Carisma - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Clara, quais os desejos de teu coração?

Durante muitos meses, nesse site, num sem número de textos, procuramos penetrar o mistério do  coração da mulher de Assis. Clara é descoberta recente. Nós, franciscanos, da metade do século passado tivemos poucas informações a respeito dessa figura ímpar, membro de nossa família espiritual. Com a descoberta das fontes clarianas foram se multiplicando estudos, biografias sobre essa que se autodenominava  de “plantinha do Seráfico Pai”.  O que andou emergindo do coração de Clara?  Quais eram as preocupações e os desejos de seu coração?

Por Frei Almir Ribeiro Guimarães

1. Conhecemos bem aquilo que perpassa toda a vida de Clara, que se faz presente em seus escritos, que lhe dá alegria e provoca sofrimentos e apreensões. Trata-se da pobreza. Não de uma pobreza qualquer, mas de uma pobreza encarnada, personificada, a pobreza do Crucificado pobre que se fez pobre por amor. O primeiro e fundamental desejo que emerge do coração de Clara é nunca afastar-se do Esposo pobre. Esta súplica que ela  faz às irmãs em seus  Escritos. Pelo exemplo e pela palavra de Francisco, Clara foi se tornando apaixonada pela pobreza do Verbo. Tal paixão faz dela uma orante com o rosto transfigurado, uma serva humilde das irmãs e mulher corajosa que enfrenta o Papa quando este quer lhe permitir o possuir bens. Clara é uma apaixonada pelo Cristo pobre. Nosso mundo é marcado pelo frenesi do consumismo. Nações desