Celano, no Tratado dos Milagres, assim nos relata, antecipando as etapas das aparições de cruz narradas por São Boaventura, na Legenda Maior [26]:

“Encerrando-se ele na própria cruz, adotou um hábito de penitência que mostrava a forma da cruz. Tal vestimenta lhe convinha enquanto servo da pobreza e, mais ainda, convinha no seu propósito. Contudo o santo provou nela o mistério da cruz para que, como sua mente havia se revestido do Senhor Crucificado, da mesma forma, exteriormente, seu corpo se revestisse da cruz de Cristo” (3Cel 2).  

E na sequência diz Celano: “Com grande fervor de espírito e alegria da alma, começou a pregar a todos a penitência […] Começou a pregar onde no início, quando criança, aprendera a ler e nesse lugar foi primeiramente sepultado” (1Cel 23).

A “pregação penitencial” iniciada por Francisco nada mais é do que a resposta obediencial ao mandato evangélico de ir pelo mundo para pregar a penitência (evangelho) a todas as criaturas. Este mandato, pouco tempo depois, quando Francisco foi a Roma com seus primeiros companheiros a fim de pedir a permissão ao Papa Inocêncio III de viver aquela forma de vida na Igreja, foi confirmado pela Igreja. E o Papa, depois de abençoá-los, confirma: “Irmãos, ide com o Senhor e pregai a todos a penitência, como o Senhor se dignar inspirar-vos (1Cel 32,7).

Esta pregação penitencial começou a edificar os ouvintes porque, antes de propor a palavra de Deus, Francisco começava pela saudação da paz: “O Senhor vos dê a paz”, fazendo com que “as pessoas que odiavam a paz, abraçassem de coração a salvação e a paz, tornando-se também eles filhos da paz e desejosos da salvação eterna” (1Cel 23,8). E aos que foram aderindo ao projeto evangélico de Francisco, como Frei Bernardo, abraçavam a “legação da paz” (cf. 1Cel 24,2)[27] no despojamento total para se revestirem das exigências evangélicas (cf. 1Cel 24,5). Nasce assim a dádiva da fraternidade, como mais tarde recorda no Testamento: “O Senhor me deu irmãos” (Test 14). Na conversão de Frei Bernardo, cada irmão provoca em Francisco um grande júbilo, cada irmão que chega é presença e ação do Senhor, cada irmão, na sua conversão pessoal, significava ao Poverello acolher “um grande homem”, um “companheiro necessário” e um “amigo fiel” (cf. 1Cel 24,8)[28]. Aos pés do Crucificado nasce, cresce e se expande a fraternidade.

Estes primeiros irmãos que se identificavam como “penitentes da cidade de Assis” (AP 19,11), que não fizeram da pobreza um fardo, antes, se tornaram pobres para cumprir o conselho do Senhor (cf. AP 21,6), andavam pelo caminho pregando e orando a Oração do Senhor e a oração de adoração à cruz (1Cel 45), uma vez que não estavam munidos dos livros litúrgicos. Foleavam assim, dia e noite, “o livro da cruz de Cristo, instruídos pelo exemplo e palavra do pai que frequentemente lhes fazia um sermão sobre a cruz de Cristo” (cf. LM IV,3)[29].

1.d) Cruz de Frei Silvestre

Continuando o “itinerário” de São Boaventura, lemos:

“Crê-se e afirma-se que foram vistos por revelação celeste e não por fantástica visão – já no desenrolar de tua vida – a cruz que Frei Silvestre viu procedendo admiravelmente de tua boca…” (LM XIII,10.3)

Se Francisco “frequentemente lhes fazia um sermão sobre a cruz de Cristo”, como interpretar o testemunho de Frei Silvestre assim narrado no Tratado dos Milagres (ou 3Cel): “Frei Silvestre, um de seus primeiros frades, homem de todo consumado pela disciplina, viu sair da boca de Francisco uma cruz dourada que abrangia maravilhosamente, na extensão de seus braços, todo o universo? ” (3Cel 3,1)[30].

Existem dois escritos que exempleficam os ensinamentos de São Francisco acerca da Cruz do Senhor: A quinta Admoestação e o relato da Perfeita Alegria. Francisco, nos dois textos, convida a fraternidade itinerante a pôr a atenção (o foco) na “glória do Senhor” revelada na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, como se conclui o relato da Perfeita Alegria nos Fioretti: “Que tens tu que não o hajas recebido de Deus? E se dele recebeste, por que te glorias como se o tivesses de ti? Mas na cruz da tribulação de cada aflição nós nos podemos gloriar, porque isso é nosso e assim diz o Apóstolo: ‘Não me quero gloriar, senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo’” (Fior 8).

1.e) A cruz na visão de Frei Pacífico:

 “As espadas a modo de cruz que o santo Frei Pacífico viu transpassando as tuas vísceras” (LM XIII,3).

Em 3Cel 3, 4-5 lemos que “o sinal do Tau lhe era familiar acima de todos os outros: utilizava-o como única assinatura para suas cartas e pintava-lhe a imagem nas paredes de todas as celas. Frei Pacífico, homem de Deus, agraciado por visões celestes, viu com os olhos do seu corpo um grande Tau, com vários raios dourados, brilhando sobre a fonte do bem-aventurado Francisco”.

É o que constatamos no Bilhete dado a Frei Leão, após a estigmatização no Monte Alverne, com a Bênção e os Louvores a Deus Altíssimo. No bilhete o próprio Frei Leão fez esta observação: “Igualmente desenhou ele de próprio punho este sinal T (tau) com a cabeça. Da mesma forma, segundo a tradição, o Tau assinalado na Capela da Madona (Madalena) em Fonte Colombo, foi desenho de Francisco que no Tau, sinal bíblico de redenção[31], foi retomado por São Francisco como seu selo. No Tau via a cruz de Cristo.

1.f) A cruz na visão de Frei Monaldo

“… também a ti elevado em forma de cruz, quando Santo Antônio pregava sobre o título da cruz, conforme o que viu o angélico Frei Monaldo. (LM XIII,10.4).

A narrativa que apresenta Francisco elevado em forma de cruz na pregação de Santo Antônio nos deixa entrever que a missão evangelizadora (pregação) também recai sobre a fraternidade. Lemos na Regra que todos os irmãos são pregadores por vocação e todos podem, com a bênção de Deus, fazer a exortação e lauda ao povo de Deus (cf. RnB XXI). Mas há também aquela pregação douta e doutrinária que era conferida aos prelados (bispos) e teólogos. Na pequena carta de Frei Francisco a Frei Antônio, ele o chama de “meu bispo[32] porque reconhece a capacidade teológica de Frei Antônio, seja para o ensino da Sagrada Teologia, como também para o ofício da Pregação.

Em 1216, na carta de Gênova, Jacques de Vitry depois de elogiar o nascente movimento franciscano, tece também suas críticas “aos prelados que são cães mudos incapazes de ladrar[33].

Muito significativo é o relato de Frei Tomás de Celano acerca dos frades reunidos no Capítulo, com a presença de Frei Antônio:  “Havia entre eles um irmão sacerdote, celebre de fama, mais célebre pela vida, de nome Monaldo, cuja virtude, fundada na humildade, auxiliada por oração frequente, era protegida pelo escudo da paciência. Estava também presente naquele Capítulo Frei Antônio, cuja inteligência o Senhor abriu para compreender as Escrituras e proclamar no meio de todo o povo as palavras de Jesus, palavras mais doces que o mel e o favo. Como pregasse com muito fervor e devoção aos irmãos aquela palavra: JESUS NAZRENO REI DOS JUDEUS, o mencionado Frei Monaldo olhou para a porta da casa em que os irmãos estavam reunidos, e viu lá com os olhos corporais o bem-aventurado Francisco elevado no ar com as mãos estendidas como em cruz a abençoar os irmãos. Todos pareciam também repletos da consolação do Espírito Santo e, a partir da alegria concebida da salvação, puderam crer no que ouviram sobre a visão e presença do gloriosíssimo pai” (1Cel 48,7-10)[34].

1.g) – Chagado no Alverne

“Finalmente, já perto do fim, são-te mostradas simultaneamente a sublime semelhança do Serafim e a humilde imagem do crucificado a inflamar-te interiormente e a marcar-te exteriormente como de um outro Anjo que sobe do Oriente – de modo a teres em ti o sinal do Deus vivo -, e dão firmeza de fé às coisas preditas e delas recebem o testemunho da verdade. Eis que, tendo sido admiravelmente apresentadas e mostradas em ti e com relação a ti as sete aparições da cruz de Cristo segundo a ordem do tempo, chegaste como que por seis degraus a este sétimo no qual finalmente repousas. Pois a cruz de Cristo, proposta e assumida no início da tua conversão – e daí em diante carregada continuamente em ti no decorrer da tua vida por meio de uma vida provadíssima e demonstrada como exemplo aos outros – mostra com clareza que tu finalmente concluíste o ápice da perfeição evangélica…”[35].

São Boaventura relata que na quaresma de Francisco no Monte Alverne o “verdadeiro amor de Cristo transformou o amante na própria imagem do amado” (LM XIII,5). Se o “porto mais seguro dele (Francisco) era a oração, não sendo de um só momento, nem vazia ou presumida, mas demorada e cheia de devoção, serena na humildade” (1Cel 71,6), certamente dessa forma contemplou a Paixão de Cristo àabertura do livro do Evangelho” (ML XIII,2). E mais uma vez, como de costume, busca nova revelação de Cristo para aquele momento tão significativo: “na proximidade da festa da Exaltação da Santa Cruz (LM XIII,3).

Ao longo de todo o Capítulo XIII da Legenda Maior, Francisco recebe vários adjetivos que qualificam a sua ação na dinâmica do relato, ou evidenciam o itinerário espiritual do Pobre de Assis:

  • O homem angélico” que investiga a vontade de Deus (tríplice abertura do livro do Evangelho – em nome da Trindade – se lhe apresenta a paixão do Senhor);
  • O homem de Deus”: proximidade entre o Serafim e Francisco (alegria e tristeza, amor e dor). Permite Deus estar próximo. O quero perto de mim.
  • O amigo de Cristo”: por ser amigo, reconhece que deveria transformar-se no Amado (semelhança do Cristo Crucificado).
  • O servo de Cristo”: Não se vangloria das chagas. Por isso pede ajuda à fraternidade acerca da dúvida e Frei Iluminado de nome e pela graça, o orienta;
  • O santo homem”: não pode esconder os talentos do Senhor, mesmo se ele dissesse: “o meu segredo é para mim”. O mistério de Deus, mesmo se o escondemos, ele tem o poder de manifestar-se, como vemos na sequência do relato (clareia, cura e une);
  • O amante”: quem é? É aquele que realmente transforma-se na imagem do Amado (S. Clara: olhe dentro desse Espelho todos os dias e transforma-te inteira). O amante tem a capacidade de tornar o seu coração “ferido e enternecido ao lembrar-se da Paixão do Senhor, sempre enquanto viveu, levava em seu coração os estigmas do Senhor Jesus” (LTC V,14). O coração não esquece seu verdadeiro amor!
  • O homem angélico” agora desce do monte, trazendo consigo a imagem do Crucificado. Se antes não se cansava na busca do bem, agora, descansado, este ‘homem angélico’ pode descer na certeza de que a luta empreendida valeu à pena, foi heroica, foi divina, combatida na mesma fé e certeza do apóstolo Paulo: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé” (2Tm 4, 7-8).
  • O santo homem”: desce do Alverne mostrando a tríplice operação de quem foi estigmatizado pelo Serafim (permitiu abrasar-se, inflamar-se,  santificar-se): Por isso, pela força dos estigmas, ele purifica, ilumina e inflama[36].
  • O valorosíssimo cavaleiro de Cristo”: empunha as armas, carrega o estandarte com o selo do Sumo Pontífice Cristo (o sonho da cavalaria culminou com a estigmatização).
  • 4. As interpelações do crucificado 

São Boaventura narra que Francisco, após tirar o livro dos Evangelhos do altar e por três vezes se deparar com a Paixão do Senhor, “compreendeu que como havia imitado a Cristo nos atos da vida, assim devia ser conforme a ele nas aflições e dores da paixão, antes de passar deste mundo. E embora já fosse frágil de corpo por causa da muita austeridade da vida passada e do contínuo carregar a cruz do Senhor, não se amedrontou de modo algum, mas animou-se mais vigorosamente a suportar o martírio. Na verdade, cresceu nele insuperável incêndio de amor ao bom Jesus…” (LM XIII, 2, 3-5).

São Francisco não se intimidou diante da Cruz:

– Aprendeu, ampliou e com frequência repetia a antífona litúrgica rezada ao longo do caminho: “Nós vos adoramosporque pela vossa Santa Cruz remistes o mundo.

– Abraçou com coragem as provocações do Divino Mestre: “Se alguém me quiser seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e me siga” (Mt 16,24).

– Rendeu graças ao “Onipotente, santíssimo, altíssimo e sumo Deus” porque pelo seu Filho, nascido da Virgem Maria, somosredimidos por sua cruz” (RnB XXIII, 3).

Convidou os Penitentes a contemplarem a totalidade do mistério de Cristo, desde a Palavra encarnada até o mistério da Paixão, quando Cristo se colocou por inteiro na obediência à vontade do Pai, nesta síntese cristológica: “A vontade do Pai foi esta: que seu Filho bendito e glorioso, que nos deu e que nasceu por nós, se oferecesse a si mesmo, através de seu próprio sangue, como sacrifício e hóstia no altar da cruz; não para si mesmo, por quem foram feitas todas as coisas, mas pelos nossos pecados, deixando-nos o exemplo para que sigamos suas pegadas” (2CtFi 11-13)[37].

4.1 – Ilumine o meu coração a fim de que eu possa cumprir…

Contemplando e meditando o mistério da Cruz, Francisco não apenas pediu que o Crucificado lhe iluminasse o coração no início da conversão, mas em diferentes momentos e situações, particularmente nas horas contemplativas, buscava a iluminação no “Livro da Cruz do Senhor”: “iluminai as trevas do meu coração” (um refrão?) para nele se configurar na DOR e no AMOR[38].

O olhar do Crucificado na direção de Francisco   – “percebia que era olhado por Cristo sob a forma de Serafim, mas a crucifixão traspassava a sua alma com a espada de compassiva dor” (LM XIII, 3,6) – é comunhão mística, é unidade, é transfiguração, é conformidade, é missão que nos provoca e convoca a:

  • A ter permanentemente o olhar da fé quando se trata de reconstruir a Igreja e a humanidade ferida e destruída pela indiferença humana;
  • A ter um olhar que inverte os valores do mundo acerca do “doce e amargo”, conduzindo-nos a abraçar todos os “leprosos” em tempos de globalização da indiferença, das exclusões e das injustiças sociais;
  • A ter um olhar reverente e respeitoso para com a Criação e toda humana criatura porque cada uma, do seu jeito, louva, agradece e obedece ao Criador (Adm 3);
  • A ter um olhar sensível aos “sinais de cruz” e dos crucificados presentes no caminho diário (cf. 1Cel 45), sinais do Todo-Poderoso. Eles exigem reverência, respeito, cuidado e sensibilidade como a de Simão Cireneu que ajudou Jesus a carregar a cruz, ou do Samaritano que “viu, sentiu compaixão e cuidou” (Lc 10,33-34);
  • A ter um olhar de fé (de esperança e caridade) nas incertezas existenciais para buscar a luz no “livro da cruz” do Senhor, não importa se ele se apresenta narrado com palavras e frases, ou pintado com cores e formas como no Crucifixo de São Damião, ou tortuosa à beira do caminho;
  • A ter o olhar da sensibilidade de Clara de Assis que, diante do mesmo Crucificado da igreja de São Damião, o contempla como quem está diante de um espelho para transformar-se toda inteira nas virtudes do Crucificado, particularmente a estupenda pobreza, a santa humildade e a inefável caridade;
  • A ter a flexibilidade de um olhar capaz de transformar as dificuldades humanas e as intempéries de cada dia para perceber, como no diálogo entre Frei Francisco e Frei Leão, que a “Perfeita Alegria” não está nas aparências do poder, do ter e do ser, mas na capacidade de gloriar-se “nas tribulações de cada dia e na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo” (cf. Fior. 8).
  • A ter o olhar misericordioso do perdão que emerge da Cruz do Senhor. Perdão que nasce do infinito amor de Deus e que nos leva a ser misericordiosos, a amar e perdoar sempre, inclusive os que nos ofenderam, e até saber lidar com os conflitos naturais de uma comunidade (cf. Carta ao Ministro e a Paráfrase ao Pai nosso).

4.2. Estigmatização nas palavras dos últimos Papas:

 a) São João Paulo II:

  • Alverne: “Neste lugar privilegiado é uma grande descoberta destas duas realidades: da criação (apaixonado pela Criação) e da Redenção (apaixonado pelo Redentor)
  • Assim como para o apóstolo São Paulo, também para Francisco o Cristo crucificado era o “tudo”. Por isso, nos nossos dias, que a Cruz de Cristo não seja esvaziada.
  • Os estigmas se constituem em sinal daquele que autenticamente se gloria da cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. É um sinal de semelhança em virtude do amor.
  • A estigmatização no Alverne representa aquela visível conformidade à imagem de Cristo, que levou Francisco a dizer: “Eu fiz a minha parte, Cristo vos ensine a vossa” (LM XIV,3).
  • As prolongadas estadias do Poverello nesta montanha são um testemunho eloquente da sua necessidade de solidão… O santuário permanece ainda hoje um dos sinais quase palpáveis da alma contemplativa de São Francisco e da ‘lição’ que ele deixou a respeito a todo o franciscanismo. Onde o verdadeiro amor de Cristo transformou o amante na imagem perfeita do Amado.

O que não dizer sobre a oração a São Francisco Estigmatizado do Alverne? [39]:

Ó São Francisco, estigmatizado do Monte Alverne,

o mundo tem saudades de ti como imagem de Jesus Crucificado.

Tem necessidade do teu coração aberto para Deus e para o homem,

dos teus pés descalços e feridos,

das tuas mãos trespassadas e implorantes.

Tem saudades da tua voz fraca, mas forte pelo Evangelho.

Ajuda, Francisco, os homens de hoje a reconhecerem o mal do pecado

e a procurarem a purificação da penitência.

Ajuda-os a libertarem-se das próprias estruturas de pecado,

que oprimem a sociedade hodierna.

Reaviva na consciência dos governantes

a urgência da paz nas Nações e entre os povos.

Infunde nos jovens o teu vigor de vida, capaz de fazer frente às insídias das múltiplas culturas da morte. Aos ofendidos por toda espécie de maldade,

comunica, Francisco, a tua alegria de saber perdoar.

A todos os crucificados pelo sofrimento, pela fome e pela guerra,

reabre as portas da esperança. Amém”.

 b) Papa Bento XVI:

  • Neste lugar nós somos chamados a recuperar a dimensão sobrenatural da vida, a levantar os olhos do que é circunstancial, para voltar a confiar-nos totalmente ao Senhor… contemplando o Crucificado para que nos fira com seu amor.
  • “Altíssimo, onipotente, bom Senhor…” deixando-nos iluminar pela luz do amor de Deus. Deste lugar abençoado uno-me em oração a todos os franciscanos: “Nós vos adoramos… porque pela vossa santa cruz remistes o mundo”.
  • Não se sobe ao Alverne sem se deixar tocar pela oração de São Francisco: “absorvei-Senhor… para que eu morra por amor do teu amor, como tu te dignaste morrer por amor do meu amor”.
  • Nesta montanha sagrada, São Francisco vive em si a profunda unidade entre sequela, imitatio e conformatio Christi.
  1. c) Papa Francisco
  • Por ocasião do Oitavo Centenário do dom dos estigmas recebido por São Francisco de Assis em 1224, no dia 05 de abril de 2024, o Pontífice Papa Francisco recebeu em audiência os Frades Menores do Santuário de La Verna e da Província toscana. O Papa refletiu sobre o significado dos sinais que recordam a dor sofrida por Jesus “para a nossa salvação”. Em seu discurso, o Papa iniciou expressando sua gratidão pela presença da relíquia do sangue de São Francisco que os franciscanos levaram, e ressaltou a importância deste símbolo da conformação ao “Cristo pobre e crucificado. E ao falar especificamente sobre os estigmas, o Papa destacou sua relevância como um dos sinais mais eloquentes concedidos pelo Senhor ao longo dos séculos: “Os estigmas nos recordam a dor sofrida por nosso amor e salvação oferecida por Jesus em sua carne; mas são também um sinal da vitória pascal”. Ao longo da audiência, foram tratados temas como os estigmas da atualidade, a unidade franciscana, o perdão de Deus e a necessidade de retornar ao essencial.
  • A oração do Papa Francisco em honra a São Francisco estigmatizado, também nos revela a profunda reverência e admiração pelo Pobre de Assis:

“São Francisco,
homem ferido de amor, crucificado no corpo e no espírito,
nós olhamos para ti, adornado com os sagrados estigmas,
para aprender a amar o Senhor Jesus,
nossos irmãos e irmãs com teu amor, com tua paixão.
Contigo é mais fácil contemplar e seguir
o Cristo pobre e crucificado.
Concede-nos, Francisco,
o frescor da tua fé,
a certeza da tua esperança,
a doçura da tua caridade.
Intercede por nós
para que seja doce para nós carregar os fardos da vida
Intercede por nós para que seja doce também 
suportar nas provações e experimentar
a ternura do Pai e o bálsamo do Espírito.
Que nossas feridas sejam curadas no Coração de Cristo,
para que possamos nos tornar, como ti, testemunhas da misericórdia,
que continua a curar e a renovar a vida
de quem o busca com um coração sincero.
Ó Francisco, semelhante ao Crucificado,
faz com que seus estigmas sejam para nós e para o mundo
sinais luminosos de vida e ressurreição
que indiquem novos caminhos de paz e reconciliação. Amém!”

 3.3. Estigmatização nas palavras dos Ministros Gerais … [40]

  1. a) “Francisco foi a La Verna num momento de crise, pelas dificuldades que a redação da Regra havia acarretado: “Do encontro com o crucifixo de La Verna, o selo de todo o seu caminho, Francesco não sai intimista ou retraído em si mesmo. As biografias contam-nos como Francisco se tornou um arauto ainda maior do Evangelho que o marcou na carne […]. Anuncie o Senhor primeiro com a sua vida e depois com a sua palavra. Francisco viveu esta palavra da Regra até ao fim. Mais do que nunca, a missão é fruto e transparência do encontro com o Senhor. Aqui está uma lição viva e permanente dos Estigmas” (Frei Massimo Fusarelli, OFM)
  2. b) “A Cruz de Jesus está no centro do mundo e da história humana. É um duplo sinal: um sinal da crueldade do homem que, na sua confusão, veio crucificar o Autor da vida; sinal do amor gratuito e infinito de Deus, que nenhuma violência, nenhuma recusa pode deter. […] Francisco de Assis experimentou o amor de Deus em sua vida e foi “marcado” por ele. Por sua vez, tornou-se sinal, lembrança, prova de Deus que ama infinita e livremente” (Frei Roberto Genuin, OFMcap).
  3. c) É diante do Crucifixo e aos pés da Cruz que somos capazes de compreender plenamente a perspectiva de todo o Evangelho. Na Cruz de Cristo a comunidade dos fiéis se forma como uma irmandade, na qual o fundamento teológico é o sacrifício pascal de Jesus […] Francisco de Assis, que disse não ser teólogo, nos indica uma elevada espiritualidade centrada em Cristo, fonte de amor para todas as criaturas” (Frei Carlos Trovarelli, OFMConv).
  4. d) “Francisco como um provável “influenciador” de hoje: “Muitos quiseram segui-lo, imitá-lo. Tudo o que ele fez e disse teve um grande impacto na vida de seus companheiros […] Deus transformou Francisco, mantendo muitas coisas no seu estilo, não destruindo a sua personalidade. Este é o milagre, como Deus pode transformar uma pessoa mudando as coisas da vida e transformando o amargo em doce.” Tibor Kauser, OFS,
  5. e) “Francisco, assim como no Natal de 1223 quis representar o presépio para ver com os olhos do corpo o amor de Deus encarnado no Filhinho, em setembro de 1224 quis sentir um pouco da dor que Cristo sofreu na cruz para salvar a humanidade. De Belém ao Calvário é o itinerário que, como franciscanos, nos dispomos a empreender para celebrar, passados ​​oito séculos desde o primeiro presépio, oito séculos desde aquele acontecimento prodigioso que foi a impressão dos estigmas no corpo do Pobre Homem de Assis” (Frei Livio Crisci, Ministro Provincial dos Frades Menores da Toscana).

[1] 1Cel 22, 3 (cf. também LM III,13 e LTC 25,3).

[2] Cf. 1Cel 22,6-8: “Desde então, prepara para si uma túnica que traz a imagem da cruz para nela expulsar todas as fantasias demoníacas; prepara-a muito áspera para nela crucificar a carne com os vícios e pecados, prepara-a, finalmente, paupérrima e grosseira, para que de alguma maneira ela possa ser desejada pelo mundo”.

[3] Cf. 1Cel 22,10

[4] Evangelho é Encarnação e Cruz: Cf. 1Cel 84 1-3: “a mais sublime vontade, o principal desejo e supremo propósito, dele era observar em tudo e por tudo o santo Evangelho, seguir perfeitamente a doutrina e imitar e seguir os passos de nosso Senhor Jesus Cristo com toda a vigilância, com todo o empenho, com todo o desejo da mente e com todo o fervor do coração. Recordava-se em assídua meditação das palavras e com penetrante consideração rememorava as obras dele. Principalmente a humildade da encarnação e a caridade da paixão de tal modo ocupavam a sua memória que mal queria pensar outra coisa”.

[5] Cf. OfP XV – A Festa do Natal é a noite da manifestação misericordiosa de Deus, noite de júbilo e cânticos, porque o Santíssimo Pai do céu enviou do alto seu dileto Filho que nasceu da bem-aventurada Virgem Maria. Nasce em Francisco o convite ao louvor porque: “um Menino santíssimo e dileto nos foi dado e nasceu por nós no caminho e foi colocado no presépio porque ele não tinha um lugar na hospedaria” – v.7).

[6] Cf. OfP XV,13: Impressiona-nos a leitura que São Francisco faz do mistério da Encarnação. O itinerário do seguimento de NSJC tem seu ponto de partida na Encarnação, já assinalada pela exigência do abraçar a cruz: “e carregai a sua santa cruz e segui seus santíssimos mandamentos até o fim”.

[7] Cf. TestC. v. 5: “O Filho de Deus fez-se para nós o Caminho…”

[8] Cf. TestC 45.

[9] A cura di R. BARTOLINI,  NELLA TUA TENDA PER SEMPRE, Ed. Porziuncola, 2005, p. 85

[10] RSC X, 7

[11] A prática de fazer o sinal da cruz é vivida desde os primórdios da Igreja. Temos este testemunho de Tertuliano (220 d.C.) que em um de seus escritos, “De Corona Militis”, assim nos testemunha: “Quando nos pomos a caminhar, quando saímos e entramos, quando nos vestimos, lavamo-nos e iniciamos as refeições, quando vamos nos deitar, quando nos sentamos, nessas ocasiões e em todas as nossas demais atividades, persignamo-nos a testa com o sinal da cruz”. Pelo Sinal da santa Cruz, livrai-nos Deus Nosso Senhor dos nossos inimigos. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém”. (cf também. Catecismo, n.1235: “O sinal da cruz, no princípio da celebração, manifesta a marca de Cristo impressa naquele que vai passar a pertencer-Lhe, e significa a graça da redenção que Cristo nos adquiriu pela sua cruz.)

[12] Cf. Conclusão do cap. 8º d I Fioretti, cap. 8)

[13] São as passagens do Evangelho que esclareceram Francisco e os dois primeiros companheiros quando estes se dirigiram à igrejinha de São Nicolau, na cidade de Assis, para fazer o discernimento diante do Senhor: “Padre, mostra-nos o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo” (cf. AP 10-11). Cf. também LM III,3; 2Cel 15; LTC 29; Fior 2.

[14] B. M. Aherns, verbete “CRUZ” em Dicionário de Espiritualidade, Ed. Paulinas, 1989, p.251.

[15] Idem, p. 253.

[16] cf. também LTC 25,4-6 e LM III,1: “conformar-se em tudo à regra de vida dos apóstolos”.

[17] No oriente a Festa da Exaltação da Santa Cruz começou a partir de 13 de setembro de 335, a partir da consagração das Basílicas do Gólgota de do Santo Sepulcro, construídas pelo Imperador Constantino. Mais tarde, em 630, também no Ocidente, a partir da vitória de Heráclito sobre os persas e ter resgatado as relíquias da Santa Cruz e solenemente levadas a Jerusalém. Celebração do triunfo da Cruz!

[18] https://franciscanos.org.br/vidacrista/o-que-eles-dizem-a-respeito-do-coracao-do-redentor/

[19] Estudos sobre a oração do Ofício da Paixão do Senhor, cf. URIBE, Fernando, Orar como Francisco, notas y sugerencias sobre las oraciones del Santo de Asís, Cali, Colombia, 2008, pp. 110-142; LEHMANN, Leonard, Francesco Maestro di Preghiera, Roma, 1993, p. 123-155.

[20] Cf. Cesare Vaiani, SAN FRANCESCO, LA VERNA E LE STIMMATE, Ed. Biblioteca Francescana, Milano, 2024, pp. 11-31.

[21] C. Vaiani, p. 13.

[22] Com interpretações próprias, as outras obras hagiográficas narram o sonho de Espoleto: cf. 1Cel 5: a vontade de seguir a beleza e o encanto das armas o levam a empenhar-se em esconder Jesus Cristo no seu íntimo”; 2Cel 6: volta sem demora, tornando-se já modelo de obediência, e renunciando à própria vontade, de Saulo se torna Paulo”; AP 5-6: foi transformado pela graça divina em um outro homem”.

[23] OLHE, CONSIDERE, CONEMPLE: considerações sobre o estudo Suor Maria Fernanda Dima, OSC, DAVANTI ALLO SPECCHIO DELL’ETERNITÀ – La preghiera nella forma di vita clariana, in Quaderni di Spiritualità Francescana, Incontro di Spiritualità Francescana (Santuario Della Verna, 1993), Quaderno XV, pp 74-75

[24] É muito importante observarmos a ECLESIALIDADE daquele momento celebrativo, como podemos observar na leitura atenta de 1Cel 22: naquela igreja, página do Evangelhos, envio dos discípulos, a celebração da missa (festa de São Matias?) e a presença do sacerdote exercendo sua missão.

[25] Texto correspondente na RnB II. 14-15:  “E todos os irmãos se vistam com vestes baratas e possam, com a bênção de Deus, remendá-las de sacos e outros retalhos, porque o Senhor diz no Evangelho: “os que vestem roupas preciosas e vivem no luxo e os que se vestem com vestes macias estão nos palácios dos reis”… e não procurem roupas caras neste mundo, para que possam obter a vestimenta no reino dos céus”.

[26]Cesare VAIANI, San Francesco, la Verna e le Stimmate, ed. Biblioteca Francescana, Milano, 2024, pp.11ss,

[27] Este legado da paz (PAZ e BEM), é saudação e missão. A fraternidade, dede as oriens. Construiu laços de paz no desejo fazer que sobre a Mãe Terra realmente reinasse a paz universal cantado no Cântico das Criaturas, respeitando todas as formas de vida e cada um dos seres, como nos vem proclamado na Carta Encíclica Laudato Sí e na Exortação Apostólica Laudate Deum. Em 2025 fazemos memória dos 800 anos do Cântico das Criaturas.

[28] Aqui cabe muito bem a narrativa que encontramos no texto Espelho da Perfeição, cap. 85, ao falar do zelo de Francisco pela perfeição dos frades, fazendo a descrição do frade perfeito: “é aquele que tivesse a vida e as qualidades destes santos frades: a fé de Frei Bernardo, a simplicidade e a pureza de Frei Leão, a cortesia de Frei Ângelo, a conversa agradável e devota de Frei Masseu; a contemplação de Frei Egídio; a oração constante de Frei Rufino; a paciência de Frei Junípero (desejo de imitar a Cristo no caminho da Cruz); o vigor corporal e espiritual de Frei João das Laudes; a caridade de Frei Rogério e a solicitude de Frei Lúcido (Lúcio) (EP 85).

[29] O tema da oração na itinerância dos “penitentes de Assis”, focado na mística da cruz que os assinala na missão, está bem documentado nas diversas fontes como podemos constatar em 1Cel 45; 3Cel 3;

AP 19; LTC 37; LM IV,3. E nos lugares onde não vislumbravam os sinais de cruz, eles próprios, revestidos com as vestes em forma de cruz, implantavam a essência do livro da cruz de Cristo.

[30] Este episódio também nos é narrado na Legenda dos Três Companheiros, falando da vocação e a visão que o sacerdote Silvestre teve antes de entrar na Ordem (impactado pela conversão de Frei Bernardo): “viu em sonhos uma cruz imensa cujo vértice tocava os céus; e o pé dela estava fixo na boca do bem-aventurado Francisco, e os braços da mesma estendiam-se de uma parte à outra do mundo” (LTC 31,2). Frei Tomás de Celano ainda acrescenta que Cristo “abre as entranhas da sua misericórdia” para que a avareza do coração do sacerdote Silvestre se transformasse mediante a visão do valor das obras de Francisco, cuja cruz frutificou a partir da terra boa (cf. 2Cel 109).

[31] Tau, sinal bíblico: Existe somente um texto bíblico que menciona explicitamente o TAU, última letra do alfabeto hebraico, Ezequiel 9, 1-7: “Passa pela cidade, por Jerusalém, e marca com um TAU a fronte dos homens que gemem e choram por todas as práticas abomináveis que se cometem”.

O TAU é a mais antiga grafia em forma de cruz. Na Bíblia é usado como ato de assinalar. Marcar com um sinal é muito familiar na Bíblia. Assinalar significa lacrar, fechar dentro de um segredo, uma ação. É confirmar um testemunho e comprometer aquele que possui o segredo.

O TAU é selo de Deus; significa estar sob o domínio do Senhor, é a garantia de ser reconhecido por Ele e ter a sua proteção. É segurança e redenção, voltar-se para o Divino, sopro criador animando nossa vida como aspiração e inspiração. Cf.: https://franciscanos.org.br/carisma/simbolos/o-tau-franciscano#:~:text=Tau%2C%20sinal%20b%C3%ADblico&text=O%20TAU%20%C3%A9%20a%20mais,de%20um%20segredo%2C%20uma%20a%C3%A7%C3%A3o.

[32] Na pequena carta se lê: “Eu, Frei Francisco, desejo saúde a Frei Antônio, meu bispo. Apraz-me que ensines a sagrada teologia aos irmãos, contanto que, nesse estudo, não extingas o espírito de oração e devoção, como está contido na Regra”.

[33] Cf. Testemunhos não franciscanos, Jacques de Vitry, Carta escrita de Gênova em outubro de 1216.

[34] Cf. também LM IV,3, que assim conclui fazendo uma analogia entre Ambrósio, presente no sepultamento de Martinho pela força onipotente de Deus, e “Francisco, presente à pregação de Antônio, seu verdadeiro arauto, para provar as palavras da verdade, especialmente a verdade da cruz de Cristo, da qual ele era portador e ministro”. 3Cel 3, 2-3:  “Foi escrito e provado por fonte segura que Frei Monaldo, famoso por sua vida, por seus costumes e por sua penitência, viu com os olhos do seu corpo o bem-aventurado Francisco crucificado, durante um sermão de Santo Antônio, que estava pregando sob o tema da cruz – Ele mesmo tinha o costume e o prescrevera aos irmãos de prestar a qualquer imagem da cruz, que eles percebessem, as honras do devido respeito”

[35] Cf. LM XIII, 10, 5-7.

[36] As  “três vias” de são Boaventura são fundamentais para compreender seus escritos sobre a vida espiritual: a via purgativa, inspirada pela consciência, que expulsa o pecado; a via iluminativa, inspirada pelo intelecto, que imita Cristo; e a via unitiva, inspirada pela sabedoria, que nos une a Deus pelo amor (https://educacao.uol.com.br/biografias/sao-boaventura.htm#:~:text=As%20%22tr%C3%AAs%20vias%22%20de%20s%C3%A3o,une%20a%20Deus%20pelo%20amor.

[37] Da reflexão de Frei Massimo Fusarelii, Ministro Geral, no encontro celebrativo no Monte Alverne:  “Gosto de pensar na biografia interior de Francisco como um caminho de círculos concêntricos que o conduziu ao centro, que é Jesus. Acabamos de contemplá-lo em Greccio, no Natal, onde Francisco quer ver com os próprios olhos a pobreza e as dificuldades. Onde Jesus quis nascer, aquele caminho pobre e humilde que Ele escolheu para vir até nós, para chegar aqui em La Verna – e de Greccio a La Verna o caminho não é exatamente reto, mas internamente é – onde Francisco se deixa atrair pelo mistério do seu Senhor crucificado e ressuscitado, porque o Serafim manifesta ao mesmo tempo dor e alegria inefável: o coração do caminho de Francisco é Jesus Cristo. Parece tão simples, mas o Centenário que hoje inauguramos pode nos lembrar disso, como todo o Centenário que celebramos” cf:

https://www.ofm.org/apertura-dell-viii-centenario-delle-stimmate-di-san-francesco.html

[38] Cf. Terceira consideração dos SACROSSANTOS ESTIGMAS (Fioretti – Anexos): “Ó Senhor meu Jesus Cristo, duas graças te peço que me faças antes que eu morra: a PRIMEIRA é que em vida eu sinta na alma e no corpo, quanto for possível, aquelas dores que tu, doce Jesus, suportaste na hora da tua acerbíssima paixão; a SEGUNDA é que eu sina no meu coração. Quanto for possível, aquele excessivo amor do qual tu, Filho de Deus, estavas inflamado para voluntariamente suportar uma tal paixão por nós pecadores

[39] “Oração do Papa São João Paulo II, proclamada no Monte Alverne no dia 17 de setembro de 1983, na Capela dos Estigmas:  https://franciscanos.org.br/carisma/oracao-a-sao-francisco-das-chagas.html

 [40] https://www.ofm.org/apertura-dell-viii-centenario-delle-stimmate-di-san-francesco.html

 

Os estigmas de São Francisco

 

Frei Celso Márcio Teixeira, ofm

No dia 17 de setembro, a Ordem franciscana celebra a festa da estigmatização de São Francisco de Assis. Segundo a descrição de seus hagiógrafos, Francisco, ao retornar a si de um arrebatamento místico, em que contemplava os mistérios dolorosos de Cristo, sentiu-se assinalado pelas chagas da crucifixão do Senhor, a saber, nas mãos, nos pés e no lado direito.

No contexto da Idade Média, por ser algo absolutamente inaudito, interpretou-se como um fato miraculoso. Hoje, em época de demitizações e de investigações científicas, surgem interpretações a partir de diferentes óticas: psicológica, biológica, psicanalítica, parapsicológica, patológica, etc.. Evitamos aqui a discussão se os estigmas constituem milagre ou não, até porque não é tão simples conceituar o milagre. Limitamo-nos à análise de relatos do ponto de vista da redação e da história, isto é, tentamos contextualizar os relatos.

Evidentemente, não se pode pretender ser exaustivo em um tema tão complexo, quando se dispõe de espaço pequeno, mas tentaremos resumir algumas destas argumentações, se não para aprofundarmos o tema, pelo menos, para percebermos a sua complexidade.

Contextualização na história – Os hagiógrafos são bastante precisos na datação do episódio. O primeiro deles, Tomás de Celano, em 1228, afirma que o fato se deu dois anos antes da morte de São Francisco (cf. 1Cel 94), portanto, em 1224. São Boaventura busca mais precisão, situando-o na quaresma de São Miguel, isto é, num período dedicado ao jejum e à contemplação, o qual se estendia da festa da Assunção de Nossa Senhora (15 de agosto) até a festa de São Miguel (dia 29 de setembro) (cf. LM 13,1). E, juntamente com o autor da Legenda dos Três Companheiros, chega a precisar ainda mais a data da estigmatização: numa manhã na proximidade da festa da Santa Cruz (14 de setembro). A terceira consideração dos Estigmas, texto ligado aos Fioretti, afirma categoricamente que a estigmatização se deu exatamente na manhã do dia da Exaltação de Santa Cruz, que, desde épocas antigas, era celebrada aos 14 de setembro. A tradição, a partir daí, sempre manteve esta data, registrada, aliás, na Crônica dos XXIV Gerais: “in die exaltationis Sanctae Crucis valde mane, cum magno doloris sensu et magno Santi clamore”. A festa dos Estigmas de São Francisco era celebrada pelos franciscanos desde 1304 no dia 20 de setembro, visto que não podia prevalecer sobre a festa da Exaltação da Santa Cruz (festa do Senhor). O capítulo geral celebrado em Cahors, França, em 1337, porém, mudou a data para 17 de setembro, que prevalece até os dias de hoje.

Forma literária – Segundo a maneira medieval de escrever hagiografias, o fato teria acontecido após uma visão que Francisco tivera de um serafim dotado de seis asas. A nosso ver, trata-se indubitavelmente de uma forma literária (ou gênero literário), tirada indiscutivelmente da Bíblia (cf. Is 6, 2), embora a descrição do serafim de Isaías difira nos detalhes da descrição feita por Tomás de Celano. Por isso, uma leitura crítica que dispa o fato de elementos míticos (demitização) é necessária, de modo a relativizar a forma que envolve a mensagem ou o fato que se quer transmitir. Hoje, cresce cada vez mais a tendência ou esforço para superar uma leitura fundamentalista, mesmo dos textos franciscanos.

Demitização – Se tomarmos, por exemplo, o relato do primeiro hagiógrafo, Tomás de Celano, em sua Vita Prima, verificaremos que ele passa quase que imperceptivelmente do gênero literário dos grandes visionários da Bíblia (entre outros, Isaias e Ezequiel) a uma descrição que é tão próxima da anatomia moderna: “Suas mãos e os pés pareciam traspassados no meio por cravos, aparecendo as cabeças dos cravos na parte interior das mãos e na superior dos pés, e saindo as pontas deles do lado oposto. E aqueles sinais eram redondos na parte interna das mãos e longos na parte externa, e aparecia um pedaço de carne como se fosse ponta dos cravos, retorcida e rebatida, que surgia da carne restante. Assim também nos pés os sinais dos cravos foram impressos e sobressaíam da carne restante. Igualmente, o lado direito fora como que traspassado por uma lança, ficando fechada uma cicatriz, o qual muitas vezes deixava jorrar sangue, de modo que sua túnica e os calções, muitas vezes, ficavam molhados com o sangue sagrado” (1Cel 95).

A descrição do Serafim com seis asas é diferente desta descrição que caracterizamos como anatômica. O hagiógrafo não estava presente e não viu o Serafim, mas as chagas ele viu. Ele constatou um fato e o descreveu de maneira muito pormenorizada. Em outro lugar, o mesmo hagiógrafo, após a descrição, afirma sua condição de testemunha ocular: “O que acabamos de afirmar, nós o vimos. E tocamos com nossas mãos aquilo que com nossas mãos aqui descrevemos; com os olhos marejados de lágrimas registramos aquilo que pelos lábios confessamos; e sustentamos sempre a verdade daquilo que outrora juramos com a mão sobre os objetos sagrados” (3Cel 5).

Também aqui, ele usa a terminologia da Bíblia. Mas a mensagem é inequívoca: ele era testemunha ocular de um fato.

Estigmas, uma invenção – No caso dos estigmas de São Francisco, tem surgido ultimamente uma demitização exacerbada, uma espécie de leitura que não apenas coloca em dúvida a forma literária, mas também a veracidade do próprio conteúdo. Em síntese, esta leitura afirma que tudo é apenas gênero literário e que o fato da estigmatização não existiu. O que se relata seria apenas invenção dos hagiógrafos para afirmar Francisco com alter Christus.

Acontece, porém, que a formulação de Francisco como alter Christus teve longo processo histórico. E não aconteceu imediatamente após a morte de Francisco, mas pelo menos cem anos após a morte. A partir da semelhança dos estigmas de Francisco com as chagas de Cristo é que se começou a pensar em Francisco como alter Christus e a estabelecer o maior número possível de semelhanças (conformitates). Mas este período – deve-se ressaltar para evitar uma descontextualização – não se iniciou logo após a morte dele, porém, depois de decorridos mais de 100 anos. Em outras palavras, os estigmas não constituem o fim deste processo de considerar Francisco como alter Christus, mas o início (depois de mais de um século), a partir do qual se iniciou a busca de outras conformitates.

Busca de uma explicação natural – Há estudos que negam a estigmatização e interpretam as chagas como lepra que Francisco teria contraído em seus múltiplos contatos com os portadores da doença. Esta é uma leitura feita, por exemplo, pela historiadora Chiara Frugoni. Donald Spoto, em seu livro Francisco, o santo relutante (Rio de Janeiro, Objetiva, 2002), endossa esta leitura, negando não apenas a forma literária do relato, mas também o próprio fato relatado, isto é, que se tratava de estigmatização. Este autor afirma, por exemplo, que os companheiros de Francisco interpretaram a lepra como estigmatização: “Não seria, portanto, surpreendente que os companheiros de Francisco, após a sua morte, logicamente interpretassem a sua lepra como uma participação nos sofrimentos de Cristo. Os leprosos eram os párias da Idade Média, obrigados à segregação e considerados apenas como pecadores repreensíveis que deveriam ser evitados a todo custo” . Mais adiante, o autor continua: “Não é difícil, portanto, compreender o motivo pelo qual pessoas devotas, assombradas pela dimensão do sofrimento de Francisco, se inclinassem a transformar suas dores em um lembrete das dores de Cristo. Assim, os estigmas, em breve, foram tomados como sinais impostos externamente e não como o que realmente eram: sinais de enfermidade e doença… Como Francisco vivera a imitação de Cristo com intensidade revolucionária e incomum…, era natural que os frades menores estivessem ansiosos por apresentá-lo como homem originalmente semelhante a Cristo”.

Como se percebe, neste tipo de estudos, os estigmas são considerados simples manifestação da lepra, e o relato da estigmatização uma sublimação, uma forma de fugir da horripilante realidade da lepra, uma invenção nobre para camuflar um fato considerado vergonhoso no século XIII.

Uma consideração sobre a hipótese da lepra – A grande dificuldade de se afirmar ou de se negar peremptoriamente que se tratava de lepra ou de estigmas é que não temos o paciente diante de nós para fazermos os exames mais sofisticados propiciados pela medicina moderna. Qualquer afirmação ou negação, portanto, só pode ser feita a partir dos relatos.

É possível que tenha havido certa semelhança entre os estigmas e algum tipo de manifestação da lepra. Na época mesma em que Francisco vivia, devido ao inaudito do fato, sem saber ainda do que se tratava, um cronista já estabelecia uma comparação: “pelo que parece, as suas mãos estão feridas, como se ele tivesse lepra”. Mas H. Nolthenius, relativizando os resultados do estudo de Schatzlein e de Sulmasy, diz: “Schatzlein e Sulmasy chegaram à diagnose que Francisco possa ter sido afetado pela então desconhecida lepra tuberculóide (borderline), diagnose que, obviamente, teria consequências muito graves, sobretudo para a avaliação dos estigmas. No entanto, este tipo de doença mostra tantos pontos de contato com a forma conhecida desta doença que os assistentes de Francisco, experientes como eram no cuidado dos leprosos, certamente os teriam reconhecido”. Em outras palavras, os frades, acostumados a lidar com leprosos, saberiam distinguir a lepra dos estigmas.

Embora sem ter conhecimentos profundos de biologia, vemos entre a lepra e os estigmas (como são descritos) algumas diferenças: a lepra é indolor, ao passo que os estigmas, segundo a descrição dos hagiógrafos, causavam fortíssimas dores a Francisco; a lepra é degeneração ou decomposição de tecidos, a qual começa nas extremidades dos nervos, e os estigmas são uma formação de nervuras nas mãos e nos pés e uma cicatriz no lado direito; a decomposição da lepra começa pelas pontas, os estigmas são centralizados; mesmo admitindo-se uma forma de lepra localizada não nas extremidades, a coincidência de cinco chagas tão simetricamente dispostas seria um caso raríssimo da lei da probabilidade.

Conclusão – O fato de os mais de trezentos estigmatizados depois de Francisco não apresentarem os estigmas após a morte faz pensar que, no caso de Francisco, pode ter havido algo especial. A ciência ainda não sabe explicar esse fenômeno. Talvez, um dia, terá condições de dar uma explicação cabal.

Quanto ao relato, reconhecemos que há uma roupagem literária, que descreve o momento místico. Mas, depois da descrição da experiência mística, o hagiógrafo descreve um fato que ele pôde comprovar. E ele o fez com muita consciência do que estava fazendo.

Consideramos de pouca sustentação a afirmação de que os frades tivessem inventado os estigmas, pois a população de Assis, à morte de São Francisco, pôde verificá-los. O já citado cronista da época escreve: “No crepúsculo do dia 4 de outubro, Francisco de Pedro Bernardone morreu na Porciúncula. Mas inaudito é o prodígio acontecido ao seu corpo, prodígio que ele manteve escondido por dois anos, mas que se tornou visível depois de sua morte, nas mãos, nos pés e no lado, ele portava as feridas do Senhor sobre a cruz; delas saía sangue, quando ele era vivo, e nas mãos e nos pés se podiam ver os cravos. Que Deus ajude a todos nós”.

Sintetizando, o povo de Assis viu os estigmas, constatou os “cravos nas mãos e nos pés” de Francisco. Os hagiógrafos tinham, assim, um controle público que os impedia de inventar coisas mirabolantes.


[1] Uma crítica que se pode fazer a cientistas de diversos ramos é a de que, por faltar-lhes visão teológica, eles tendem a negar fatos ou fenômenos místicos e, por isso, tentam convertê-los em (ou substituí-los por) “fatos” de suas respectivas áreas.
2 Cf. LM 13,3; LTC 69.
3 Analecta Franciscana III, p. 374.
4 Cf. AtF 6; 18, quando se usa a expressão alter Christus; esta fonte foi escrita mais de 100 anos depois da morte de São Francisco.
5 Por exemplo, o estudo de Schatzlein J. e Sulmasy D., The diagnosis of St Francis: evidence for leprosy, em Franciscan Studies., 25 (1987), p. 181-217.
6 FRUGONI CH., Francesco e l’invenzione delle stimmate, Torino, Einaudi, 2010, 3ª Ed.
7 SPOTO D., Francisco, o santo relutante (Rio de Janeiro, Objetiva, 2002), p. 282.
8 SPOTO D., Francisco, o santo relutante, p. 287-288.
9 NOLTHENIUS H., Um uomo dalla valle di Spoleto – Francesco tra i suoi contemporanei, Messaggero Padova, 1991, p. 137.
10 NOLTHENIUS H., Un uomo…, p. 317, nota 110.
11 NOLTHENIUS H., Un uomo…, p. 139.

Apresentação

Impressão das Chagas de São Francisco de Assis

No dia 5 de janeiro de 2024, a Família Franciscana inaugurou oficialmente o VIII Centenário dos Estigmas de São Francisco, no Santuário do Monte Alverne, localizado na província de Arezzo, na Itália.

No dia 17 de setembro, é celebrada, em todo o mundo, a festa da Impressão das Chagas, também chamada de Estigmas de São Francisco de Assis. A introdução litúrgica da Missa e Liturgia das Horas diz o seguinte:

“O Seráfico Pai Francisco, desde o início de sua conversão, dedicou-se de uma maneira toda especial à devoção e veneração do Cristo crucificado, devoção que até a morte ele inculcava a todos por palavras e exemplo. Quando, em 1224, Francisco se abismava em profunda contemplação no Monte Alverne, por um admirável e estupendo prodígio, o Senhor Jesus imprimiu-lhe no corpo as chagas de sua paixão. O Papa Bento XI concedeu à Ordem dos Frades Menores que todos os anos, neste dia, celebrasse, no grau de festa, a memória de tão memorável prodígio, comprovado pelos mais fidedignos testemunhos.”

A vida de Francisco no Alverne é oração e ininterrupta  penitência. Sente-se pobre e pecador. Quer despojar-se de tudo. Renuncia até mesmo a um manto que tinha sido salvo do fogo, a única coisa que tinha para cobrir-se durante o breve repouso da noite. Francisco voltará muitas vezes ao Alverne para encontrar a paz em Deus que a situação da Ordem e o fato de estar no meio dos homens não lhe davam e entregar-se de corpo e alma à oração.

No verão de 1224, última vez que esteve no Alverne, Francisco procura um lugar ainda mais “solitário e secreto” no qual possa mais reservadamente fazer a quaresma de São Miguel Arcanjo. Na manhã de 17 de setembro de 1224, os céus se abrem e Cristo crucificado desce ao Monte Alverne na forma de um serafim.

Frei Regis explica o sentido e o significado:

Mais do que desvendar o caráter histórico das Chagas de São Francisco, importa refletir sobre a experiência de vida que se esconde sobre este fato. O que significa a expressão de Celano “levava a cruz enraizada em seu coração”? O que isso significou para o próprio Francisco? Há um significado para nós hoje, naquilo que com ele ocorreu?

Um erro comum é o de ver São Francisco como uma figura acabada, pronta, sem olhar para a caminhada que ele fez até chegar à semelhança perfeita (configuração) com o Cristo. O que ocorreu no Monte Alverne é o cume de toda uma vida, de uma busca incessante de Francisco em “seguir as pegadas de Jesus Cristo”. Francisco lançou-se numa aventura, sem tréguas, na qual deu tudo de si: a vontade, a inteligência e o amor. As chagas significam que Deus é Senhor de sua vida. Deus encontrou nele a plena abertura e a máxima liberdade para sua presença.

O segundo significado das chagas é o de que Deus não é alienação para o ser humano, ao contrário, é sua plena realização e salvação. Colocando-se como centro da própria vida é que o homem se aliena e se destrói; torna-se absurdo para si mesmo no fechamento do seu ‘ego’. O homem só encontra sua verdadeira identidade, sua própria consistência e o sentido de sua existência em Deus. E Francisco fez esta descoberta: Jesus Cristo foi crucificado em razão de seu amor pela humanidade – “amou-os até o fim” – , e ele percorre este mesmo caminho.

O terceiro significado: as chagas expressam que a vivência concreta do amor deixa marcas. A exemplo de Cristo, Francisco quis suportar/carregar e amar os irmãos para além do bem e do mal (amor incondicional). Essa atitude o levou a respeitar e acolher o ‘negativo’ dos outros mantendo a fraternidade apesar das divisões. Esse acolher e integrar o negativo da vida é a única forma de vencer o ‘diabólico’, rompendo com o farisaísmo e a autossuficiência, aniquilando o mal na própria carne. Só assim, o homem é de fato livre, porque não apenas suporta, mas ama e abraça o negativo que está em si e nos outros.

O quarto significado: seguir o Cristo implica em morrer um pouco a cada dia: “Quem quiser ser meu discípulo, tome a sua cruz a cada dia e me siga” (Lc 9,23). Não vivemos num mundo que queremos, mas naquele que nos é imposto. Não fazemos tudo o que desejamos, mas aquilo que é possível e permitido. Somos chamados a viver alegremente mesmo com aquilo que nos incomoda, vencendo-se a si mesmo e integrando o ‘negativo’, de modo que ele seja superado. Nós seremos nós mesmos na mesma medida em que formos capazes de assumir nossa cruz. As chagas de São Francisco são as chagas de Cristo, e elas nos desafiam: ninguém pode conservar-se neutro, sem resposta diante da vida.

São Francisco não contentou-se em unicamente seguir o Cristo. No seu encantamento com a pessoa do Filho de Deus, assemelhou-se e configurou-se com Ele. Este seu modo de viver está expresso na “perfeita alegria”, tema central da espiritualidade franciscana: “Acima de todos os dons e graças do Espírito Santo, está o de vencer-se a si mesmo, porque dos todos outros dons não podemos nos gloriar, mas na cruz da tribulação de cada sofrimento nós podemos nos gloriar porque isso é nosso”.

Veja mais artigos sobre este tema neste Neste Especial!


Imagem de Murillo – São Francisco recebe os estigmas,1650 (wikimedia Commons, domínio público)

O testemunho das fontes franciscanas

Dos “Fioretti” – Terceira consideração dos Sacrossantos Estigmas

“Um dia, no princípio de sua conversão, ele rezava na solidão e, arrebatado por seu fervor, estava totalmente absorto em Deus e lhe apareceu o Cristo Crucificado. Com esta visão, sua alma se comoveu e a lembrança da Paixão de Cristo penetrou nele tão profundamente que, a partir deste momento, era-lhe quase impossível reprimir o pranto e suspiros quando começava a pensar no Crucificado”.  E rezava:

“Ó Senhor, meu Jesus Cristo, duas graças eu te peço que me faças, antes de eu morrer: a primeira é que, em vida, eu sinta na alma e no corpo, tanto quanto possível, aquelas dores que tu, doce Jesus, suportaste na hora da tua dolorosa Paixão. A segunda, é que eu sinta, no meu coração, tanto quanto for possível, aquele excessivo amor, do qual tu, filho de Deus, estavas inflamado, para voluntariamente suportar uma tal Paixão por nós pecadores”.


Da Legenda Menor de São Boaventura, Capítulo 6

“Francisco era um fiel servidor de Cristo. Dois anos antes de sua morte, havendo iniciado um retiro de Quaresma em honra de São Miguel num monte muito alto chamado Alverne, sentiu com maior abundância do que nunca a suavidade da contemplação celeste. Transportado até Deus num fogo de amor seráfico, e transformado por uma profunda compaixão n’Aquele que, em seus extremos de amor, quis ser crucificado, orava certa manhã numa das partes do monte.

Aproximava-se a festa da Exaltação da Santa Cruz, quando ele viu descer do alto do céu, um serafim de seis asas flamejantes, o qual, num rápido vôo, chegou perto do lugar onde estava o homem de Deus. O personagem apareceu-lhe não apenas munido de asas, mas também crucificado, mãos e pés estendidos e atados a uma cruz. Duas asas elevaram-se por cima de sua cabeça, duas outras estavam abertas para o vôo, e as duas últimas cobriam-lhe o corpo.
Tal aparição deixou Francisco mergulhado num profundo êxtase, enquanto em sua alma se mesclavam a tristeza e a alegria: uma alegria transbordante ao contemplar a Cristo que se lhe manifestava de uma maneira tão milagrosa e familiar, mas ao mesmo tempo uma dor imensa, pois a visão da cruz transpassava sua alma como uma espada de dor e de compaixão.

Aquele que assim externamente aparecia o iluminava também internamente. Francisco compreendeu então que os sofrimentos da paixão de modo algum podem atingir um serafim que é um espírito imortal. Mas essa visão lhe fora concedida para lhe ensinar que não era o martírio do corpo, mas o amor a incendiar sua alma que deveria transformá-lo, tornando-o semelhante a Jesus crucificado.

Após uma conversação familiar, que nunca foi revelada aos outros, desapareceu aquela visão, deixando-lhe o coração inflamado de um ardor seráfico e imprimindo-lhe na carne a semelhança externa com o Crucificado, como a marca de um sinete deixado na cera que o calor do fogo faz derreter.

Logo começaram a aparecer em suas mãos e pés as marcas dos cravos. Via-se a cabeça desses cravos na palma da mão e no dorso dos pés; a ponta saía do outro lado. O lado direito estava marcado com uma chaga vermelha, feita por lança; da ferida corria abundante sangue. Frequentemente, molhando as roupas internas e a túnica. Fui informado disso por pessoas que viram os estigmas com os próprios olhos.

Os irmãos encarregados de lavar suas roupas, constataram com toda segurança que o servo de Deus trazia, em seu lado bem como nas mãos e pés, a marca real de sua semelhança com o Crucificado”.


De Tomás de Celano – Vida II, 211

“Francisco já tinha morrido para o mundo, mas Cristo estava vivo nele. As delícias do mundo eram uma cruz para ele, porque levava a cruz enraizada em seu coração. Por isso fulgiam exteriormente em sua carne os estigmas, cuja raiz tinha penetrado profundamente em seu coração”.


Outros textos: 1Cel, 94; Legenda Maior, 13,35,69.

O sentido e o significado das Chagas

Frei Régis G. Ribeiro Daher

Mais do que desvendar o caráter histórico das Chagas de São Francisco, importa refletir sobre a experiência de vida que se esconde sobre este fato. O que significa a expressão de Celano “levava a cruz enraizada em seu coração”? O que isso significou para o próprio Francisco? Há um significado para nós hoje, naquilo que com ele ocorreu?

Um erro comum é o de ver São Francisco como uma figura acabada, pronta, sem olhar para a caminhada que ele fez até chegar à semelhança perfeita (configuração) com o Cristo. O que ocorreu no Monte Alverne é o cume de toda uma vida, de uma busca incessante de Francisco em “seguir as pegadas de Jesus Cristo”. Francisco lançou-se numa aventura, sem tréguas, na qual deu tudo de si: a vontade, a inteligência e o amor. As chagas significam que Deus é Senhor de sua vida. Deus encontrou nele a plena abertura e a máxima liberdade para sua presença.

O segundo significado das chagas é o de que Deus não é alienação para o ser humano, ao contrário, é sua plena realização e salvação. Colocando-se como centro da própria vida é que o homem se aliena e se destrói; torna-se absurdo para si mesmo no fechamento do seu ‘ego’. O homem só encontra sua verdadeira identidade, sua própria consistência e o sentido de sua existência em Deus. E Francisco fez esta descoberta: Jesus Cristo foi crucificado em razão de seu amor pela humanidade – “amou-os até o fim” – , e ele percorre este mesmo caminho.

O terceiro significado: as chagas expressam que a vivência concreta do amor deixa marcas. A exemplo de Cristo, Francisco quis suportar/carregar e amar os irmãos para além do bem e do mal (amor incondicional). Essa atitude o levou a respeitar e acolher o ‘negativo’ dos outros mantendo a fraternidade apesar das divisões. Esse acolher e integrar o negativo da vida é a única forma de vencer o ‘diabólico’, rompendo com o farisaísmo e a autosuficiência, aniquilando o mal na própria carne. Só assim, o homem é de fato livre, porque não apenas suporta, mas ama e abraça o negativo que está em si e nos outros.

O quarto significado: seguir o Cristo implica em morrer um pouco a cada dia: “Quem quiser ser meu discípulo, tome a sua cruz a cada dia e me siga” (Lc 9,23). Não vivemos num mundo que queremos, mas naquele que nos é imposto. Não fazemos tudo o que desejamos, mas aquilo que é possível e permitido. Somos chamados a viver alegremente mesmo com aquilo que nos incomoda, vencendo-se a si mesmo e integrando o ‘negativo’, de modo que ele seja superado. Nós seremos nós mesmos na mesma medida em que formos capazes de assumir nossa cruz. As chagas de São Francisco são as chagas de Cristo, e elas nos desafiam: ninguém pode conservar-se neutro, sem resposta diante da vida.

São Francisco não contentou-se em unicamente seguir o Cristo. No seu encantamento com a pessoa do Filho de Deus, assemelhou-se e configurou-se com Ele. Este seu modo de viver está expresso na “perfeita alegria”, tema central da espiritualidade franciscana: “Acima de todos os dons e graças do Espírito Santo, está o de vencer-se a si mesmo, porque dos todos outros dons não podemos nos gloriar, mas na cruz da tribulação de cada sofrimento nós podemos nos gloriar porque isso é nosso”.

Que milagre é este?

Frei Hipólito Martendal

Há vários santos entre os católicos que apareceram portando estigmas, semelhantes às chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ultimamente parece que tivemos até um caso raro de um homem de Deus trazer por certo tempo as chagas e depois elas virem a desaparecer. Dizem que isto teria acontecido com o capuchinho de nossos dias, o Pe. Pio, agora São Pio.

Por outro lado, estamos por demais acostumados com a idéia de milagres como eventos extraordinários, operados instantaneamente, ou pelo menos, em tempo relativamente breve, onde as coisas acontecem de tal maneira que só podem ser atribuídas a alguma intervenção divina.

De minha parte, acredito que verdadeiros milagres podem ocorrer sem todos estes atributos considerados seus sinais inconfundíveis. Posso imaginar verdadeiros milagres sendo gerados aos poucos, lentamente, com recurso às forças naturais, mas que nunca poderiam acontecer somente apela atuação destas forças.

No caso de São Francisco, por exemplo, as descrições de seus biógrafos são espetaculares. O Santo, durante uma quaresma que celebrou em honra de São Miguel Arcanjo, na véspera, ou no dia da festa da Exaltação da Santa Cruz (14 de setembro), mergulhado em profunda meditação sobre a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, tem uma visão deveras impressionante. Cristo lhe aparece como um homem crucificado, mas portando três pares de asas de Serafim. Francisco é arrebatado por um êxtase total. Aos poucos, sem ele sentir, as chagas de Jesus criam forma e implantam-se em seus membros e lado. Tomás de Celano, São Boaventura e o autor dos Fioretti descrevem-nas, bem como seu formato, a cor e a aparência dos cravos, em tudo de maneira muito semelhante.

O primeiro santo das chagas

Há algumas particularidades muito interessantes no caso de São Francisco. Ele é o primeiro homem na História a aparecer chagado. As descrições são concordes ao destacar o tamanho das feridas (eram grandes), estruturas semelhantes a cravos, com sangramentos intermitentes, principalmente na ferida do lado.

Outra característica muito forte em São Francisco era o destaque que dava à humanidade de Jesus. O último Natal, antes das Chagas, ele o celebrara em Greccio, quando pedira a um amigo que montasse a cena de Belém o mais semelhante possível ao que ele concebera, em sua imaginação poética, pois, dizia: “Quero lembrar a criança que nasceu em Belém e ver com meus olhos carnais as dificuldades de sua infância pobre, como ele dormiu na manjedoura e como, entre o boi e o burro, deitaram-no sobre o feno”. (São Francisco de Assis de Jacques Lê Goff, p.88).

Na quaresma em que foi agraciado com os sagrados estigmas, o assunto de meditações e contemplações fora a Paixão do Senhor. Por outro lado, quando se tratava de virtudes relacionadas à renúncia, à minoridade, à pobreza, ao servir, Francisco fazia questão de ser sempre o primeiro em tudo. O mesmo acontecia no desejo de imitar Nosso Senhor, no que se refere à pobreza e ao sofrimento. Queria ser o primeiro entre todos que desejasse viver como o Divino Mestre vivera. Além do mais, São Francisco era do tipo sensitivo, muito intuitivo, dado a sonhos e visões freqüentes, coisas que ele interpretava realisticamente como repostas divinas à sua incessante procura de Deus e da perfeição.

Agora vamos ao essencial que desejo oferecer à meditação do leitor. Em nossos dias, os estudos que procuram as conexões entre o que é mental e o que é corporal, entre o espiritual e o material, progrediram muito e têm descoberto coisas realmente interessantes. Os estudiosos afirmam que cerca de 80% dos transtornos físicos que incomodam o ser humano são de origem psíquica. Um desejo muito forte, uma emoção avassaladora, uma necessidade premente podem converter-se em sintomas físicos e doenças.

Dias atrás lia o caso de uma mulher que sofria de dores de cabeça lancinantes e contínuas e para a qual um batalhão dos melhores médicos não encontrava qualquer causa orgânica que explicasse. Só sabiam que depois de muitos anos de sofrimentos na companhia de um marido alcoólico e muito violento, conseguira a separação. Ele ameaçara suicidar-se, caso ela não voltasse. Ela não voltara e ele dera um tiro na própria cabeça!

Cópia perfeita de Cristo

Ora, fomos condicionados a ver somatizações só em doenças. E por que o fenômeno não poderia ocorrer como resposta sadia a desejos e emoções elevados e santos? Eu imagino que no caso de São Francisco tenha ocorrido exatamente tal fenômeno. Ele tinha uma capacidade rara de exprimir fisicamente seus estados de alma. Declamava, cantava, dançava, e encenava as alegrias mais espirituais. Vertia abundantes lágrimas de tristeza ao contemplar os sofrimentos de nosso Divino Mestre, ou simplesmente por pensar que “o Amor não é amado”. Estava firmemente disposto a não sofrer menos que sofrera seu Mestre e Senhor. Nos últimos anos de vida tivera ainda que contatar a realidade decepcionante de ver seus frades envolvidos em graves divisões e querelas por causa de seus próprios ideais de pobreza e minoridade, coisas que ele considerava revelações divinas e inquestionáveis. Isto constituía seu calvário que o aproximava ainda mais de Cristo.

Então, o milagre se deu, não por uma intervenção direta e violenta do sobrenatural em seu corpo, mas por um mimetismo divino, por uma somatização de seus desejos santos de ser como o Divino Mestre a quem ele queria copiar. E a cópia foi tão perfeita, que seus contemporâneos registraram para as gerações futuras que “São Francisco é outro Cristo”.

“O Senhor fez em mim maravilhas, santo é seu nome. A minha alma engrandece o Senhor, exulta meu esp….”

O Serafim do Amor

Realizei alguns retiros no Monte Alverne, na região da Toscana, onde Francisco vivenciou os estigmas. Lá, encontrei um monge budista. Quando perguntei o seu nome, ele respondeu: “Eu não tenho nome. Chamamos este lugar de encontro. Quero que você me chame Francisco”.

As boas fontes franciscanas dizem que, de repente, Deus tocou profundamente Francisco. Ele é um imitador perfeito dos caminhos do Senhor Jesus, e todo aquele que é marcado pelos dedos terríveis desse amor, a ele é impossível não trazer essas marcas em seu corpo. Teologicamente, espiritualmente, dizemos que o anjo, o Serafim alado, veio e marcou o corpo dele com aquelas chagas do Amado. E para sempre o amor tomou forma num corpo. Porque o amor estava no seu coração, e o que está no coração toma conta do corpo, da história, da vida e deixa marcas profundas.

As pessoas que se amam verdadeiramente vão ficando parecidas, não é mesmo? Às vezes observamos que, quanto mais velhos ficam nossos pais, mais se assemelham fisicamente. Naquele retiro eu queria entender o que significavam as chagas de Francisco. O monge me respondeu que, de acordo com sua cultura oriental, todas as nossas energias, o nosso potencial de amor, a nossa fonte do amor, brotam de dentro para fora, e não de fora para dentro. Ele disse que, em sua grande capacidade de amar, Francisco explodiu, seu coração se fez como o Sagrado Coração. O coração de quem ama muito faz assim: Pluf! Salta para fora. E o coração dele abriu-se em chagas, em estigmas. Enraizado naquela terra, naquele chão que ele conhecia e pisava, seus pés ficaram marcados com as chagas do Amor.

A concretude do amor estava nas suas mãos, nos seus pés. É nas extremidades vitais que circulam as energias mais poderosas. E foi aí que o amor transbordou na vida de Francisco. Penso que, quando amamos profundamente, todas as experiências humanas e religiosas nos marcam com as marcas profundas do amor. Quem dá o coração, recebe corações. Isso eu aprendi com Francisco, com o cristianismo e também com o budismo. Eu tenho um mestre taoísta, Chuang Tzu. Eu o leio com a mesma paixão que leio o Evangelho, com a mesma paixão com que leio as fontes franciscanas.

Do texto “Dançar o Amor”, de Frei Vitório Mazzuco F°.

Carta Encíclica por ocasião dos 750 anos da estigmatização de São Francisco

Frei Constantino Koser, OFM

A LIÇÃO DO ALVERNE

1. “Levava a cruz enraizada em seu coração. Por isso fulgiam exteriormente em sua carne os estigmas, cuja raiz tinha penetrado profundamente em seu coração”. (1). Estas palavras de Tomás de Celano são das coisas mais profundas e mais verdadeiras que se possam dizer a respeito do fato singular das Chagas de Cristo impressas na carne de nosso Pai São Francisco. Estamos terminando a comemoração dos 750 anos desde que a estigmatização se produziu no alto do Alverne. Para nós, que por vocação e profissão estamos apostados na imitação de nosso Pai, este fato é um desafio constante, de fazer a Cruz lançar raízes cada vez mais profundas em nossa alma.

2. O ano jubilar das Chagas de São Francisco viu muitos franciscanos em peregrinação meditativa no alto do nosso monte santo. Muito mais numerosos os que, espalhados pelo mundo e sem poderem chegar até ali, se esforçaram mais que de costume nesta meditação e fizeram os seus projetos de nova e maior fidelidade à nossa “forma vitae”. Penso, no entanto, que, embora tenham sido tantas as reflexões e os propósitos, não é demais que vos diga ainda uma palavra agora ao findar a comemoração especial. Meu propósito fora de escrever esta carta no começo do ano jubilar. Não consegui ultimá-la, embora tivesse começado o trabalho. Várias vezes voltei ao esboço, e não consegui terminar. Razões externas me impediram como que fisicamente de chegar antes ao termo com meu propósito. Pode ser que não seja importante que vos fale; no entanto, ainda assim, com humildade, quero falar. Fazei-o calar em vossa alma e florescer em vossa vida com humildade também.

I. O DESAFIO DAS CHAGAS DE SÃO FRANCISCO

3. UM SINAL. As Chagas de São Francisco são uma realidade que possui a sua densidade própria, e são sinal que significa uma realidade ainda mais densa. Possui seu sentido para São Francisco ele mesmo, e o possui para outros, para nós particularmente, que somos seguidores do santo de Assis. Homens que somos, só podemos atingir as realidades espirituais por intermédio de sinais sensíveis: pelos sinais da linguagem falada, ou pelos sinais-coisas que significam pelo que são, ou significam por sentidos adicionais resultantes de convenção e treino de interpretação. A força dum sinal depende do sinal ele mesmo, mas muito mais depende de quem o percebe e interpreta.

4. CRISE DOS SINAIS. A crise em que a Igreja se encontra no momento, e particularmente a crise da vida religiosa, também a franciscana, nasce em boa parte duma perda de força dos sinais sensíveis nesta dimensão interpretativa, infelizmente, os sinais assim debilitados em sua força de significação ou até inteiramente anulados tardam em ser recuperados, nem são substituídos tempestivamente por outros. Para nós homens, porém, vale que ou recuperamos os sinais que perderam a sua força, ou os substituímos por sinais novos, que possuam a força necessária sobre a nossa subjetividade de percepção e de realização, ou então a crise crescerá na sua intensidade destruidora.

5. AS CHAGAS AINDA SÃO SINAL INTENSO. As Chagas de Cristo e a sua realidade impressa nos membros de São Francisco, porém, continuam a possuir uma força imensa de significação, continuam sendo um sinal. Continuam sendo um sinal ao qual se contradiz para a ruína, ou que se integra na própria vida para a ressurreição (Lc 2,34). As Chagas de Cristo, abertas na Cruz e mantidas na ressurreição, possuem sua força significativa imensa e incontornável: ninguém pode conservar-se em neutralidade, sem resposta. As Chagas de São Francisco derivam das de Cristo a sua força significativa. No entanto, possuem também o seu elemento próprio: como fato que todo o arsenal crítico dos que não as querem aceitar não conseguiu eliminar da história dos homens, e como sinal de que a realidade das Chagas de Cristo continua viva na história a ponto de se exprimirem nesta forma forte e surpreendente. A força do sinal continua viva, importa que abramos nossa alma e abramos a alma dos outros para que esta força de significação transformante possa agir.

6. MUITA CRISE, MUITA DÚVIDA, POUCA FORÇA. A crise em que nos encontramos já vem de longe, mas cobrou força enorme em nossos dias. Sua força nas almas provém dum questionamento generalizado. Um questionamento pode ser para a vida, se o seu desafio é assumido e levado até à resposta. Mas gera a morte, quando o desafio não é assumido e as questões levantadas ficam sem resposta: gera a morte através da dúvida, que passa a ser ceticismo e este transforma a vida num cemitério. O questionamento diante do qual nos vimos colocados foi e continua sendo ingente. Infelizmente é grande a medida em que não é assumido com responsabilidade e levado até gerar resposta. São muitos os que se comprazem em questionamento estéril. Assim, em muitas almas nasceu a dúvida, cresceu um sentimento generalizado de reserva, instalou-se não raro um ceticismo progressivo que produz a morte da vida cristã e da vida religiosa. O que importa é assumir responsavelmente o questionamento e caminhar até encontrar a resposta. O Alverne para isto pode ser uma lição fecunda.

7. SÃO FRANCISCO CHAGADO PROVOCA UMA REORIENTAÇÃO. Se com toda a seriedade nos confrontarmos com São Francisco chagado e não fugirmos do seu olhar perscrutador, estaremos já no caminho de assumir responsavelmente o questionamento da crise em que nos debatemos. Se assim nos confrontarmos com ele em medida suficiente, com coragem e decisão, provocará em nós uma reorientação para a vida, a inversão da marcha mortífera da dúvida e do ceticismo.

8. IMPORTA TAMBÉM A INTEGRAÇÃO DO “HOJE”. Para que este confronto produza em nós os seus efeitos salutares, porém, importa que nele assumamos e integremos a nossa realidade concreta, a situação em que nos encontramos. O passado com o que fez neste sentido nos pode ajudar validamente, no entanto não basta: importa integrar no confronto também a realidade de hoje. Aceitemos o desafio com seriedade, integridade, honestidade e coragem. Importa que façamos com decisão e coerência a nossa parte.

II. AS CHAGAS DE SÃO FRANCISCO SÃO UM FATO

9. A VOZ DA CRÍTICA HISTÓRICA. Um dos elementos da crise que vivemos é a dúvida a respeito de coisas como a estigmatização acontecida no Alverne. Para que esta tenha a sua força, é preciso vencer a dúvida relativa ao fato. Comecemos aí a recuperação. No fim do século XVIII, apenas nascida, a nova ciência histórica, que se dizia “crítica”, negou a estigmatização no Alverne e tentou liqüidar o que a respeito se transmitia. Muitos confrades de então se sentiram profundamente feridos em sua visão da vida de São Francisco, mas tiveram que suportar a tempestade da negação e ridicularização: não possuíam resposta. Nós hoje, acostumados ao método histórico-crítico, não nos assustamos tanto, achamos que é um modo de consideração necessário e estamos na vantagem de que outros, antes de nós, superaram as negações especiosas do que pretendia ser ciência e colocaram à nossa disposição uma certeza criticamente garantida a respeito do que aconteceu. O que sabemos como resultado do exame histórico-crítico dos documentos na realidade é pouco e não possui a dimensão amplíssima do que desejaríamos saber. Mas é suficiente como fundamento de nossas meditações e basta amplamente para que a lição do Alverne para nós tenha consistência e valor. É evidente que nestas páginas não se trata de fazer pesquisa, mas só de recolher os resultados já garantidos para fundamentar a reflexão. E nos limitamos estritamente ao fato das Chagas.

10. CEM ANOS ATRÁS, UM RESUMO NEGATIVO. Carlos Augusto Hase fez um primeiro resumo dos resultados obtidos pela aplicação do método histórico-crítico aos relatos da estigmatização de 1224: com conclusão negativa (3). Achou que tinha o direito e dever de reduzir os documentos autênticos às poucas linhas de Frei Elias na “Epistola encyclica de transitu S. Francisci” (4). Considerou todos os demais documentos como produtos de fantasia, destituídos de valor histórico. Interpretou as poucas linhas de Frei Elias em chave minimizante. Em seguida não encontrou dificuldades em atribuir as Chagas a uma falsificação criminosa, executada no corpo de São Francisco depois da morte precisamente por Frei Elias, caráter capaz – diz Hase – de semelhante monstruosidade.

11. À DISTÂNCIA DE CEM ANOS. O P. Otaviano de Rieden O.F.M. Cap. publicou o seu “De sancti Francisci Assisiensis stigmaturn susceptione disquisitio historico-critica luce testimoniorum saeculi XIII” (5). Este estudo marca o ponto em que as pesquisas se encontram no momento, com resultados bem mais positivos e sérios que os apresentados por Hase. Significa para nós a recuperação dos fatos à luz da história crítica e com as garantias mais elevadas na aplicação rigorosa deste método científico. Claro, não mais que estas garantias, que não são absolutas: são históricas, não metafísicas. Mas, pode-se dizer, garantias de nível máximo dentro da categoria histórica.

12. OS DOCUMENTOS QUE POSSUEM ESTA MEDIDA MÁXIMA DE CERTEZA GARANTIDA são os seguintes: o de Frei Elias, “Epistola encyclica de transitu S. Francisci”‘ (6); a nota que Frei Leão escreveu na “Chartula, quam dedit fr. Leoni” (7); Tomás de Celano, “Vita prima S. Francisci”, ns. 94-95 (8) e ns. 112-113 (9). O que se narra nestes documentos é repetido em muitos outros, com informações suplementares. Para a finalidade desta carta bastam as informações dos três textos mencionados. E possuem, como ficou dito, a força de eliminar qualquer dúvida a respeito do fato da estigmatização.

13. A IMPRESSÃO DAS CHAGAS É UM FATO, que não pode ser posto em dúvida, desde que se respeitem as regras do método histórico-crítico. Começaram a formar-se as cinco Chagas durante ou pouco depois da experiência mística de São Francisco no Alverne em setembro de 1224, dois anos antes de sua morte, na visão do “quasi Seraphim sex alas habentem” (10). São Boaventura dá esta ulterior determinação cronológica: “Quodam mane circa festum Exaltationis S. Crucis”. (11) As fontes não permitem maior precisão a respeito do dia. Do modo como estas fontes narram o acontecimento, tem-se a impressão de que as Chagas não se produziram de forma abrupta durante a visão, mas foram se formando aos poucos, sem que se possa saber quanto tempo tenha durado este período de formação. “… coeperunt in manibus eius et pedibus quem admodum paulo ante virum supra se viderat crucifixum…”(12) diz Celano. S. Boaventura também diz: “Statim… apparere coeperunt” (13).

14. A FORMA DAS CHAGAS MERECE ESPECIAL ATENÇÃO. As descrições de Frei Elias e de Tomás de Celano apresentam diferenças que foram interpretadas como contradições. No entanto, lendo as duas descrições sem prevenção e com minuciosa atenção, dir-se-á que não existem contradições e que o texto de Tomás de Celano, longe de contradizer, confirma com explicitações o texto de Frei Elias. É importante ter presente as duas descrições. Frei Elias escreveu: “Manus eius et pedes quasi puncturas clavorum habuerunt, ex utraque parte confixas, reservantes cicatrices et clavorum nigredinem ostendentes. Latus vero eius lanceatum apparuit et saepe sanguinem evaporavit” (14). Tomás de Celano, dois anos mais tarde e à vista de Frei Elias e em vida de muitos que tinham visto as Chagas, relata: “Manus et pedes eius in ipso medio clavis confixae videbantur, clavorum capitibus in interiore parte manuum et superiore pedum apparentibus, et eorum acuminibus exsistentibus ex adverso. Erant enim signa ilia rotunda interius in manibus, exterius autem oblongata, et caruncula quaedam apparebat quasi summita clavorum retorta et repercussa, quae carnem reliquam excedebat. Sic et in pedibus impressa erant signa clavorum et a carne reliquia elevata. Dextrum quoque latus quasi lancea transfixum, cicatrice obducta, quod saepe sanguinem emittebat, ita ut tunica eius cum femoralibus multoties respergeretur sdanguine sacro. (15)

15. QUEM VIU AS CHAGAS? São Francisco sentiu o dever de extrema reserva a respeito das Chagas, seguindo nisto uma de suas normas mais firmes: “Beatus servus, qui secreta Domini conservat in corde suo”. Os primeiros biógrafos frisam com freqüência esta forte reserva. (17) Assim, segundo Tomás de Celano, em vida de São Francisco só Frei Elias e Frei Rufino viram a Chaga do lado. (18) As Chagas das mãos e dos pés não podiam ser escondidas tão eficazmente, e por certo ao menos os íntimos as viram com certa freqüência. No entanto, durante os dois anos da estigmatização, o segredo das Chagas de modo geral foi bem mantido não só por São Francisco, mas também pelos poucos íntimos que sabiam do acontecido. Isto se reflete também nas notícias transmitidas nos documentos do século XIII: corriam rumores discretos a respeito, não se sabia nada de certo em vida do Santo, é esta a impressão que fica em quem lê com atenção todas as notícias transmitidas e considera o modo de falar a respeito. Como o Santo conseguiu manter este segredo, é difícil de entender, contudo é um fato. Não será demais supor que as Chagas durante os dois anos passaram por várias modificações como cicatrização, reabertura, aumento, diminuição, de modo que os períodos que se poderiam dizer agudos podem ter sido breves e isto facilitaria o segredo e explicaria o fato. Da Chaga do lado se diz que “saepe” emitia sangue, não sempre, e é tudo o que se sabe.

16. DEPOIS DE MORTO, NO ENTANTO, MUITOS PUDERAM VER AS CHAGAS.“Catervatim tota civitas Assisii ruit, et omnis accelerat regio videre magnalia Dei” (20) cernere mirabile erat in medio rnanuurn et pedum ipsius non davorum quidem puncturas sed ipsos clavos ex eius carne compositos, ferri retenta negredine, ac dextrum latus sanguine rubricatum.. . Accurrebant fratres et filii, et coilacrimantes deosculabantur manus et pedes pii patris cos derelinquentis, necnon dextrum latus.. . Maximum donum sibi exhiberi credebat quivis de populo, si admittebatur non solum ad deosculandum, sed etiam ad videnduni sacra stigmata lesu Christi, quae sanctus Franciscus portabat in corpore suo”. Santa Clara com suas filhas também viram as Chagas, e puderam beijá-las, quando o corpo de São Francisco por instantes foi deposto na igrejinha de São Damião, antes de ser sepultado na de São Jorge (22). O fato de tantos terem visto as Chagas depois da morte de São Francisco por certo é enorme dificuldade para explicar a laconicidade de Frei Elias em sua comunicação, e a igual laconicidade de Tomás de Celano e o silêncio da bula de canonização (23). Dificuldades estas, porém, que não diminuem a certeza do que narra Frei Elias e Tomás de Celano.

17. UM FATO EXTRAORDINÁRIO, UMA MENSAGEM. Assim é certo que a estigmatização de São Francisco é um fato e não uma lenda. Além de ser fato, e sem deixar de sê-lo, pertence à categoria dos sinais e solicita a resposta duma “leitura”. A força do sinal existe, mas está à espera de quem faça esta “leitura”. E cada qual a deve fazer para si, só assim poderá comunicá-la a outros. Comunicada, poderá chegar à sua eficácia em comunidade, como deve ser entre franciscanos. Cabe-nos tentar esta “leitura”. Demos ao menos alguns passos.

III. O CONFRONTO COM O ALVERNE

18. A PRIMAZIA DE DEUS. O que aconteceu no Alverne durante o mês de setembro de 1224, e as Chagas impressas na carne de nosso Pai São Francisco, significa e manifesta mais que tudo que Deus é Senhor. Deus se apoderou do Homenzinho de Assis e nele agiu como quis’. Esta realidade eterna e irremovível de que “Deus é Senhor” é o fundamento de tudo em nossa vida natural e na vida da graça: sem ela, tudo é obscuro; com ela, tudo é luz. São Francisco assim entendeu o senhorio de Deus e o aceitou com júbilo e reconhecimento: fez desta realidade o ponto de referência constante de tudo em sua vida. Nunca mais do que no Alverne. Possuímos a respeito uma informação excepcional, do próprio punho de São Francisco, um documento escrito no Alverne depois da estigmatização, ainda no vértice da experiência mística: a “Chartula quam dedit fr. Leoni”. Diz-nos o que Deus era para ele:

“Vós sois o santo Senhor e Deus único, que operais maravilhas.
Vós sois o forte.
Vós sois o grande.
Vós sois o Altíssimo.
Vós sois o Rei onipotente, santo Pai, Rei do céu e da terra.
Vós sois o Trino e Uno, Senhor e Deus, Bem universal.
Vós sois o Bem, o Bem universal, o sumo Bem, Senhor e Deus, vivo e verdadeiro.
Vós sois a delícia do amor.
Vós sois a Sabedoria.
Vós sois a Humildade.
Vós sois a Paciência.
Vós sois a Segurança.
Vós sois o Descanso.
Vós sois a Alegria e o Júbilo.
Vós sois a Justiça e a Temperança.
Vós sois a Plenitude e a Riqueza.
Vós sois a Beleza.
Vós sois a Mansidão.
Vós sois o Protetor.
Vós sois o Guarda e o Defensor.
Vós sois a Fortaleza.
Vós sois o Alívio.
Vós sois nossa Esperança.
Vós sois nossa Fé.
Vós sois nossa inefável Doçura.
Vós sois nossa eterna Vida, ó grande e maravilhoso Deus, Senhor
onipotente, misericordioso Redentor”.(24)

19. O SENHORIO DE DEUS NA VIDA DE SÃO FRANCISCO não começou a ser aceito e vivido por ele no Alverne, a resposta do Pobrezinho não começou ali. O Senhorio de Deus é de sempre, a resposta do filho de Bernardone começara a ser mais intensa em Spoleto 20 anos antes, O Alverne 1224 significa um vértice insuperado. A “Chartula” é a súmula de uma experiência de Deus muito singular, única. Cada qual de suas expressões merece longa meditação e deve ser transportada para a vida concreta todos os dias. Importa pensar o que significa cada qual das palavras numa experiência tão viva como foi a de São Francisco, tão intensa, tão profunda, tão sincera, tão veraz na expressão, a tal ponto que ainda a mais alta expressão poética fica devendo à realidade experimentada. Importa meditar e viver na mesma direção, para caminhar e chegar a vértices cada vez mais elevados. Até que este hino se transforme, também em nossa vida, em expressão sincera de toda a verdade de nossa existência.

20. DEUS NÃO É ALIENAÇÃO, MAS APROPRIAÇÃO E INTERIORIZAÇÃO DO HOMEM. Vivemos sob nuvem espessa e oprimente de acusação blasfema de que “Deus é alienante” e que “o homem, para encontrar-se a si mesmo, deve livrar-se de Deus”. Claro, se Deus não existe – como é tese cada vez mais propagada, o ateísmo dos nossos dias – nada mais alienante para o homem e para a humanidade, que a religião, o cultivo duma relação a Deus. Relação que, aceita por força intrínseca, absorve tudo no absoluto e único Deus e reduz o homem a completa e ilimitada e incomensurável dependência, sujeição, heteronomia, propriedade “de outro”. Nada mais absurdo, nada mais prejudicial, claro, se Deus não existe. Mas… Deus existe. Fato irredutível e indestrutível. Verdade. Por isto nada mais destruidor do homem, que negar Deus e negar-se a reconhecer a sua supremacia. Nós homens, “o homem” e “a humanidade” não somos realidades absolutas. Se nossa época prova qualquer coisa, prova que o homem, colocando-se no centro da realidade, no centro de si mesmo, referindo-se a si mesmo, se destrói do modo mais completo e se “aliena” de si mesmo do modo mais absoluto: passa a ser absurdo para si mesmo. Só nos libertamos, só nos encontramos, só fugimos da alienação, só temos sentido, só temos meta e destino, só temos história e só temos consistência “em Deus”. “Em Deus” não no sentido panteísta de identificação, nem no sentido aniquilador de absorção, mas no sentido difícil e misterioso de criaturas: existentes de fato e em realidade, mas na limitação e em relação. São Francisco, mais que tudo nesta culminância mística do Alverne, o evidencia do modo mais patente: ninguém mais “ele mesmo”, em identidade e diferenciação, que São Francisco, porque ninguém como ele referido a Deus. Ninguém mais “realizado” e “promovido” do que ele, e ele nunca mais realizado e mais promovido que quando Deus lançou mão dele dum modo tão completo como no Alverne. Façamos ressoar esta mensagem em nossa alma e transformemos nossa vida numa ressonância desta mensagem.

21. “COM TODAS AS FORÇAS…”Centro, cerne, núcleo do homem, num sentido absoluto, é Deus. Isto na ordem da realidade é um fato. Ao mesmo tempo e estranhamente um fato que nos cabe “realizar”: em nossa inteligência, em nossa vontade, em nossa subjetividade, em nossa afetividade, em tudo o que somos. Esta é a tarefa e meta da vida presente. Tarefa que devemos cumprir nós mesmos pessoalmente, e que ao mesmo tempo envolve “os outros”: não é uma tarefa que possamos realizar a sós, separados e isolados, individualistas, mas só em comunhão com “os outros”. A dimensão de “os outros” é inseparável de nossa tarefa pessoal, mas de tal modo que a tarefa continua “pessoal” e ninguém a pode realizar em nossa substituição. E é a realização desta tarefa que realiza “comunhão”. Sem eIa, nenhuma comunhão verdadeira de homens é possível. Nela, toda a comunhão possível se concretiza superabundantemente. Nela se realizam todas as aspirações legítimas do homem, e do homem em comunhão. Por vontade de ação de Deus não só se realizam, mas são sobre-realizadas numa comunhão com Deus que ultrapassa as mesmas possibilidades ativas desta e de qualquer criação possível: na comunhão que nos faz “theías koinoonói physeoos” (25). Nossa comunhão faz parte do mistério de Deus. É comunhão em que não somos absorvidos, mas permanecemos nós mesmos; em que somos um, todos, e contudo permanecemos indivíduos e pessoas. Ninguém mais “ele mesmo” que São Francisco, ninguém mais indivíduo e pessoa, ninguém mais inserido em comunhão.

22. “IPSA CREATURA LIBERABITUR… IN LIBERTATEM GLORIAE FIBIORUM DEI”. Nem só nós, os homens, nos libertamos em Deus, mas conosco libertamos toda a criação, todo o cosmos: animais, plantas, minerais, coisas, estruturas, sistemas, economia, política, ciência, técnica, leis, normas, prescrições, relações, variáveis, progresso, maturação – tudo. No “Cântico do Irmão Sol” de São Francisco temos a impressão de entrever já realizada esta libertação integral do cosmos na transfiguração final. Sem Deus, o cosmos está “alienado”, está “em pecado”, em Deus encontra a si mesmo. A marcha desta libertação é longa e penosa – “como em dores de parto” – durante todo o tempo do éon presente e se realiza por mil modos e caminhos os mais diversos, convergentes, se corretos, para a libertação final. Ciência e técnica também contribuem. E muito. São, porém, instrumentos e não meta, são instrumentos, sim, mas parciais e provisórios “in via”, ineficazes diante da culminância última. Apesar de todos os seus limites e apesar de todas as suas crises, andanças e equívocos, são parte do caminho “em dores de parto”. A nós cabe continuar o “Cântico do Irmão Sol” de São Francisco com as estrofes nossas, porque este hino não termina em a natureza “natural”, envolve também a “nova natureza” da técnica. O desenvolvimento deste destino e a sua realização progressiva em nossa existência acolhe todas as aspirações dos homens de todos os tempos, também as do homem de hoje, as limpa de manchas e de equívocos, corrige os erros, supera as crises e leva à realização acima de todas as aspirações: em Deus. Esta é a tarefa global que nos cabe cumprir em nossa existência para a parte que nos toca. Para ela, São Francisco é um exemplo forte e cheio de fascínio irresistível. Façamos que nós mesmos e todos os nossos irmãos o sejamos também.

23. “EM CRISTO JESUS”. Em seus desígnios, Deus realiza este seu projeto de tal modo que converge no Homem Jesus unido ao Verbo, “di’ autou apokatalláxai tà pánta”(27). São Francisco não é “o” modelo, muito menos “o ponto de convergência”: isto tudo é Cristo Jesus. São Francisco é, sim, uma realização estupenda da inserção em Cristo, da convergência de tudo em Cristo. Por isto mesmo se transformou em mensagem e sinal para nós: ouvindo-o e imitando-o em sua relação a Cristo, progredimos no caminho régio da convergência em Cristo e da realização dos desígnios de Deus com toda a criação. Nada mais evidente na vida do Homenzinho de Assis que esta sua posição “em Cristo Jesus”. No assemelhar-se a Cristo seguiu o caminho mais curto e mais íngreme: a obediência integral ao Evangelho, numa forma tão direta e tão imediata que por dom de Deus também externamente se assemelhou a Cristo em seu peregrinar terrestre. Porque Cristo é “o caminho, a verdade e a vida” (28), fora de Cristo não existe possibilidade de realização do homem. O que é realização do homem, o é em Cristo – e o que não o é em Cristo, não é realização do homem. Em a vida de São Francisco, toda ela, isto é evidente, e com as Chagas sua força de sinal cresceu em significação perceptível.

24. “NISI IN CRUCE D0MINI NOSTRI IESU CHRISTI”. (29) A culminância do Alverne na vida de São Francisco nos confronta de modo singular com o mistério da Cruz. Percebemos quanto é profundo o contraste das Chagas com o caminho que a humanidade tenta hoje, como o tentou sempre: fuga da Cruz de Cristo, para o sonho ilusório dum paraíso ‘terrestre, que contrasta com os desígnios de Deus. Contra este engano perigoso, que hoje se concretiza no consumismo desenfreado e elevado a idolatria, a estigmatização do Alverne possui uma força de mensagem e de sinal incalculável. Os esforços ingentes, tremendos em busca de um paraíso terrestre, que cumprimos hoje, são vãos como sempre foram vãos: não podem produzir senão amarga desilusão. O caminho do destino humano é outro: está marcado pela Cruz. É necessário recolocar esta verdade em nossa mente e realizá-la em nossa vida. Reencontraremos o caminho estreito. (30) O seu roteiro é oposto ao que os homens preferem e está codificado nas Bem-aventuranças, no Sermão da Montanha. Estamos por demais metidos no caminho largo e fácil dos falsos profetas, é hora de passarmos para o caminho estreito de Cristo, o da Cruz. Reencontraremos também a sã austeridade, a disciplina, o rigor de nossa vida franciscana, a pobreza – “Dona Pobreza” – que São Francisco amou porque Cristo a amou.

25. PÁSCOA DA RESSURREIÇÃO. A Cruz, no entanto, não é a meta, é caminho. Não fomos feitos para a Cruz, fomos feitos para a Páscoa da Ressurreição. Na mística da Cruz – na mística do sofrimento, da austeridade, do martírio… – por vezes, se esquece esta verdade. À primeira vista se tem a impressão de que também São Francisco a esqueceu um pouco. No entanto, basta lembrar a importância que deu à alegria, basta lembrar a alegria com que viveu e que propôs aos seus irmãos, para compreender que também para ele a Cruz era caminho e não meta derradeira. Basta lembrar o trânsito de São Francisco para compreender quanto estava centrado na Páscoa da Ressurreição. É grande vantagem para nós, hoje, que esta verdade da relação da Cruz à Páscoa foi posta novamente na devida luz e está sendo proclamada com força. Importa que seja proclamada ainda com mais força, vivida com mais fidelidade, sentida com mais intensidade e realizada com mais alegria. Não se trata apenas duma ressurreição futura, não se trata apenas duma esperança, mas de uma realidade já presente e ativa, já realizada em nossa vida pelo mistério do batismo. Já estamos misteriosamente na Páscoa da Ressurreição. Mas ao mesmo tempo a esta nossa Páscoa da Ressurreição falta a realização subjetiva em nossa vida: já estamos e ainda não estamos. Entre estes dois termos está o nosso caminho da Cruz.

26. TRÍDUO PASCAL. Feliz a disposição da nova Liturgia da Semana Santa, que conglobou a Cruz no “mistério Pascal”. Não nestes termos, não nesta modalidade, mas nos fatos de sua vida e em sua experiência espiritual São Francisco fizera a mesma integração dos mistérios Pascais. No Alverne – isto é um dos aspectos mais fortes do sinal e da mensagem – o Serafim alado que lhe apareceu, apareceu crucificado, mas em luminosidade de glória. Encheu-o de alegria imensa, de felicidade superabundante, mas, porque ele São Francisco estava ainda a caminho, nele as Chagas foram dolorosas, penosas, crucifixão que durou dois anos. Como antes em toda a sua vida, também nestes dois anos de crucifixão sofreu agonia e abandono, passou pela prova dos sofrimentos corporais e passou pela escuridão terrível das noites místicas. Agonia e escuridão, porém, que se transfiguravam de luz e glória na alegria profunda e exuberante que nunca o deixava. Frisam-no muitas vezes os seus primeiros biógrafos. Esta alegria lhe vinha de ser assemelhado a Cristo no caminho da Cruz, e de saber que assim avançava em direção à Ressurreição em Cristo. A morte para ele foi deveras um trânsito desta vida à vida perene, na esperança da ressurreição do corpo. Esta integração dos vários elementos do mistério Pascal é mensagem forte para nossos dias. É mensagem contra o “aleluia” enganador dos que pensam já estar para além da Cruz e da prova. É também mensagem e correção forte contra austeridade, ascese, rigor, cultivo de sofrimento como meta e como fundamento de espiritualidade – deformação da mensagem cristã e sementeira ou fruto de deformações psíquicas – em vez de elemento a caminho, instrumento, condição da vida presente, corretivo de nossas imperfeições, da concupiscência que não deixa de ser ativa nem mesmo nos batizados enquanto vivos sobre esta terra.

27. SANTA MARIA. A capelinha que São Francisco fez erigir no Alverne, à sua chegada – feita de paus e de ramos então, nesta primeira e única quaresma que o Santo passou no alto do monte – dedicou-a a Maria dos Anjos. Maria Santíssima está presente na sua vida interior em tudo. Com Cristo, em Cristo, para São Francisco tinha que estar sempre a Mãe de Cristo. Sua devoção à sua Senhora, à sua Rainha, à Mãe do seu Senhor era profunda, terna e sentida, com os acentos do cavalheirismo medieval. Não sabemos particularidades a respeito do exercício de devoção marial no Alverne em 1224, mas o fato de ter dedicado a capelinha a Santa Maria dos Anjos diz que aí esteve muitas vezes entretido com sua Rainha. O Concílio nos convidou a que aperfeiçoássemos nossa piedade marial e a limpássemos de exageros e deformações. Isto, certamente, não significa, na intenção do Concílio, que devamos eliminar a devoção e que devamos agir indiscriminadamente contra a religiosidade popular de veneração e confiança na Mãe de Deus. Significa, sim, um aprofundamento e um progresso na direção de formas de devoção em verdade, fé, confiança, amor, imitação. Aconteceu que houve uma inflexão sensível na piedade marial, e é tempo de recuperar-nos. Ponhamos, com São Francisco, Santa Maria em nosso Alverne. Quanto mais nossa piedade marial for autêntica e conforme à fé, tanto mais será intensa e sentida. Como a de São Francisco.

28. VIDA DE ORAÇÃO. Alverne mostra que São Francisco, ainda no fim de sua vida, sentia a necessidade do que hoje chamamos “tempos fortes de oração” e de “experiência do deserto”. Sua absorção em Deus era fortíssima e profundíssima, a tal ponto que tudo de fato era oração: o trabalho, o contato com os seus irmãos, o seu peregrinar apostólico, a convivência e o encontro com as criaturas todas. No entanto, sentia ainda “o pó das estradas que se apega aos pés dos apóstolos”, sentia ainda a necessidade de retemperar sua vida de oração com estas “quaresmas” de vida retirada, em maior rigor de penitência e em maior radicalidade de recolhimento, em maior plenitude de oração. Frisa-se com razão que oração e vida, oração e trabalho, oração e convivência humana, oração e apostolado, oração e experiência do cosmos devem formar uma unidade e não devem se justapor, muito menos se impedir. Mas facilmente esquecemos que este “deve ser assim” é altíssima meta e que na vida presente esta convergência e identificação não costumam ser um fato cotidiano, são meta distante e raras vezes atingida. Nada mais pernicioso para a vida de oração do que imaginar ter atingido a meta quando ainda não se chegou até lá.

29. ORAÇÃO QUE CHEGA A SER VIDA DA ALMA. Se por certo necessitamos de “tempos fortes de oração” e de “tempo de deserto”, precisamos também cuidar de que nos entretempos a oração não míngüe, que seja de fato a vida da alma, a realidade ininterrupta, constante de nossa existência. É só na oração que em Deus deveras encontramos os irmãos e encontramos a criação, o apostolado, o trabalho, encontramos nossa realização e promoção, trabalhamos para a dos outros: pois é na oração que realizamos subjetivamente o consórcio da natureza divina, que realizamos nosso estar “em Cristo”. São Francisco progrediu tanto neste caminho, que se transformou num sinal e numa mensagem eloqüente de quanto o mesmo “humanum” se realiza nestas altas sendas da vida espiritual. Não se progride na vida espiritual por alienação, mas por integração: esta a mensagem do Alverne. Apenas: é necessário estar atento com nossa fraqueza e não queimar as etapas. Na mesma medida em que a oração chega a ser vida de nossa alma e o for de modo integral, nesta mesma medida estaremos progredidos na integração de tudo em Deus. Tudo será oração.

CONCLUSÃO

30. São Francisco partiu do Alverne em 1224 com um grande mistério escondido em sua alma. Se não pôde esconder inteiramente as Chagas, escondeu bem recôndito o que tinha vivido em tantos dias de intimidade com Deus, com Cristo, com Maria Santíssima, mais que tudo o que tinha vivido e experimentado durante a aparição do Serafim crucificado e o que significa esta aparição. Algo transparece na “Chartula” que escreveu para Frei Leão, O mais o levou para o além como o “segredo do Rei”. Contudo, sem podermos saber o conteúdo, sabemos que o Alverne é para São Francisco uma experiência única de vida com Deus. As Chagas que portou durante dois anos foram o sinal permanente desta experiência e o mantiveram unido a ela. Também para nós, embora desconheçamos o segredo desta experiência mística, o Alverne é uma lição altíssima e intensa, uma mensagem forte, um estímulo poderoso. Há 750 anos este santo monte está presente na mente de todos os filhos de São Francisco, chamando-os e estimulando-os à vida com Deus, em Cristo, na Cruz, para a Páscoa da Ressurreição. Terminadas as comemorações jubilares, que o santo monte Alverne continue a influir poderosamente em nossa alma.

Que São Francisco nos consiga para todos esta graça.

Roma, em Santa Maria Medianeira, aos 24 de Agosto de 1975.

FREI CONSTANTINO KOSER O.F.M.
Ministro Geral

Notas
1. Cel. 211, cap. 70, in Anal. Franc. vol. X, Quaracchi 1926-1941, p. 252. Edição brasileira, Vozes, Petrópolis 1975. p: 206-207. “Levava a cruz enraizada em seu coração. Por isso fulgiam exteriormente em sua carne os estigmas, cuja raiz tinha penetrado profundamente em seu coração”.
2. (2 Lc 2,34)
3. “Anhang: Untersuchung der Wundmale” de seu livro: Froj: von Assisi, Em Helligenbild, Leipzig. 1856, p. 143-202.
4. Ct. o texto em Anal. Franc. vol. X, p. 526s, n. 5.
5. Em: Coil. Franc. XXXIII (1963), p. 210-266; 382-422; XXXIV (1964), p. 5-62; 241-338.
6. Anal. Franc. vol. X, p. 526s, n. 5.
7. Opuscula S. P. Francisci, Quaracchi 1949, p. 199. Os Escritos de São Francisco de Assis, Vozes 1970, p. 179.
8. Anal. Franc. vol. X, p. 72-73. Celano, Vida de São Francisco de Assis, p. 60 e 61.
9. Loc. cit., p. 88. Celano, Vida de São Francisco, p. 71-72.
10. 1 Cel. n. 94, Anal. Franc. vol. X, p. 79.
11. Leg. Maior, cap. 13, n. 3, Anal. Franc. vol. X, p. 616, n. 3.
12; Loc. cit., p. 79.
13. Loc. cit., p. 617.
14. Epistola, n. 5. Anal. Franc. vol. X, p. 526-527.
15. 1 Cel. 94, Anal. Franc. vol. X, p. 72-73.
16. Admon. XXVIII, Quaracchi, 1949, p. 19.
17. Cf. p. ex., 1 Ccl. n. 95-96, Anal. Franc. vol. X, p. 73-74; cf. também lc. p. 189; 207;
S. I3oaventura, Leg. Maior, Anal. Franc. vol. X, p. 583; 603; 617.
18. 1 Cel. n. 95, Anal. Franc. vol. X, p. 73.
19. Frei Elias, na Epístola, n. 5, Anal. Franc. vol. X, p. 527; Tomás de Celano diz “multoties”, cl. 1 Cel. 64, Anal. Franc. vol. X, p. 73.
20. 1 Cel. n. 112, Anal. Franc. vol. X, p. 87. Celano, Vida de São Francisco de Assis: ‘Toda a cidade de Assis veio em peso, e a região inteira acorreu para presenciar as grandezas de Deus”.
21. 1 Cel. n. 113, Anal. Franc. vol. X, p. 88. Celano, Vida de São Francisco de Assis: ‘Era admirável ver em suas mãos e pés não as feridas dos cravos mas os próprios cravos, formados por sua carne, com a cor escura do ferro, e a seu lado direito rubro de sangue… Acorriam os frades seus filhos e, chorando, beijavam as mãos e os pés do piedoso pai que os deixava, e também o lado direito, cuja chaga era uma lembrança preclara daquele que também derramou sangue e água deste mesmo lugar e assim nos reconciliou com o Pai. Para as pessoas do povo era o maior favor serem admitidas não só para beijar mas até só para ver os sagrados estigmas de Jesus Cristo, que São Francisco trazia em seu corpo”.
22. 1 Cel. n. 116-117, Anal. Franc. vol. X p. 91-93.
23. “Mira circa nos”, de 19-7-1228, embora Gregório IX na “Usque ad terminos” de 31-3-1237 afirme que os estigmas foram para ele “causa specialis” para a canonização.
24. Opuscula S. P. Franciscj, Quaracchi 1949, p. 124-125. Os Escritos, p. 179-180. “di’ autoã
25. 2Pdr 1,4.
26. Rom 8,21.
27. Col 1,20.
28. Jo 14,6.
29. Gál 6,14.
30. Mt 7,14.

A impressão das Chagas

Frei Atílio Abati

Ao falar da paixão e morte do Senhor Jesus, por nos ter dado sua própria vida, São Francisco de Assis chegava às lágrimas. Daí sua exclamação de júbilo: “Que felicidade ter um tal irmão” (2CFi 56)!

Em 1224, no Monte Alverne, Francisco recebe os estigmas da paixão do Senhor.

A impressão das chagas, em seu corpo, não foi senão a coroação de toda uma vida. Desde o início de sua conversão, ele se deslumbrava ao contemplar o Cristo de São Damião, tão humano, tão despojado, tão pobre e crucificado. Por isso, este Cristo ocupa o lugar central de toda sua vida: “Não quero gloriar-me a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Gal 6,14).

Foi ante este Cristo, que compungido rezou: “Iluminai as trevas de meu espírito, concedei-me uma fé íntegra, uma esperança firme e um amor perfeito” (OrCr). E continua: “Nele está todo perdão, toda graça e toda glória, de todos os penitentes e justos” (RegNB 30).

A cruz, fonte de vida

Assim compreende-se porque na alma deste servo de Deus as chagas já estavam impressas desde o início de seu projeto de vida.

Francisco teve a sensibilidade de descobrir a face do Cristo Sofredor nos conflitos sociais, nos leprosos e nos marginalizados. Vê no Cristo Crucificado o servo perfeito, que aceita viver, sofrer e morrer para nos salvar.
Francisco passou por momentos de crise, mas não perdeu a chama da esperança e da confiança. Apesar das provações, sentiu-se cativado pelo Cristo. Ele sabia que o caminho para a glória passa pelo sofrimento. Sua opção de vida foi pelo caminho da renúncia, da doação e da cruz. Todavia, assumiu sua missão até as últimas conseqüências, porque o caminho da cruz é fonte de vida.

Francisco captou o profundo sentido da cruz e, por isso, sentiu-se envolvido pelo amor do Mestre que salva, que liberta e que impulsiona para a Ressurreição.

Francisco e o Cristo

Francisco vivia fascinado pelo Cristo, que veio para realizar a vontade do Pai e se fez obediente até morte, e morte de cruz. Aqui está a explicação por que Francisco usava o Tau. Este lhe lembrava a cruz, sinal de salvação, símbolo da vitória sobre o mal. Mais, a cruz torna-se símbolo e sinal da bondade e da misericórdia divinas.

Francisco ora ao Pai, pedindo provar no seu corpo as dores do Senhor Jesus e sentir tão grande amor pelo Crucificado como Ele sentiu por nós. As chagas em seu corpo não são senão a aprovação divina e a resposta ao seu ardente desejo de sentir em sua carne os sofrimentos do Crucificado. E de fato aconteceu. Francisco, assim, é açoitado cruelmente pelo sofrimento.

A recompensa do Pai

No Cristo crucificado, Francisco encontra toda vitalidade que lhe abrasava o coração, a ponto de transformar- se no Cristo estigmatizado. O Cristo pobre e sofredor, estava em seu projeto de vida. Seria Ele como uma auto-estrada a conduzi-lo, mais e mais, a uma profunda união com Deus, a ponto de, exteriormente, pelas cinco chagas, gravadas em seu corpo, assemelhar-se ao Cristo crucificado.

Sabemos, outrossim, que na alma deste santo, as chagas do Senhor já estavam impressas. E como Cristo foi recompensado pelo Pai, ressuscitando-o e vencendo a morte, Francisco, no Monte Alverne, também recompensado por Deus, em seu corpo, pela impressão dos estigmas de seu Filho Jesus Cristo. Isto é fruto de sua vida de fidelidade e de seguimento irrestrito ao Senhor.

Esta transformação interior e exterior, identlficando-se ao Cristo, fazia-o exclamar: “Pois para mim, o viver é Cristo e o morrer é lucro” (Fil 1,21).

Fazer a vontade de Pai

Em todas as situações, consoladoras ou dolorosas, Francisco procurava fazer a vontade do Pai: “Concede-nos que façamos aquilo que sabemos ser de tua vontade e queiramos aquilo que te agrada. E assim purificados e, interiormente abrasados pelo fogo do Espírito Santo, sermos capazes de seguir os passos de teu Filho Jesus Cristo e chegar a ti, ó Altíssimo” (COrd 50-52).

Gostaríamos de lembrar que, desde a Porciúncula, igrejinha de Nossa Senhora dos Anjos, berço da Ordem Franciscana, local de início de sua conversão concluída no Monte Alverne, Francisco fez uma caminhada lenta e progressiva, até sua total configuração com o Crucificado.

Para reflexão

01. Como justificar os estigmas de Francisco?
02. Os sofrimentos ligam-nos aos sofrimentos, à Cruz do Cristo. Como então aceitar a nossa cruz e os nossos sofrimentos?
03. Diante do Cristo crucificado, Francisco chegava às lágrimas. Que mensagem o Cristo da Cruz lhe deLva?

Texto para meditação (CFI5)

“E agora, anuncio-vos uma grande alegria e um milagre extraordinário. Não se ouviu no mundo falar de tal portento, exceto quanto ao Filho de Deus, que é o Cristo Senhor. Algum tempo antes de sua morte, nosso irmão e pai apareceu crucificado, trazendo gravadas em seu corpo as cinco chagas, que são verdadeiramente os estigmas de Cristo. Suas mãos e seus pés estavam traspassa- dos, apresentando uma ferida como de prego, em ambos os lados, e havia cicatrizes da cor escura dos pregos. O seu lado parecia traspassado por uma lança e muitas vezes saíam gotas de sangue”.

Do livro, “Francisco, um Encanto de Vida”, de Frei Atílio Abati, ofm, editora Vozes, 2002.

Do Monte Alverne à irmã morte corporal

Os dois últimos anos da vida de Francisco foram um Calvário! Os problemas na Ordem continuam. Sobretudo, com divisões internas. Vimos há pouco como ele passou a comungar mais profundamente com o mistério de Deus pela prática da misericórdia e da paciência com os pecados dos frades. Francisco se retira no Monte Alverne. Lá, conversa com Deus, lembra-se do Crucificado e, assim, mergulha mais profundamente em seu mistério. Isto é, decide continuar amando seus irmãos, mesmo assim. E o que acontece? Vemo-lo totalmente identificado com Aquele que, na cruz, entregou a própria vida pelos amigos. Vemo-lo de tal maneira em comunhão com o mistério deste amor solidário e misericordioso de Deus que, de repente, as próprias chagas do seu Senhor lhe aparecem no corpo. Hoje se diria: A paixão de Cristo se somatiza na paixão de Francisco. Em outras palavras, escreve Alexander Gerken:

“O que mais crucificou Francisco durante os dois anos anteriores à sua morte foi a divisão da Ordem, que tinha crescido demais até para ele. Sofria vendo a desunião existente nela e como muitos de seus irmãos não podiam ou até não queriam seguir o ideal primitivo. O fato de não abandoná-los, de amá-los, e amá-los em sua fragilidade, ‘até a cruz’,constitui o conteúdo e a causa de sua experiência da cruz no Monte Alverne. O sofrimento pela Ordem lhe gravou as chagas e, a partir de seu amor crente, soube que eram as chagas do Crucificado, que não reteve para si sua própria vida, mas a entregou por todos nós”.

Francisco se sente realmente mergulhado no “segredo” de Deus, seu altíssimo Senhor e Rei, único Bem, referencial único para a construção de uma autêntica fraternidade humana. E, nesta experiência de comunhão total com o modo-de-ser do seu Senhor, consola seu inseparável companheiro Frei Leão, compondo este maravilhoso Hino de Louvor a Deus:

“Vós sois o santo Senhor Deus único, que operais maravilhas! Vós sois o Forte. Vós sois o Grande. Vós sois o Altíssimo. Vós sois o Rei onipotente, santo Pai, Rei do céu e da terra. Vós sois o Trino e Uno, Senhor e Deus, Bem universal. Vós sois o Bem, o Bem universal, o sumo Bem, Senhor e Deus vivo e verdadeiro. Vós sois a delícia do amor. Vós sois a Sabedoria. Vós sois a Humildade. Vós sois a Paciência. Vós sois a Segurança. Vós sois o Descanso. Vós sois a Alegria e Júbilo. Vós sois a Justiça e a Temperança. Vós sois a plenitude da Riqueza…”

Daí em diante, a vida de Francisco foi de atrozes sofrimentos, também corporais. Vivia esmagado por toda sorte de doenças e provações. Mas, ao mesmo tempo, provava incomparável alegria, pois, desse jeito, sentia-se mais e mais em comunhão com seu Senhor crucificado e, neste Senhor, em comunhão com o “coração” de Deus mesmo e, no “coração” de Deus, em comunhão com todos os crucificados da sociedade e todas as criaturas… Por isso, como sempre fora em sua caminhada de contínua conversão, Francisco canta e convida a cantar a grandeza infinita do amor de Deus. Desse Deus que “quis estar com os seres perdidos, os foras-da-lei, os publicanos e os pecadores”, que “conviveu com eles e sentou-se à sua mesa”. Desse Deus que “por fim morreu com eles a morte dos condenados. O Evangelho era esta realidade inaudita: a revelação de um amor divino que nada de humano justifica e que se oferece prioritariamente aos que não podem se prevalecer nem da estima do mundo, nem das posições que ocupam na sociedade, nem de sua riqueza, nem de seu sucesso social, nem mesmo de seus méritos ou de suas virtudes, mas que esperam tudo unicamente da graça de Deus”.

Francisco canta e convida a cantar. Sua vida transforma-se em poesia, porque expressa o sonho mais profundo do ser humano-e-de-Deus, sonho de fraternidade universal. Compõe o famoso Cântico das Criaturas, “o canto de um homem que, durante toda sua vida, trabalhou, lutou, sofreu para que houvesse um pouco mais de fraternidade entre os homens e para que aparecesse, enfim, na sociedade de seu tempo, a humanidade de Deus”. A partir da comunhão profunda com esta “humanidade de Deus”, é que Francisco e seus companheiros “aprenderam a olhar os seres e as coisas, ingênua e fraternalmente, com simplicidade e cortesia. Deixaram de vê-los sob o ângulo de seu valor de venda, para considerá-los como criaturas de Deus, dignos de atenção em si mesmos. Assim descobriram o esplendor do mundo, o esplendor das coisas simples. Seu olhar se deteve, maravilhado, nas realidades mais humildes, mais cotidianas, que eram companheiras de sua vida de pobres: a luz, a água, o fogo, o vento, a terra. Sim, a terra de todos os dias, a terra mãe. Como era bela a seus olhos esta terra, vista para além de toda ambição e de toda vontade de poder! Deixava de ser um campo de luta para tornar-se o lugar da grande fraternidade dos seres: ‘Nossa irmã a Mãe Terra”.

Francisco canta e convida a cantar e celebrar o Amor criador e redentor, sobretudo quando percebe aproximar-se o momento de sua máxima comunhão com o mistério do Deus pobre e solidário, o momento da morte. O momento da máxima experiência de pobreza, pois aí Francisco fará de verdade a experiência de não ser mais dono de nada, nem mesmo da vida. Francisco canta e dá as boas-vindas a esta que ele chama também de “irmã”. Ela é para ele “a porta da vida”. E para celebrar a chegada deste momento de comunhão absoluta com a Pobreza, pede inclusive que deixem seu corpo despido sobre o chão por algum tempo. “E assim chegou a hora”, escreve Tomás de Celano, concluindo: “Tendo completado em si mesmo todos os mistérios de Cristo, voou feliz para Deus”. E Boaventura: “Cumpridos, enfim, todos os desígnios de Deus em Francisco, sua alma santíssima livrou-se da carne para ser absorvida no abismo da claridade de Deus, e dormiu tranquilamente no Senhor”. Realiza-se nele o que havia pedido, parafraseando a oração do Pai-Nosso. “Venha a nós o vosso reino: para que reineis em nós por vossa graça e nos deixeis entrar no vosso reino, onde veremos a vós mesmo sem véu, teremos o amor perfeito a vós, a beatífica comunhão convosco, a fruição de vossa essência”.

Texto do livro “Herança Franciscana”, do capítulo “A experiência de Comunhão com o Mistério de Deus em Francisco de Assis”, de Frei José Ariovaldo da Silva, ofm.

Ele se transformou num outro crucificado pelo amor e pela compaixão

Leonardo Boff

14 de setembro de 1224, festa da exaltação da cruz. Quarenta dias de jejum e orações. No monte Alverne. Nas pedras. No silêncio. Na madrugada. Francisco, voltado para o Oriente, em lágrimas, orava: “Senhor meu, Jesus Cristo, duas graças te peço antes que eu morra: a primeira é que em vida eu sinta na alma e no corpo, quanto for possível, aquelas dores que tu, doce Jesus, suportaste na hora da tua acerbíssima paixão. A segunda é que eu sinta no meu coração, quanto for possível, aquele excessivo amor do qual tu, Filho de Deus, estavas inflamado para voluntariamente suportar uma tal paixão por nós pecadores”.

Francisco pede dor e amor. Na medida em que ia mergulhando na Paixão de Cristo, diz-nos o relato antigo, “todo ele se transformava em Jesus pelo amor e pela com-paixão”.

Nisso, desce do céu o próprio Cristo em forma de Serafim, na imagem de um homem crucificado. Inefável encontro!

Francisco quase morre de alegria pela visão do Amado e de dor pelas chagas do Crucificado. lntuiu que devia se identificar totalmente com Cristo. A dor iria rimar com o amor. O Gólgota e o Calvário se encarnariam em seu corpo.
A montanha inteira se acendeu, se inflamou e iluminou os montes e vales vizinhos, como se houvesse sol sobre a terra.
O calor da ardentíssima Paixão de Jesus se transforma em fogo de amor nos membros de Francisco. Mãos com mãos, pés com pés, lado aberto com lado a se abrir. Irrompem sangrando no corpo do beato Francisco os estigmas do santíssimo Salvador. O alter Christus está pronto. Deu-se uma identificação entre redimido e Redentor como jamais na história. Francisco se transformou na estampa de Cristo: “Despi Francisco e vereis Cristo; vesti Cristo e vereis Francisco”!
Nasceu da cruz e das chagas o homem novo. Agora ele pode cantar o hino da confraternização universal, porque não há mais inimigos, todos se fizeram irmãos e irmãs. Amém. Aleluia!

Do livro “Francisco de Assis, o homem do Paraíso”, 1999, Leonardo Boff, Vozes.

Pe Pio, o sacerdote estigmatizado

Francesco Forgione (1887-1968), o Padre Pio de Pietrelcina, era religioso capuchinho que, por receber os sinais da crucificação de Jesus (as feridas nas mãos, nos pés e no tórax), ficou conhecido como “O Estigmatizado de Gargano” (região onde vivia na Itália).

Os estigmas de Pe. Pio começaram no dia 20 de setembro de 1918 e duraram até 23 de setembro de 1968. Segundo o novo santo da Igreja, canonizado este ano pelo Papa João Paulo II, estava no Coro da Igreja, depois de celebrar a Santa Missa, quando foi surpreendido com os estigmas Seu grito lancinante atravessou a nave da igreja, onde se encontravam alguns de seus confrades em oração. Neste período de calvário de Pe. Pio, vários laudos médicos foram feitos e todos não conseguiram classificar os estigmas dentro da clínica médica.

Acompanhe este relatório do Dr. Romanelli, que o examinou por cinco vezes em quinze meses.

“Padre Pio tem um corte profundo, paralelo às costelas, no quinto espaço intercostal de seu lado esquerdo, medindo de 7 a 8 cm de comprimento. Na lesão das mãos, há grande abundância de sangue arterial. Contudo não se verifica inflamação alguma nas bordas da ferida, mas tornou-se uma zona de grande sensibilidade ao menor toque. A ferida das mãos apresenta-se recoberta por uma membrana de um vermelho escuro, mas também não se verifica inflamação, nem edema. Quando pressionei com meus próprios dedos a palma e o dorso das mãos, tive a impressão de haver um espaço vazio. Pressionando as feridas desta forma (na palma e no dorso da mão), não se pode saber se elas se comunicam, pois uma pressão mais forte causa uma dor lancinante. No entanto, repetindo várias vezes a experiência, pela manhã e à tarde, cheguei à mesma conclusão. A lesão dos pés tem as mesmas características da lesão das mãos, mas devido à pele dos pés ser mais espessa, fica difícil de repetir a experiência das mãos.

Examinei Padre Pio cinco vezes, num período de quinze meses. Embora tenha notado certas modificações nos ferimentos, não me foi possível diagnosticar ou mesmo classificar suas lesões, segundo as cânones da clínica médica

O Monte Alverne

Na Toscana, existe um monte rochoso e coberto de bosques, inacessível e sublime, com fendas horríveis cobertas de musgo e de frescor. Há muitos anos, o conde Orlando de Chiusi lho doara, em sinal de devoção, para que se servisse dele nos seus encontros com Deus.

Em agosto de 1224 subiu Francisco com alguns irmãos os mil e trezentos metros do Monte Alverne. É difícil ao turista que sobe hoje de automóvel esse monte, imaginar o que significava para Francisco, já esgotado, viajar a lombo de burro pelos caminhos sinuosos até chegar ao cimo da montanha, onde ela parece abrir-se subitamente, oferecendo, do alto duma rocha íngreme, vista para os vales lá embaixo. Cuidados, privações e enfermidades tinham enfraquecido o corpo desse homem de quarenta e dois anos. Francisco sempre se sentiu à vontade nos cumes das montanhas. Desejava afastar-se das últimas preocupações a respeito de sua Ordem, das decepções e da falta de compreensão. Pediu que o levassem a uma abertura na rocha, onde ainda se vê uma grade no lugar em que ele dormia; pode-se supor que não foi mudada muita coisa naqueles blocos de pedra úmidos e mofados.

Ano após ano, penetrava cada vez mais na essência de Deus até chegar à mais elevada forma que se possa imaginar na terra: à contemplação mística de Deus. É esta contemplação mística que ele experimentará de uma forma única na solidão do Alverne, pelo espaço de quarenta dias (de 15 de agosto até 29 de setembro, festa de São Miguel). Ele se retira do convívio de seus irmãos e só o irmão Leão pode lhe levar diariamente um pouco de pão e água durante a sua viagem mística ao invisível.

(Do livro Francisco de Assis, Profeta de Nosso Tempo, de N. G. Van Doornik)

O perfeito amor de São Francisco ao crucificado

Frei João Mannes, OFM

No dia 17 de setembro celebra-se a festa da impressão das chagas de São Francisco de Assis. Os estigmas que Francisco recebeu em 1224, no Monte Alverne, após uma visão do Cristo crucificado em forma de Serafim alado, são sinais visíveis de sua semelhança à humanidade de Cristo, nos seus três modos: na vida, na paixão e na ressurreição.

Francisco encontrou-se pela primeira vez com o Crucificado na pequena Igreja de São Damião. Num certo dia, conduzido pelo Espírito, entrou nessa Igreja e prostrou-se diante da imagem do Cristo crucificado que, movendo de forma inaudita os seus lábios, disse: “Francisco, vai e restaura minha casa que, como vês, está toda destruída” (2Cel 10,5). E, conta-nos Celano, que Francisco sentiu desde então uma inefável mudança em si mesmo, pois são impressos mais profundamente no seu coração, embora ainda não na carne, os estigmas da venerável paixão.

No entanto, foi ao ouvir o Evangelho acerca da missão dos apóstolos (Mt 10, 7-13), que Francisco compreendeu o real significado da voz do Crucificado, e imediatamente exclamou: “É isto que eu quero, é isto que eu procuro, é isto que eu desejo fazer do íntimo do coração” (1Cel 8,22). Assim, sob o toque ou o apelo de uma afeição, começou devotadamente a colocar em prática o que ouvira, isto é, distribuiu aos pobres todos os seus bens materiais, bem como renegou-se a si mesmo para que, exterior e interiormente livre, pudesse ir pelo mundo e anunciar aos homens a paz, a penitência e, enfim, o amor não amado de Deus.

O amor que é Deus realizou-se na sua profundeza, largura e altitude na pessoa de Jesus Cristo. A encarnação, o estábulo, o lava-pés e a Eucaristia são expressões concretas do modo de amar como só o Deus de Jesus Cristo pode e sabe amar. Porém, foi especialmente ao entregar incondicional e gratuitamente a sua vida na Cruz, que o Filho de Deus revelou à humanidade que Deus é essencialmente caridade perfeita.

Francisco, por inspiração divina, abraçou pobre e humildemente a cruz de Jesus e deixou-se impregnar, arrebatar e transformar totalmente pelo espírito de abnegação divina. Isso quer dizer que a imitação de Cristo, por parte de Francisco, não é mera repetição mecânica dos gestos exteriores de Jesus, mas é manifestação de sua profunda sintonia com a experiência originária de Jesus Cristo: o Reino de Deus. Somente quem possui o Espírito do Senhor pode observar “com simplicidade e pureza” a Regra e o Testamento de São Francisco e realizar em si mesmo as santas operações do Senhor.

Na Terceira consideração dos sacrossantos estigmas considera-se que, aproximando-se a festa da Santa Cruz no mês de setembro, o pai Francisco, na hora do alvorecer, se pôs em oração, diante da saída de sua cela, e entre lágrimas orava desta forma: “Ó Senhor meu Jesus Cristo, duas graças te peço que me faças antes que eu morra: a primeira é que em vida eu sinta na alma e no corpo, quanto for possível, aquelas dores que tu, doce Jesus, suportaste na hora da tua acerbíssima paixão; a segunda é que eu sinta no meu coração, quanto for possível, aquele excessivo amor do qual tu, Filho de Deus, estavas inflamado para voluntariamente suportar uma tal paixão por nós pecadores”(I Fioretti)). E, relata Boaventura que, enquanto Francisco rezava, “viu um Serafim que tinha seis asas (cf. Is 6,2) tão inflamadas quão esplêndidas a descer da sublimidade dos céus. E […] apareceu entre as asas a imagem de um homem crucificado que tinha as mãos em forma de cruz e os pés estendidos e pregados na cruz. […] Imediatamente começaram a aparecer nas mãos e nos pés dele os sinais dos cravos” (LM 13,3). Assim, Francisco transformara-se todo na semelhança de Cristo crucificado (cf LM 13,5). Pois, de fato, trazia Jesus no coração, na boca, nos ouvidos, nos olhos, nas mãos, nos sentimentos e em todos os demais membros (cf. I Cel 9,115), e conseqüentemente podia exclamar com o apóstolo Paulo: “Eu vivo, mas já não sou eu, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).

O Pobre de Assis, no seguimento de Jesus Cristo, perdeu a sua própria vida, mas recuperou-a inteiramente em Deus, de acordo com a palavra do Evangelho: “Quem perder a sua vida por causa de mim vai encontrá-la” (Mt 12,25). Todavia, Francisco não somente reencontrou a si mesmo em Deus, como filho de Deus, mas a todos os seres do universo. O Cânticodas Criaturas, que compôs pouco antes de sua morte corporal, é expressão jubilosa dessa intensa experiência eco-espiritual: “Louvado sejas meu Senhor, com todas as tuas criaturas”.

O pai Francisco tornou-se assim um mestre na sequella Iesu. De imediato despertou o fascínio de muitas pessoas e atraiu muitos discípulos e discípulas, entre as quais, Santa Clara. Clara e suas Irmãs, a exemplo de Francisco, também querem chegar ao cimo da montanha da perfeição do amor. A propósito subscrevemos parte do VII capítulo (Do perfeito amor de Deus) de um interessantíssimo opúsculo que Boaventura escreveu à abadessa das Irmãs, do convento de Assis, sobre A perfeição da vida:

“Não é possível excogitar um meio mais apto e mais fácil para mortificar os vícios, para progredir na graça, para atingir o auge de todas as virtudes do que a caridade. Por isso diz Próspero, no seu livro Sobre a vida Contemplativa: “A caridade é a vida das virtudes e a morte dos vícios”. Como a cera se derrete diante do fogo, assim os vícios perecem diante da caridade. Porque a caridade possui tanto poder que só ela fecha o inferno, só ela abre o céu, só ela dá a esperança da salvação, só ela nos torna dignos do amor de Deus. Tal poder possui a caridade que entre todas as virtudes só ela é chamada propriamente virtude. Quem a possui é rico, tem abundância, é feliz. […] E diz Santo Agostinho: “Se a virtude conduz a uma vida bem-aventurada, eu quisera afirmar em absoluto que nada é propriamente virtude senão o sumo amor de Deus”. Sendo, por conseguinte, o amor de Deus uma virtude tão elevada, cumpre insistir em alcançá-lo acima de todas as demais virtudes; porém, não um amor qualquer, mas só aquele com que Deus é amado sobre todas as coisas e o próximo por amor de Deus.

O modo de amar a teu Criador ensina-o o teu esposo no evangelho: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma e de todo o teu espírito. Repara bem, caríssima serva de Jesus Cristo, que amor o teu dileto esposo exige de ti. Quer o teu amado que ao seu amor dediques todo o teu coração, toda a tua alma, todo o teu espírito, de sorte que absolutamente ninguém em todo o teu coração, em toda a tua alma, em todo o teu espírito, tenha parte com ele. Que, pois, fará para amares o Senhor teu Deus realmente de todo o coração? Que quer dizer: de todo o coração? Vê como São João Crisóstomo ensina: “Amar a Deus de todo o coração significa não estar o teu coração inclinado a nenhuma outra coisa mais do que ao amor de Deus; não te comprazeres nas coisas desse mundo mais do que em Deus, nem nas honras, nem mesmo nos pais. Se, todavia, o teu coração se ocupar em alguma destas coisas, já não o amas de todo o coração”. Peço-te, serva de Cristo, não te iludas. Fica sabendo que, se amas alguma coisa, e não a amas em Deus e por Deus, já não o amas de todo o coração. Por isso diz Santo Agostinho: “Senhor, menos te ama quem ama alguma coisa contigo”. Se amas alguma coisa que não te faz progredir no amor de Deus, não o amas de todo coração. E se, por amor de alguma coisa, negligencias aquilo que deves a Cristo, já não o amas de todo o coração. Ama, pois, o Senhor teu Deus de todo o coração.

Não somente de todo o coração, mas também de toda a alma devemos amar a Jesus Cristo, nosso Deus e Senhor. Que significa: de toda a alma? Vai dizê-lo Santo Agostinho: “Amar a Deus de toda a alma é amá-lo com toda a vontade, sem restrições”. Amarás, certamente, de toda a alma, se sem contradição e de boa vontade fizeres não o que tu queres, nem o que aconselha o mundo, nem o que te inspira a carne, mas aquilo que reconheceres como sendo a vontade de Deus. Amarás, de fato, a Deus de toda a tua alma quando por amor de Jesus Cristo entregares de boa vontade tua vida à morte, sendo necessário. Se nisto, porém, faltares, já não amas de toda a alma. Ama, pois, ao Senhor teu Deus de toda a tua alma, isto é, faze a tua vontade sempre em conformidade com a vontade divina.

Entretanto, não só de todo o coração, não só de toda a alma, deves amar o teu esposo, Jesus Cristo. Ama-o também de todo o teu espírito. Que quer dizer: de todo o teu espírito? Di-lo novamente Santo Agostinho: “Amar a Deus de todo o espírito, é amá-lo com toda a memória, sem esquecimento”. (in: Obras Escolhidas. Porto Alegre: EST, 1983, p. 433-435).

Uma relíquia viva descia da montanha

Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

Desde a infância muitos de nós fomos aprendendo a gostar desse Francisco. Francisco das coisas pequenas, simples,  irmão do sol, das estrelas, da água, do leproso e de frei Leão, Francisco, cheio de carinho para com o Menino das Palhas e o Jesus bondoso e pobre que morre na cruz, esse Jesus que é o amor que precisa ser amado.

São Boaventura escreve: “Francisco, servo verdadeiramente fiel e ministro de Cristo, dois anos antes de devolver o espírito ao céu, como tivesse começado num lugar alto, à parte que se chama Monte Alverne e, um jejum quaresmal em honra do Arcanjo São Miguel, inundado mais profusamente pela suavidade da contemplação do alto e abrasado pela chama mais ardente dos desejos celestes, começou a sentir mais copiosamente os dons da ação do alto. Então, enquanto se elevava a Deus pelos seráficos ardores e o afeto se transformava em compassiva ternura para com aquele que por caridade excessiva quis ser crucificado, numa manhã, pela festa da Exaltação da Santa Cruz, rezando na parte lateral do monte, ele viu como que a figura de um Serafim que tinha seis asas tão fúlgidas, tão inflamadas a descer da sublimidade dos céus, o qual chegando com um vôo rapidíssimo num  lugar próximo ao homem de Deus, apareceu não somente alado, mas também crucificado, tendo as mãos e os pés estendidos, e pregados à cruz e as asas de modo tão maravilhoso dispostas de uma e outra parte que elevava duas sobre a cabeça, estendia duas para voar e com as outras duas velava o corpo, envolvendo-o todo (…). Depois de um certo colóquio secreto e familiar, ao desaparecer, a visão inflamou-lhe interiormente o espírito com ardor seráfico e marcou-lhe exteriormente a carne com a imagem do Crucificado, como se ao poder prévio de derreter o fogo seguisse uma impressão do selo” ( Legenda Menor – Os sagrados estigmas, n.1).

Dois anos antes de morrer, Francisco vai ao Monte Alverne. O santo vinha do Oriente, cansado, doente, vendo que, talvez seus irmãos, numerosos, estavam perdendo o ardor dos começos. Francisco, sem amargura, sente vontade de tomar certa distância dos fatos e dos acontecimentos.  O Santo se dava conta que estava no final de sua caminhada. Tinha dores em todo o corpo. Estava tomado por estas febres loucas e enxergava mal. Não podia mais suportar a luminosidade do  Irmão Sol. Era o tempo da festa da Exaltação da Santa Cruz. Quer fazer a quaresma de São Miguel no silêncio,  na meditação, ao lado de seu Frei Leão.  Quer estar mais perto de seu Senhor.

Toda sua vida fora busca de Cristo. Um dia ele teria formulado uma oração no seguinte teor: “Senhor, gostaria de ser digno de receber duas graças de vossa parte: experimentar em meu coração o amor que tiveste para com os homens e sentir a dor de tua acerbíssima paixão”. Esta súplica foi sento atendida pelo Senhor ao longo do tempo da vida de seu servo Francisco.  Durante anos e anos, depois de sua conversão, ele sempre buscar entrar na intimidade do Senhor Jesus na grutas, nos caminhos, contemplando o rosto dos leprosos. Aos poucos esse Francesco foi “tendo os mesmos sentimentos de Cristo Jesus”. Foi se abrasando no amor de Cristo. Cristo é o Vivo que queima e arde. Estamos diante da mística. Do amado que seduz a amada. Francisco e Cristo se tornam uma unidade. Há uma identificação mística. Francisco continua Francisco e Cristo continua Cristo. Nasce no coração do assisiense o desejo de viver também as dores e os sofrimentos de Cristo.

Eloi Leclerc tenta descrever esse momento: “… a alma de Francisco se rasgava e sentimentos contraditórios se debatiam dentro dele. A inefável beleza do serafim e seu olhar benevolente e cheio de graça o fascinavam e  o enchiam de alegria. Ao mesmo tempo, no entanto, o sofrimento do crucificado o aterrorizava. Perguntava-se, então: Como um espírito glorioso, imortal e tão belo podia sofrer a mais cruel agonia?  Não sabia o que pensar. A agonia estava junto com o êxtase. A Paixão e a Glória, associadas de maneira estranha,  pareciam cair sobre ele como um pássaro de rapina” ( in Francisco de Assis. O retorno ao Evangelho,  p. 108).

Francisco não é mais dono de si. Aos poucos, ao longo dos anos da vida, ele foi se despedindo de si, se despojando, esvaziando-se de si mesmo e no espaço do vazio veio o êxtase. O amado ganha a força do amor do Amante. Quem puder compreender, que compreenda.  Talvez esse Francisco pudesse dizer com Paulo:  Não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim!

Paul Claudel, tentando penetrar no Francisco que desce do monte, escreve: “Francisco  tinha dado sua alma de tal forma que nem mesmo seu corpo conserva mais. Quando se lhe pede uma explicação, nada tem a nos dizer. Ele é propriedade de alguém que não explica, mas plenifica. É todo inteiro doação, como um esposo ou um recém-nascido. Caminha ao olhar de todos os homens como alguém que está inebriado, como um esposo que geme e que sorri, cambaleante e ferido de uma glória da qual ele é o inexplicável consorte.  Quem desce trôpego do Alverne e mostra chaga e cicatriz secretamente a Clara é Jesus Cristo com Francisco, fazendo uma única realidade viva, sofredora e redentora”  (cf. E.Leclerc, op. cit. p. 109).

A partir desse momento Francisco tem o selo do Amado gravado em seu coração e em sua carne. Agora era uma relíquia viva descendo a montanha.  Nós, filhos de Francisco  das chagas e das transfigurações, nos recolhemos no silêncio e tentamos pedir a Deus que pela intercessão do Francisco das Chagas nos leva ao Cristo iluminado, transfigurado e ressuscitado.

Francisco da minha vida

Francisco,
pequeno e grande Francisco,
tu continuas vivo entre nós.

Tu és o meu irmão, meu irmão mais velho,
meu irmão modelo,meu irmão da roupa marrom,
das chagas douradas na mão
nos pés e no coração,
apaixonado pelo Senhor Jesus.

Gosto de te contemplar
erguendo os braços ébrio de amor,
cantando os louvores do Altíssimo, Onipotente
e grande Senhor!
Acompanho-te pelas ruas de Assis
com o irmão sol que te aquece  o  rosto,
pegando nas mãos a irmãzinha água
tão casta e tão transparente,
pisando na terra mãe
que produz variedade de flores e frutos.
Gosto de ver teu olhar acompanhar os irmãos,
os irmãos leprosos que chamavas de irmãos cristãos,
olhando os irmãos que te seguem,
todos eles que são filhos do Altíssimo.
Espreito-te ao jogares tuas roupas
nas mãos de teu pai e a proclamares solenemente
que o teu Pai está nos céus.
Aplaudo-te quando dizes
que os teus seguidores serão menores
e nunca hão de se alegrar,  a não ser com
o último de todos os lugares.
Vejo-te percorrendo as ruas e ruelas
da meiga Assis dizendo a todos que o Amor
não é amado.
Aprecio a tua coragem de partir sem segurança,
sem sacola e sem dinheiro
para dizer a todos os homens
que chegou o Reino novo
do Filho de Virgem Maria.
Recolho-me num cantinho
e vejo que sais da contemplação
com as chagas de Cristo Jesus
nas mãos, nos pés e no coração.
Morro e renasço contigo
quando  cantas o salmo que fala que é preciso
que Deus nos tire desta prisão.
Francisco de ontem e de sempre,
Francisco da roupa marrom,
Francisco da minha vida!

Uma montanha toda resplendente…

Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

De agora em diante que ninguém me moleste:  trago em meu corpo as chagas de Jesus Cristo (Gálatas 6,17)

1. Quando eu era criança, lá pelos idos de 1945, com meus 7 anos, folheando um livro de orações de minha mãe, que se chamava, se não me engano Maná, encontrei um santinho que me intrigava. Havia um homem, ajoelhado, vestido de marrom, como os freis que celebravam na Capela de Nossa Senhora das Vitórias na Vila dos Sargentos, em Petrópolis. Ele olhava para o alto, na direção de um anjo diferente. Este, por sua vez, tinha o rosto de homem. Parecia-me, nos meus sete anos, um rosto de Cristo. E esse Cristo diferente, tinha muitas asas. Aquilo tudo me parecia muito estranho e, ao mesmo tempo, eu me sentia misteriosamente atraído por aquele santinho. Muitas vezes eu voltava a procurá-lo no livro de minha mãe. E ficava agoniado enquanto não o achava. Saíam raios do corpo do homem Cristo, anjo, que atingiam as mãos, os pés e o lado desse outro homem de marrom, ajoelhado e com os olhos arregalados… Mais tarde quando cresci, quando não tinha mais o jeito do menino de 7 anos, soube que se tratava da estigmatização de Francisco de Assis. Isso compreendi bem mais tarde, bem mais tarde mesmo. E o dia 17 de setembro, passou a ter um significado grande para mim. Achava que esse dia deveria ser feriado religioso. Afinal, um homem com as chagas de Jesus… Um dia desses vi um título de uma autora italiana que abordava a questão da invenção das chagas de Francisco por parte de Frei Elias… Compreendo que se façam estudos críticos. Mas…Bem, aqui não é o espaço para uma discussão sobre esse assunto. Os interessados procurem o livro de Chiara Frugoni, Francesco e l’invenzione delle stimmate, Torino, Eunaudi, 1993). Um confrade, cujo nome não declina, me disse que autora é tendenciosa (sic). Quando penso na comemoração das chagas sempre vem à minha mente as palavras da epístola aos Gálatas: “De agora em diante que ninguém me moleste: trago em meu corpo as chagas de Jesus Cristo”.

2. As circunstâncias e a bondade do Senhor me permitiram, agora, aos setenta anos, voltar uma vez mais ao Alverne. Tive a graça de passar uma semana nas alturas alvernianas…nessa montanha toda radiosa e esplendorosa. Saindo de Roma cheguei a La Verna pelas 14horas do sábado, 18 de outubro, festa de São Lucas. O trem chegou a Arezzo, uma bela cidadezinha do vale casentino ou tiberino, e dali tomei um outro pequeno trem até Bibbiena e depois um pullman até Chiusi de La Verna, lá onde estava o castelo do Conde Orlando. Uma irmã franciscana indiana teve a caridade de providenciar para mim uma carona até as dependências do convento dos frades da Província Toscana dos Sagrados Estigmas do Pai Seráfico. Percorri muito feliz os três quilômetros que separavam a casa as irmãs da entrada do convento. Outono. Folhas pela estrada. Nas árvores, todas as cores. Amarelo vivo, amarelo esmaecido, vermelho, marrom e aqueles pinheiros cujas folhas não fenecem… Um sol das três da tarde e uma sensação de beleza, de delicadeza. Sim, La Verna é marcado pela beleza e doçura, mas também pela rudeza. Aquelas pedras cinza claro que estavam ali, com profundos cortes, fissuradas. Conta-se que essas rachaduras se deram no momento da morte de Cristo. Uns poucos pássaros voavam. Ainda não fazia frio naqueles dias de outubro. Mas o ar fresco de fundo anunciava o inverno.

3. Não preciso e nem quero evocar todos os pormenores das Fontes a respeito do assunto. Sei, sei perfeitamente que os queridos biógrafos embelezaram as coisas segundo os ditames da hagiografia do tempo…Francisco, os frades, Leão, o falcão, as celas do Pai Seráfico, as tentações do diabo. Sabemos tudo isso. Por isso, quando se vai a La Verna é preciso tirar as sandálias dos pés. E deixar que o mistério da montanha reluzente, transparente nos envolva. Será preciso sentar-se nas estalas pequenas da Igreja dos Estigmas. Escutar as batidas do coração, nosso de Francisco e dos oitocentos anos da aprovação de nosso estilo de vida, da forma de vida segundo o Evangelho.

4. La Verna abriga uma comunidade de uns vinte frades. São os guardiães do local onde Deus quis manifestar-se, ainda uma vez, a Francisco, agora de maneira definitiva. Francisco já tinha tido outras revelações: que ele devia viver segundo o evangelho, respeitar as igrejas, a eucaristia, os sacerdotes, a palavra, a Igreja, os bispos, o Senhor Papa. Agora acontecia a grande manifestação. O esposo tomava conta definitivamente do amado. Esse Francisco que tinha ido pelo mundo afora chorando e dizendo que o amor precisava ser amado agora, ali, na rudeza do La Verna, era beijado definitivamente pelo Amante. Não perguntem muita coisa a Francisco. La Verna não se explica. É o desfecho maravilhoso de uma existência que foi se descentrando e se abismando na força da simplicidade pobre de um Deus que anda loucamente procurando esses seres que se chamam homens e mulheres… Sim, Francisco sentia no peito o amor do Senhor Jesus e, em seus membros, a dor da Palavra de Deus, do Verbo que havia tomado carne no seio da pobrezinha da Virgem. La Verna, a céu aberto, nas imediações da Festa da Santa Cruz, se tornava o grande espaço do enlace do pobrezinho que havia se identificado com Cristo, e se revestido até o fim das vestes da singeleza pobre. As chagas nas mãos, nos pés e no coração…Não, certamente elas não foram inventadas por Frei Elias… “De agora em diante que ninguém moleste: trago nos meus membros as chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo”.

5. Sim, ele já as trazia há muito tempo…porque sofria ao ver que o amor não era amado, porque sentia dor em constatar que muitos miseráveis eram abandonados, sofria com as dores de seu corpo, de seus olhos, de seu estômago, mas sobretudo porque se dava conta que ele mesmo estava sendo abandonado pelos seus irmãos…”Escreve, frei Leão, que a verdadeira, a perfeita alegria não consiste nas grandes pregações, nas conversões em massa, no alarido que eventualmente os frades podem fazer, nem na solenidade de suas preleções na universidade de Paris, ou de não sei onde, mas em aceitar esse negativo da vida, sem reclamar, carregando a cruz de Cristo, essa dor doída de sentir que não se conta mais… Quando chegarmos, frei Leão, à Porciúncula, se formos mal recebidos, não importa. Ali mostraremos ter compreendido o sentido verdadeiro da alegria que nasce da cruz. E agora, por favor,não me molestem. Trago nos meus membros as chagas do Senhor”.

6. O tempo passado em La Verna foi diferente, na sua cotidianidade. Todos os dias, às 7h, havia o Oficio das Leituras, recitado. O silêncio era total fora e dentro da Basílica grande. Os frades chegavam de hábito, noviços, mestre, guardião, frades do eremitério, vice mestre e até um frade de Petrópolis. Os salmos, as leituras… Parecia-me estranho ouvir o pedido de Ester ao rei para poupar seu povo ali, naquele quadro. A Palavra e as palavras chegavam ao fundo do ser…geravam vida…Depois vinham as Laudes, quase sempre cantadas, com melodias bonitas, acompanhamento de órgão, por vezes, até incenso. Chamava minha atenção o ambão das leituras. A peça moderna recebia uma iluminação direta muito bonita. Mateo, o noviço, lia italianamente todas as coisas de seu livro, com sobrepeliz, cabelo curto, pulôver por sobre o hábito…

7. Todos os dias, às 15h, depois da Noa, cantada e recitada, não nos bancos da igreja grande, mas num coro de estalas por detrás do altar datadas do século XVII. Depois dos salmos a procissão até o local dos estigmas, os hinos, a leitura de um texto das Fontes relativo aos estigmas. Era o momento cotidiano de lembrar os eventos de tempos passados e recordar os estigmatizados de nossos tempos, em nossas casas, nas paróquias, na vida… E ali, naquele espaço, sempre me lembrava de Leão: os Louvores do Deus Altíssimo, o carinho por Francisco, a ternura do Pai por ele, e a bênção, essa benção de São Francisco que faz tanto bem. Os guardiães deveriam abençoar mais vezes os irmãos com estas palavras tão lindas do Livro dos Números…

8. Voltávamos a nos encontrar na Igreja grande para as Vésperas, às 18,30 e depois para meia hora de meditação. Gostava muito de me assentar no quarto banco tendo perto de mim o trabalho de Andrea della Robbia que representa o anúncio do Anjo a Maria. Depois vinha a janta…. vocês sabem.. com massa, carne, queijo, vinho, uvas dulcíssimas, torta com as mesmas, pão italiano, muito pão italiano…

9. Verdade, meus amigos que, muitos e muitos turistas ali se reúnem com suas máquinas de fotografia…sempre fotografias…Muitos não se apercebem do mistério… Os frades fazem o que podem…mas eles precisam ser gentis, cativar as pessoas… e nem sempre esse festival de fotos combina com o quadro do Alverne.

10. Gostaria ainda de dizer duas palavras. Experimentava muita alegria e mesmo emoção quando me dirigia ao Precipício. Dizem que Francisco foi tentado ali. Mas a paisagem é esplendorosa. De lá se avistava tudo. Bem no meio está Bibbiena, uma cidadezinha charmosa. Um dia ela estava coberta pela nevoa e, nas alturas da Montanha, havia sol. Sabem… havia um tipo de gente que perturbava aquele majestático silêncio. Refiro-me aos motoqueiros que, lá embaixo, em Chuisi de La Verna, corriam feito doidos e sempre barulhentamente… Penso que estive nesse espaço do Precipio todos os dias do retiro e mesmo mais de uma vez. Aliás estive em Bibbiena com um frade no hospital regional. Ao cortar a unha do anular da mão esquerda avancei demais e deu uma infecção. Foi preciso ver um médico. Tudo saiu bem, burocraticamente bem, ser versar uma fração de euro. Assim consta de minha folha: “Il paziente presenta a livello de la falange distale del 4 dito de la mano dx una flogosi locale che interessa il dito a tuto spessore”. Por fim: “Si consiglano impacchi com acqua calda e terapia antibiotica” Depois tive que buscar autorização e receita de uma doutora para a questão do antibiótico. E esta era uma sudanesa que tinha sido adotada por uma família italiana ainda criança, se formara em medicina e se casara com um cidadão toscano.

11. A segunda palavra é a respeito da Igreja de Nossa Senhora dos Anjos que teria existido, na sua forma mais primitiva, no tempo de Francisco. Há um retábulo de Andrea della Robbia magnífico representando a Assunção de Maria, cercada de anjos por todos os lados, anjos de todos os jeitos, uns sorridentes, outros descansando a mão no queixo e nas bochechas. Era bom ficar ali uns quinze minutos olhando aqueles anjos brancos num fundo azul…e a delicadeza de Maria. Há uma forte presença de Nossa Senhora nas terras alverianas…

12. “De agora em diante que ninguém me incomode: trago nos meus membros a paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Nesse tempo de preparação das comemorações dos oitocentos anos da aprovação da proto-regra é bom trazer à mente tudo aquilo que significa o Alverne, síntese de uma vida, da vida de Francisco. Depois, Francisco desceu a Montanha resplandecente. Deve ter olhado para trás algumas vezes lembrando-se das núpcias ali realizadas e vividas. Quem descia trôpego era o Francesco dos sonhos das coisas grandes, da vontade de se casar com a mulher mais bonita da face da terra, o Francesco que rodopiava e dançava diante de Deus como se fosse um bailarino, o Francisco que jogava esmolas para os pobres, o Francesco que comia uvas com o irmão doente, o nosso irmão Francesco….que compreendeu como nunca que o amor precisava ser amado. Será que as teorias a respeito da evangelização não esquecem que antes tudo está esse desejo de que o amor seja amado? Ou será que estou enganado?

13. No alto do Alverne pensei em muitas pessoas. Pensei de modo especial em Frei Mateus Hoepers a quem devo a alegria de me ter tornado franciscano. Ele, com seu jeito meio dele, sua voz enorme, seu corpo imenso parecia uma criança quando falava de Francisco. Pensei nele. E agradeci ter entrado na Ordem apesar de meus e de minhas limitações. Pensei também nos frades estudantes de Petrópolis, de modo especial, no grupo que mora no Sagrado. Alguns deles são seres excepcionais. Que Deus os conserve e que eles possam renovar a vida franciscana de nossa Província. Muitos deles são melhores, enormemente melhores do que nós fomos, nos que vamos comemorar em 19 de dezembro de 2008 os cinquenta anos de ingresso no Noviciado.

14. Quase no final. Não posso e nâo quero deixar de dizer que, no alto de uma outra montanha, no Morro de Fátima, em Petrópolis, no dia 7 de junho de 1957, tomei a decisão de ser franciscano. Frei Abílio um dia vai me deixar celebrar lá.

15. Gostaria que minha irmã vasculhasse todas as coisas do sótão de sua casa para ver se descobre onde está aquele santinho. Nunca mais, nos meus 70 anos de vida, encontrei um santinho como aquele.

Terminam aqui as considerações pouco costuradas a respeito de uma montanha resplendente…

Os estigmas de Francisco de Assis e o segredo da suprema felicidade

Dom Laurence Freeman, OSB (*)

Junho de 1998, Festa de Corpus Christi
Queridos amigos:

Sessenta e cinco meditantes de vários continentes se reuniram recentemente em um Retiro silencioso de uma semana, no Monte Alverne, o lugar de peregrinação na Toscana,  onde São Francisco de Assis (1182-1226) recebeu os estigmas em 1224, dois anos antes de sua morte. Passamos a noite do primeiro dia de viagem ao pé do monte e logo cedo, no ar fresco e ensolarado da manhã seguinte, fizemos vagarosamente e em silêncio o caminho da forte subida que leva ao santuário.

Paramos na Capela dos Pássaros para escutar o sublime canto que recebeu Francisco e seus três companheiros quando ali chegaram e ele se viu cercado alegremente pelos pássaros, confirmando que tinha vindo ao lugar certo. Francisco fora ao monte para um jejum de quarenta dias em preparação à chegada da Irmã Morte cuja rápida aproximação pressentia.

Depois de nos alojarmos na simples Casa Franciscana de Retiros, e começarmos a sentir o ambiente desse lugar intenso e sagrado, concordamos em nos fazer uma pergunta preliminar simples. Por que tínhamos ido para lá? Como a maioria das perguntas simples, ela foi uma chave que abriu muitas portas. Afinal, no silêncio em que estávamos então entrando, a pergunta levou a outras perguntas igualmente básicas, relacionadas à consciência e à vida espiritual, que nos levaram ao limite do pensamento e, assim, à luz de Deus dentro de nós: Quem sou eu? Quem é Deus?

A história da experiência de oração de Francisco no lugar sagrado do Monte Alverne nos enriqueceu, desafiou e guiou dia após dia. Ficamos sabendo como ele se aprofundou cada vez mais na solidão, durante sua estadia ali, alternadamente fustigado por seus demônios interiores e consolado por visitas angélicas. Nisto, ele perseverou até que chegou à experiência que culminou na união com a humanidade de Cristo, o que tornou esse lugar tão sagrado, não somente para seus seguidores franciscanos, mas também de grande significado para toda a tradição cristã de oração.

Na noite de 14 de setembro, Festa da Santa Cruz, seu fiel amigo e companheiro, Frei Leão, desobedeceu às instruções de Francisco e penetrou na solidão de sua reclusão para ver como ele estava. À luz do luar, Frei Leão viu Francisco de joelhos em oração, repetindo com todo o fervor as perguntas que se encontram no centro de toda oração cristã: “Quem és tu, meu doce Deus… Quem sou eu, teu servo inútil?”“E somente estas palavras repetiu e nada mais disse” – conta-nos São Boaventura, seu biógrafo. Frei Leão viu o fogo que descia sobre a cabeça de Francisco, envolvendo-o por muito tempo.

Quando Francisco afinal o notou, Frei Leão perguntou o que significava tudo aquilo. Francisco respondeu que ele tinha recebido duas luzes para a sua alma; o conhecimento e a compreensão de si mesmo, e o conhecimento e a compreensão de Deus. Nesta oração no fogo, Deus lhe pediu três dádivas e ele buscou em sua pobreza até encontrar uma bola de ouro que ofereceu três vezes: a doação dos seus votos.

Após dizer a Frei Leão que não o espionasse mais, Francisco dirigiu-se à Bíblia para saber a que estaria sendo preparado – e em cada consulta ele foi encaminhado para a Paixão de Jesus Cristo. Retornou então à oração solitária, “tendo muita consolação na contemplação”. Sentiu-se depois impelido a pedir não somente a graça de sentir a dor de Cristo, mas também o amor que possibilitou a Cristo suportá-la por nós. Começou a contemplar a Paixão com profunda devoção até que “se transformou completamente em Jesus por meio do amor e da compaixão”.

Na manhã seguinte, ele viu um serafim aproximar-se na forma de Jesus Crucificado. Ele se sentiu repleto, simultaneamente, de medo e alegria, deslumbramento e tristeza. E foi-lhe dada a percepção de que sua transformação em Cristo não aconteceria por sofrimento físico, mas “por uma elevação da mente” – a transformação da consciência em amor. Entretanto, o sinal desta transformação seria a marca permanente das cinco chagas divinas de Cristo no corpo de Francisco. Pouco depois, Francisco deixou o Monte Alverne e retornou à cidade de Assis, para morrer “com a chama do amor divino em seu coração e as marcas da Paixão em sua carne”. Com humildade, perguntou a seus irmãos se deveria tornar pública a informação sobre seus estigmas, e convenceu-se de que deveria quando lhe disseram que a experiência deveria ter um significado não somente para ele, mas também para os outros.

MISTÉRIO E SIGNIFICADO

Houve diversas reações entre nós ao ouvir esta história. O elemento de ligação de todas foi um reverente senso de mistério – a experiência que não pode ser aplicada adequadamente pela razão – e a necessidade de expressar reverência pela busca de um significado para a experiência. As experiências mais profundas das histórias de nossas vidas também merecem a mesma reverência e impelem à busca de significados. E o significado não aparece com rapidez ou facilmente.

Não dar o tempo ou a quietude de atenção necessários, para tornar plenamente consciente o que nos acontece, é uma característica de nossa época, veloz e impaciente. Tempo e atenção são necessários se não quisermos tratar a vida superficialmente.

A superficialidade desperdiça o precioso sentido do sagrado que dá profundidade e propósito a nossos encontros com a alegria e o sofrimento intensos, freqüentemente cheios de perplexidade. Mistérios como esses são dons valiosos, realidades que exigem tempo.

Quanto à experiência de Francisco, precisávamos, em primeiro lugar, perguntar: o que significava e para quem? Para o próprio Francisco, para a Igreja, para nós, hoje? Talvez o significado para Francisco fosse de foro íntimo e inacessível, só dele mesmo – este é o significado solitário e único de toda experiência única. Podemos supor, pelo que sabemos de Francisco, que os seus estigmas simbolizam um alto grau de realização da sua união com a pessoa do Cristo Crucificado e Ressuscitado, a quem amou com tanta persistência e paixão.

O desejo que consome os místicos – e amantes – é sempre o de despojar-se de sua identidade egocêntrica e unir-se de forma permanente com o Bem- Amado, em uma maneira de ser em que o “eu” e o ‘tu”, apesar de não obliterados, deixam de ser entidades fixas. “Não sou mais eu quem vive; mas é o Cristo quem vive em mim”. O abismo da separação (das individualidades) se fecha quando transcendemos o ego. “Uma consumação a ser desejada devotamente”, mas algo que, ao mesmo tempo, causa horror ao ego e doloroso pressentimento. À diferença de Francisco, a maioria de nós recua, sistematicamente, no exato momento em que a satisfação do nosso desejo de plena união nos é oferecido.

A vida de Francisco foi uma ascensão, freqüentemente uma peregrinação vertiginosa em direção a esta união de sua humanidade com a humanidade de Cristo. Ao contrário dos seus seguidores, que o veneravam como santo, Francisco via a história de sua própria vida repleta de inúmeros fracassos e retrocessos, provocados por sua natureza pecaminosa. Como acontece com a maioria dos fundadores, ele morreu com um sentimento de fracasso.

Ao mesmo tempo, ele também sentia e manifestava uma alegria cada vez mais intensa, o que seria uma prova, em nível mais profundo de percepção, de que sua evolução era constante. A coexistência, a mistura de alegria e sofrimento, dor e paz, amor e solidão, tornaram-se, com crescente clareza, o tema unificador – se não, mesmo, a experiência – do nosso Retiro. Até o clima variável durante a semana foi expressão disso, ao passarmos de dias fechados com  nevoeiro úmido e frio para outros dias de céu claro, com sol quente e panoramas abertos.

Independentemente do que possa ter significado a mais para Francisco, por causa da extinção, pelo amor, da sua identidade separada, os estigmas selaram também sua vocação e sua missão na Igreja. A experiência de Francisco influenciou decisivamente o curso da Espiritualidade cristã. Sua união com Cristo, ocorrida no Monte Alverne, iniciou uma nova era e uma mudança na consciência cristã. Ficou a cargo de São Boaventura – pois Francisco não era teólogo – formular a devoção ao Jesus histórico, especialmente a que focalizou a Cruz – que abriu uma nova dimensão no pensamento e no sentimento cristãos.

E o que podem os estigmas significar para nós? É o que nos perguntávamos, enquanto, dia após dia, a intensidade peculiar do Monte Alverne nos convidava a questionar mais seriamente quem era Deus e quem éramos nós. Lembrávamos o que Francisco viu na grande claridade de sua experiência incandescente: que o conhecimento de Deus e o conhecimento de si mesmo são inseparáveis e que, uma vez que se fundem, somos transformados para sempre. Indagávamos o que seria “a bola dourada” em nosso estilo de vida, com a qual faríamos a dádiva de nós mesmos a Deus.

Vimos que se Francisco podia sentir simultaneamente as emoções conflitantes de medo, alegria, admiração e sofrimento, nós também deveríamos estar dispostos a parar de nos agarrar a um único estado mental dominante, com o qual ficamos habitualmente obcecados – não deveríamos nos identificar com nossa ira, medo ou desejo, por exemplo. E que precisamos aprender a nos desapegar de todos os nossos sentimentos para estarmos abertos ao mistério de Deus em toda a extensão da nossa humanidade.

Vimos como, em sua simplicidade, Francisco ilustrou a dimensão trágica da vida em que alegria e sofrimento são parceiros inseparáveis. Questionamos a fixação da nossa cultura na busca da felicidade, que nega a nossa inescapável condição de mortalidade e nossas imperfeições essenciais. No sinal misterioso da união de Francisco com Cristo, pudemos sentir como o desejo de união, que é a mais profunda de todas as nossas aspirações, só pode acontecer com pureza de coração e intensa entrega. A união acontece quando ela é o nosso único desejo: quando o drama habitual de desejos conflitantes, que nos fazem repetir padrões antigos de fracassos, tiver sido radicalmente simplificado.

Quando lemos que Francisco, ao deixar o Monte Alverne montado em uma mula, por causa da dor que sentia em seus ferimentos, começou – na última fase de sua vida – a curar os sofrimentos dos outros, compreendemos que nenhuma experiência identificável como tal pode ser considerada definitiva. Estamos sempre seguindo adiante. “Os anjos ficam parados – diz um ditado judeu – o Santo está sempre em movimento”.

Finalmente, indagando quem seria realmente Francisco, vimos como ele se tornou um amigo da humanidade, um dos grandes boddhisatvas cristãos. A escolha de Assis pelo Papa João Paulo II como local para o encontro histórico da oração ecumênica em 1988, reunindo dirigentes religiosos de todas as crenças, foi inspirada pela amizade universal a que se dedicou Francisco. Os santos, assim nos parece, não são somente para ser venerados como paradigmas de excelência, mas devemos nos aproximar deles como amigos para a jornada espiritual, com a humildade de Cristo, superando o paradoxo de uma intimidade universal que parece impossível sem eles.

FERIDOS QUE CURAM

Depois de receber os estigmas de Cristo, Francisco ficou marcado como a expressão viva do arquétipo de santo, sábio ou xamã. Mas no sentido cristão, e de forma ainda mais expressiva, ele personifica o ferido que cura. Numa ocasião em que Frei Rufino tocou Francisco e colocou com curiosidade sua mão na chaga aberta do lado, Francisco se encolheu de dor.

Como ele, nós também às vezes invadimos as feridas íntimas de outros – a mídia atual ganha muito com isto. Nós sabemos como os nossos ferimentos mais profundos podem gritar de dor quando um pensamento, uma palavra ou ação desatenciosa toca neles.

O toque é um tema dominante na vida espiritual de Francisco. Ele tem um contato alegre com o mundo material e suas múltiplas e esplendorosas belezas. Ele é constantemente mostrado tocando ou sendo tocado por criaturas, humanas e outras. Muitos dos que o tocaram no fim da vida sentiram-se curados simplesmente por fazê-lo. Sua grande singularidade demonstra a espécie superior de sanidade que nos advém quando somos (mesmo que só um pouco)  tocados por Deus. As chagas de Francisco foram toques de Deus que o mudaram de forma irreversível.

Somos feridos mais profunda e dolorosamente, não por acidentes que acontecem – não importa quão trágicos sejam – mas pelo amor. Como todos aqueles que sofreram sabem, todo sofrimento é suportável – ou não suportável – proporcionalmente ao grau de amor que conseguimos manter vivo. Entretanto, o próprio amor é o maior ferimento que a humanidade é capaz de infligir. Existe o doce ferimento do amor, que pode transformar a personalidade e nossos poderes de percepção. Pode elevar-nos de um mundo preto-e-branco, unidimensionado, para um universo multicolorido não sonhado e de perspectivas cambiantes.

E existe o ferimento amargo, quando o amor é retirado, quando sua expressão emocional murcha, quando é inexistente ou traído. Ou quando morre a pessoa que amamos. Como nos estava ensinando o tema emergente do Retiro, abrir-se ao doce ferimento (do amor) como Francisco se abriu às “alegrias da contemplação”, também nos expõe ao lado cortante da espada, à realidade do amor, ao ferimento amargo e à dor da perda irremediável.

O ferimento é uma experiência rara de permanência. A maioria das coisas que acontece não dura. Necessitamos, portanto, distinguir entre ferimentos e golpes, as frustrações e os desapontamentos que acontecem na vida e que podem ser amargamente dolorosas, mas que, com o tempo, podem até desaparecer da memória: o fracasso de um exame, perdas financeiras, desencontros. De tudo isso nós nos recuperamos. Entretanto, os ferimentos nos marcam para sempre e alteram a química mais profunda de nossa percepção e o próprio funcionamento de nossa identidade. Um ferimento significa que nada será mais como antes. O tempo conserta os golpes, mas não cura ferimentos profundos. Somente a eternidade, a imersão do momento presente nas águas da presença de Deus, pode curar um ferimento. Assim como o ferimento da morte de Cristo só pode ser curado pela Ressurreição, quando Ele mergulhou nas escuras profundezas de sua divindade.

OS FERIMENTOS AO PASSAR DO TEMPO

Claro que os sentimentos e os significados associados aos ferimentos vão mudando com o tempo. Todo significado surge, dentro do seu contexto, na leitura do que estamos analisando. Não podemos ver o significado da experiência de Francisco no Monte Alverne fora do contexto da sua própria vida e da sua cultura histórica. O significado dos nossos próprios ferimentos – que, com freqüência, no princípio nos parecem horrorosamente sem significado – começa a surgir à medida que os vamos vivendo em relação com outros eventos e esquemas de nossa vida.

Isto quando o sofrimento nos permite continuar conscientes o suficiente para proceder assim. Mas ferimentos nunca podem ser eliminados, assim como um fim ou um princípio jamais podem ser repetidos. São parte da nossa história e, nesta história, não obstante pareça um átomo insignificante no universo, é uma partícula única e indispensável na constituição do cosmos. Nossos ferimentos estão, portanto, entre as forças mais sagradas que dão forma à nossa existência e fazem o próprio mundo ser como é.

É importante evitar o sentimentalismo ou o excesso de otimismo com referência ao nosso sofrimento, porque ambos podem inibir a esperança. Ser ferido é perigoso. Pode aleijar ou até destruir a personalidade. Pode nos empurrar da borda para dentro do desespero ou nos entrincheirar em um isolamento medroso e cínico, além de amargurar involuntariamente o nosso espírito. Até pior – e as histórias de famílias e nações estão repletas de exemplos: os ferimentos podem nos transformar em inimigos da humanidade, demônios cheios de ódio contra Deus, cruéis e selvagens para com os outros.

“O ferimento aceito dentro da maneira de ser do mundo” – como nos diz São Paulo – leva-nos à morte. Nesse estado de morte somos esvaziados de toda a compaixão, coma os campos nazistas de extermínio – dirigidos por pessoas comuns não tão diferentes de nós mesmos – não nos deixam esquecer. E podemos nos tornar especialmente vingativos com os que são mais fracos do que nós e estão mais feridos. Podemos nos transformar em feridos que ferem. Ou feridos que curam. Como Francisco e seu modelo, Cristo.

Como aconteceu com Queirão no mito grego. Filho do deus Cronos e da ninfa terrestre Fílira, Queirão teve a infelicidade de nascer como um centauro, meio humano – a parte superior do seu corpo – e meio cavalo. Quando sua mãe o viu, ao nascer, ficou tão revoltada que conseguiu ser transformada em um limoeiro para que não pudesse amamentá-lo. Assim, seu primeiro ferimento foi a rejeição. Mas Apolo o adotou – pelo menos em sua parte superior – e lhe deu treinamento para aperfeiçoar-se em todas as artes e no conhecimento. Queirão transformou-se em um grande mestre e mentor para muitos dos maiores heróis gregos, incluindo o próprio Héracles. Um dia, em uma festa com centauros que se desgovernaram, Héracles teve que lançar uma flecha envenenada para acabar com a desordem. Acidentalmente, a flecha atingiu Queirão. Sendo filho de um deus – logo, imortal – a flecha não poderia matá-lo, mas deixou-o em agonia permanente e amargurada.

Sua vida mudou. Viu-se forçado a retirar-se para uma montanha para cuidar de sua chaga incurável. Desta maneira, Queirão transformou-se em perito nas artes da cura e dos poderes medicinais da natureza. Com a aproximação dos que sofriam e vinham procurá-lo, nele também cresceu a compaixão por eles. Não eram mais os famosos e poderosos que vinham até ele, mas os pobres e esquecidos. A todos, Queirão curava com o poder do seu recém-desenvolvido conhecimento, e eles partiam agradecidos, mas se perguntavam por que ele, que curava os outros, não podia curar a si próprio.

Héracles (o que feriu curando), durante outra de suas aventuras, encontrou uma saída para Queirão. Conseguiu que Zeus concordasse em libertar Prometeu do seu tormento se fosse encontrado um imortal que se dispusesse a dispensar sua imortalidade e a morrer. Queirão aceitou a proposta e, ao aceitar a mortalidade e morrer, disse sim para o que realmente era. Ele assim iniciou um novo tipo de heroísmo, deixando de lado suas tentativas inúteis de curar seus próprios ferimentos, de ser o seu próprio redentor. A morte não tinha grande atração ou glória, mas continha uma verdade sombria e profunda que não poderia ser expressa nem por todos os poderes de Apolo.

Ele morreu e, como todos os mortais, desceu ao mundo interior. Atravessou o Estige, fronteira entre a consciência dos vivos e dos mortos; pagou a sua moeda ao barqueiro sem rosto, atravessou os campos cinzentos de Asfodel – onde os mortos à espera do julgamento piavam como morcegos – e, diante dos que reinavam no Hades, aguardou o seu julgamento. O mito nos conta que ele permaneceu ali por nove dias obscuros. Zeus então o salvou do Hades e o alçou acima da terra para fazê-lo para sempre uma constelação no céu: um ensinamento escrito no céu para todos lerem.

E onde fordes, proclamai que o Reino dos Céus
está próximo. Curai os doentes, ressuscitai os
mortos, limpai os leprosos, expulsai os demônios.
De graça recebestes, de graça dai (Mt 10, 7-8)

Jesus, sempre consciente da sua morte iminente, e ferido pela rejeição e pelos mal-entendidos, ficou conhecido entre os seus contemporâneos, sobretudo, como aquele que curava. O convite que faz aos seus seguidores, para imitarem o que fazia quando curava o sofrimento humano, confere dignidade aos que estão feridos. Enquanto pensarmos que são os sadios que curam, estaremos subscrevendo o culto do poder. Nossa percepção da realidade ficará distorcida pela busca obsessiva da felicidade e pela fuga do sofrimento, empreendidas pelo ego.

O segredo do Monte Alverne não é, afinal, tão esotérico. Ele abre uma visão de suprema felicidade humana – a ventura de conhecermos a nós mesmos e a Deus, no amor de Cristo. Nele podemos também acreditar, porque não foge da realidade do sofrimento – do qual não há como escapar. A sabedoria de Francisco, assim como a sabedoria de Jesus, nos ensinam que a nossa vulnerabilidade ao sofrimento não é um impedimento para a prestação de serviços amorosos aos outros. E mesmo condição para que possamos aliviar o sofrimento do próximo.

Enquanto perseguirmos a nossa própria felicidade como a primeira das prioridades, nós faremos isso, de forma consciente ou não, à custa do bem-estar de outrem. Mas, se aliviarmos a dor do outro, encontraremos a plenitude do ser para a qual fomos criados. Curar – enquanto nós mesmos estamos feridos – não está, no entanto, no campo da experiência do ego.

Aquele que não toma a sua cruz e me segue
não é digno de mim. Aquele que procura a si mesmo
acabará por se perder e quem se esquecer de si mesmo,
por amor de mim, acabará por encontrar-se
(Mt 10,38-39).

Pode-se compreender melhor o significado da experiência de Francisco, no Monte Alverne, no contexto da sua oração, assim como nossa vivência consciente, a partir desses paradoxos do espírito, dependerá da profundidade da nossa oração. Na oração de Francisco, a ênfase não está essencialmente nas visões, revelações e milagres que enchem sua biografia. A meditação logo nos ensina que não precisamos dessas coisas e não devemos procurar tais experiências.

Até para Francisco elas não foram a substância do seu relacionamento com Deus, como o mostra a sua vida em comunidade e a sua insistência no valor supremo da pobreza e da humildade. Mais significativa é a sua contínua perseverança no aprofundamento da oração. Ele retornava freqüentemente a períodos de solidão e aprofundava a sua aceitação de todo o espectro da realidade, o que o tornou tão profundamente sensível à presença e à atividade de Deus em tudo, em toda manifestação da natureza, como o mostra o seu Cântico das Criaturas. “Despertado por todas as coisas para o amor de Deus… nas coisas belas ele encontrava a própria beleza”.

Vistos através deste prisma, o amor de Francisco pela criação e a ênfase de São João da Cruz sobre o desapego a todas as criaturas parecem complementares, em vez de opostos inconciliáveis, como poderia parecer. Vemos desapego também em Francisco, e celebração e louvor em João da Cruz. Onde se vive a plena verdade, os opostos coexistem. Não apenas alegria e sofrimento. Mas também a vida e a morte. Quando o percebemos, sabemos o que a vulnerabilidade de Cristo ao sofrimento proclama: a vida não é negada pela morte, mas consiste no ciclo de morte e renascimento. Este ciclo vai levar, na plenitude dos tempos, ao estado sem morte que Francisco suplicou lhe fosse dado experimentar antes da sua união com Cristo no Monte Alverne:

E como continuasse neste propósito, um anjo
lhe apareceu em grande glória, trazendo
um cálice na mão esquerda e uma flecha
na mão direita. Enquanto Francisco se admirava
com esta visão, o anjo atravessou o cálice
uma vez com sua flecha, e imediatamente Francisco
ouviu uma melodia tão doce que sua alma se encheu
de encantamento – o que fez que ele ficasse
insensível a toda sensação do corpo. Como
posteriormente contou a seus companheiros,
caso o anjo passasse novamente a flecha pelo cálice, tinha dúvidas
se a sua alma não teria deixado seu corpo por causa da doçura intolerável
(Segunda Consideração dos Sagrados Estigmas).

A meditação não procura – nem rejeita – tal experiência. Ela nos leva a profundezas para além do ego em que a experiência de Deus é possível e transcende todo desejo do ser consciente. Não estamos buscando a plenitude mística, mas a união no mistério do amor. O/a meditante precisa tornar-se um ferido que cura ao penetrar fielmente neste mistério de alegria e sofrimento, rejeitando todo escapismo e falsa consolação.

Esta fidelidade remove gradualmente a montanha do egotismo. É um partilhar a vida do Cristo, que é seu contínuo morrer e ressuscitar em nós.

Incessantemente e em toda a parte trazemos em nosso corpo a agonia de Jesus, a fim de que a vida de Jesus seja também manifestada em nosso corpo (2Cor 4,10).

Quando deixamos também o Monte Alverne – para o próximo passo da nossa peregrinação individual – nós o fizemos alimentados pela comunidade que havíamos partilhado e as verdades que experimentamos na companhia uns dos outros. Este me pareceu ser o poder da comunidade que vem à tona com a meditação, e que tantos, hoje, estão ansiosos por sentir, muitas vezes sem o saber. Que a nossa prática diária contínua permita a cada um de nós participar na cura do nosso mundo.

COM MUITO AMOR, DOM LAURENCE

(*) Exte texto foi publicado na revista “Grande Sinal”, de propriedade da Província Franciscana da Imaculada Conceição e editada pelo Instituto Teológico Franciscano (ITF).  O texto desta meditação, tirado de Meditação Cristã – Boletim Internacional (23 Kensington Square – London W8 5HN – UK, fascículo de junho de 1998), foi gentilmente cedido a “Grande Sinal” pelo Núcleo de Meditação Cristã do Rio de Janeiro. Tradução a cargo de Maria Antonieta Garcia de Souza; revisão, Sérgio de Azevedo Morais.

Nota da Redação da Grande Sinal

Dom Laurence Freeman, OSB, mostra uma faceta fundamental da mística do Seráfico Pai, Francisco de Assis, portador dos estigmas de Jesus cristo, Trata-se de um tema que interessa, não só aos membros da Familia Franciscana, mas a todos/as aqueles/as que desejam atingir a plena identificação com Jesus Cristo, nosso Redentor, em sua dura paixão, morte infamante e ressurreição gloriosa. Até que um dia todos possam dizer, como Paulo: ‘Já não sou eu que vivo, mas é o cristo quem vive em mim”

 

ENCENAÇÃO FESTA DAS CHAGAS DE SÃO FRANCISCO. 17/09

Os 6 momentos de encontros com Cristo                                                               

COMENTARIO INICIAL: O Seráfico Pai São Francisco, desde o início de sua conversão, dedicou especialíssima devoção e veneração a Cristo Crucificado, devoção que até a morte ele procurava incutir em todos os frades por palavras e exemplos.

Quando em 1224, dois anos antes de sua morte, Francisco em profunda contemplação no Monte Alverne, o Calvário Franciscano, por um admirável e estupendo prodígio, o Senhor Jesus imprimiu-lhe no corpo as 5 chagas de sua paixão.

O 1º biógrafo de São Francisco descreve que as Chagas  começaram a ser gestadas no coração de Francisco desde o Encontro com o Crucificado  de São Damião e o encontro do leproso; o próprio Francisco não pôde exprimir  a inefável mudança que sentiu em si mesmo; na sua santa alma a compaixão para o Cristo Crucificado vão sendo impressos os estigmas que vão culminar no Monte Alverne quando Francisco se torna uma imagem viva do Cristo na Cruz.

  1. O ENCONTRO DO CRISTO CRUCIFICADO DE SÃO DAMIÃO (2 Cel 10) Antes dos ritos iniciais

Francisco certo dia andava perto da igreja de São Damião que estava quase em ruínas e abandonada por todos. Conduzindo-o o espírito, ao entrar nela para rezar, prostrou-se suplicante devoto diante do Crucificado, sentiu-se diferente do que entrara. Imediatamente, a imagem do Cristo crucificado, movendo os lábios da pintura, o que é inaudito desde os séculos, fala -lhe, enquanto ele estava comovido. Chamando-o pelo nome diz :

1 voz: FRANCISCO, VAI E RESTAURA MINHA CASA, QUE, COMO VÊS, ESTÁ TODA EM RUÍNA .

Francisco, a tremer, fica não pouco estupefato e torna-se como que fora de si com esta palavra. E decide-se a restaurar a  Igreja de São Damião.

A todos que encontra, pede: (FRANCISCO) “Quem me der uma pedra, ganhará uma graça. Quem me der duas, ganhará duas graças.

Celebrante: convida a olhar para a cruz, e convida a todos a fazer o sinal da cruz, cantando: Em nome do Pai……

  1. ENCONTRO COM O CRISTO NO LEPROSO (2Cel 9cd)

No momento do Ato penitencial

Comentarista: Francisco tinha grande aversão ao ver leprosos. Certo dia, andando pelas redondezas de Assis, encontrou-se com um leproso. Sentiu não pouco incomodo e horror, sentiu vontade de fugir. Mas uma força fez ele voltar, foi ao encontro do leproso e abraçou e beijou o leproso.

Mais tarde ele escreveu no seu Testamento ele escreve o que este encontro significou para ele:

FRANCISCO: “Foi assim que o Senhor concedeu a mim, Frei Francisco começar a fazer penitência: como eu tivesse em pecados, parecia-me demais amargo ver leprosos. O  próprio Senhor me conduziu a eles e tive misericórdia com eles. AQUILO QUE, ANTES, ME PARECIA AMARGO SE ME CONVERTEU EM DOÇURA DE ALMA E DE CORPO; E O QUE  ERA DOCE SE TORNOU AMARGO” (TESTAMENTO)

Ato penitencial

3. O ENCONTRO COM O CRISTO NA PALAVRA DE DEUS.

Comentarista:(1 Cel ,22) Francisco foi participar de um Santa Missa. Francisco pede ao sacerdote:

FRANCISCO: REVERENDÍSSIMO PADRE; EU DESEJO MUITO SABER O QUE O SENHOR QUER DE MIM E MEUS COMANHEIROS. Em nome da Santíssima Trindade, abra por três vezes o livro do Evangelho e leia o que o Senhor me quer revelar:

CELEBRANTE :(Mt10,9-10) a)” Não leveis, nem ouro e nem cobre no cinto, nem sacola para o caminho, nem duas túnicas, nem calçados nem bastão, porque o operário é digno do seu sustento”

  1. b) (Lc 9,2) Jesus os enviou a pregar o Reino de Deus, e a curar aos doentes.
  2. c) Lc 10,5 Em toda casa em que entrardes , dizei primeiro: ‘A paz esteja nesta casa’”

FRANCISCO:” É isto que eu quero, é isto que eu procuro; cada é isto que eu quero fazer de todo o meu coração”. ( 1Cel 22)                                               (Francisco convida todos que repitam cada frase)

4. O ENCONTRO COM O CRISTO NO PRESÉPIO EM GRECCIO  (Antes do ofertório)                     

Chegando o tempo de celebrar o santo Natal, estando em Greccio, Francisco pede ao grande amigo João de Velita, homem com fama de muito bondoso:

FRANCISCO: “Quero evocar a lembrança do Menino que nasceu em Belém e todos os incômodos que sofreu desde a sua infância; quero vê-lo tal qual ele era, deitado numa manjedoura e dormindo sobre o feno, entre um boi e um burro” (1Cel, 84).

Chegou a noite de Natal do ano de 1223, três anos antes de sua morte. De muitos outros lugares e povoações foram chamados os irmãos: homens e mulheres, jovens  e velhos, todos prepararam cheios de alegria tochas e archotes para iluminar a noite . Por fim, chegou também o Santo e, vendo tudo de acordo com o que planejara, ficou contentíssimo.
A missa foi celebrada ali mesmo no presépio, tendo o sacerdote que a celebrou sentido uma piedade que jamais experimentara até então.
O Santo cantou com voz sonora o santo Evangelho. pregou ao povo presente, afirmando com fé coisas maravilhosas sobre o nascimento do Rei pobre e sobre a pequena cidade de Belém.

Francisco pega a imagem do Menino Jesus e mostra o Menino de Belém

 Muitas vezes, quando queria chamar Cristo a Jesus, chamava-o também com muito amor de “menino de Belém. Pareceu-lhe ver deitado no presépio um bebé dormindo, que acordou quando o Santo chegou perto. E essa visão veio muito a propósito, porque o menino Jesus estava de fato dormindo no esquecimento de muitos corações, nos quais, por sua graça e por intermédio de São Francisco, ele ressuscitou e deixou a marca de sua lembrança.  

5. O ENCONTRO COM O CRISTO NA EUCARISTIA                                                     Na hora do canto do Santo, santo, Francisco se ajoelha diante do altar.                                                                                                                            Comentarista: É admirável em nosso Pai São Francisco a sua profunda fé no Cristo Eucarístico e sua veneração pelo Sacerdócio , a ponto de dizer: O Senhor me deu e ainda me dá tanta fé nos sacerdotes que vivem segundo a forma da Igreja Romana, por causa das suas ordens , que mesmo se me perseguissem , quero recorrer a eles. E procedo assim, porque do mesmo Altíssimo Filho de Deus nada enxergo neste mundo corporalmente, senão o seu santíssimo Corpo e Sangue que eles consagram e administram aos outros.E o Senhor me deu tanta fé nas igrejas que com simplicidade orava e dizia: (celebrante ergue as sagradas espécies)

FRANCISCO: Nós vos adoramos,/ Santíssimo Senhor Jesus Cristo,/ aqui e em todas as vossas igrejas / que estão no mundo inteiro,/ e vos bendizemos,/ porque pela vossa santa Cruz/ remistes o mundo .  O comentarista convida a assembleia a repetir……..

6. O ENCONTRO COM O CRISTO CRUCIFICADO NO MONTE ALVERNE   (depois da Comunhão. Diante de uma cruz)

         Comentarista: Conforme nos dizem os biógrafos de São Francisco, foi pela festa da Exaltação da Santa Cruz, no dia 14 de setembro de 1224, que São Francisco, depois de dias de jejum e oração e contemplação, recebeu no Monte Alverne os estigmas do Senhor.   Francisco rezava assim:

FRANCISCO: Ó Senhor meu Jesus Cristo, duas graças te peço  que me faças antes que eu morra: a primeira é que em vida em sinta na alma e no corpo, quanto for possível, aquela dores que tu, doce Jesus, suportaste na hora da tua duríssima Paixão;

A segunda, é que eu sinta no meu coração, quanto for possível, aquele excessivo amor do qual tu, Filho de Deus, estavas inflamado para voluntariamente suportar uma tal paixão por nos pecadores.


Cânticos à escolha da comunidade.

Orações

Orações

Oração a São Francisco
Papa João Paulo II
Ó São Francisco, estigmatizado do Monte Alverne,
o mundo tem saudades de ti como imagem de Jesus Crucificado.
Tem necessidade do teu coração aberto para Deus e para o homem,
dos teus pés descalços e feridos,
das tuas mãos trespassadas e implorantes.
Tem saudades da tua voz fraca, mas forte pelo Evangelho.
Ajuda, Francisco, os homens de hoje a reconhecerem
o mal do pecado e a procurarem a purificação da penitência.
Ajuda-os a libertarem-se das próprias estruturas de pecado,
que oprimem a sociedade hodierna.

Reaviva na consciência dos governantes a urgência da paz
nas Nações e entre os povos.
Infunde nos jovens o teu vigor de vida, capaz de fazer frente
às insídias das múltiplas culturas da morte.

Aos ofendidos por toda espécie de maldade,
comunica, Francisco, a tua alegria de saber perdoar.
A todos os crucificados pelo sofrimento, pela fome e
pela guerra, reabre as portas da esperança. Amém.

(Em 17.09.1983, na Capela dos Estigmas – Alverne)

Do Prefácio – Missa das Chagas 
Vós exaltastes a mais sublime perfeição do Evangelho
o vosso servo Francisco,
pelos caminhos da altíssima pobreza e humildade.
Inflamado de amor seráfico,
vós os fizestes exultar de inefável alegria
com todas as obras de vossas mãos,
e adornado dos sagrados estigmas,
nos apresentastes a imagem do Crucificado,
Jesus Cristo, Senhor Nosso.

Hino – Salve, ó São Francisco
Salve, ó São Francisco, que do pé das fragas,
Vens assinalado de sagradas chagas.
Cheio de amor, cheio de amor,
as chagas trazes do nosso Salvador.
Eis-te na presença, de Deus-Redentor,
Serafim alado, de claro fulgor.
Meigo, a ti olhando, Cristo, o Verbo eterno,
eche tua alma de amor supremo.
E então suas chagas, lúcidos sinais,
em ti, Pai, formaram outras cinco iguais.
De tuas grandezas, tens agora o selo,
igual ao de Cristo; és nosso modelo.

Oração Coleta – Missa das Chagas 
Ó Deus, que para inflamar os nossos corações
no fogo do vosso amor, renovastes de modo admirável
os sinais da paixão do vosso Filho,
na carne do bem-aventurado Pai Francisco,
concedei que, por sua intercessão,
configurados à morte do mesmo Filho,
participemos igualmente de sua Ressurreição.

Da Sequëncia de São Francisco 
Busca o ermo e, comovido, chora amargo, até o gemido,
todo o tempo já perdido, quanto ao mundo consagrou.
Na montanha, retirado, chora, reza, ao chão prostrado.
Quando enfim, já serenado, vai a um antro repousar.
Por rochedos protegido, do divino é possuído;
todo mundo é preterido pelo céu que ele escolheu.
Freia a carne, quando impura; penitência o desfigura
Toma alento da Escritura, e do mundo se desfaz.
Eis do céu, varão hierarca, surge o Divinal Monarca!
Treme o Santo Patriarca, com pavor, ante a visão.
Com as chagas adornado, as transfere ao Santo amado,
que medita consternado o mistério da Paixão.
Todo o corpo é assinalado, mãos e pés; ferido o lado;
todo a Cristo conformado, chaga viva se tornou.
Num colóquio misterioso, vê o futuro radioso,
desfrutando divo gozo de celeste inspiração.
Maravilha! Surgem cravos, fora negros, dentro flavos.
Com seus membros cruciados sofre dura, ingente dor.
Não foi arte da natura dos seus membros a abertura,
nem de ferros a tortura que, implacável o feriu.
Pelas chagas que portaste e do mundo triunfaste
e da carne te livraste, em vitória sem igual.
São Francisco, te imploramos, nos perigos, te invocamos;
Que no céu, gozar possamos a celeste glória.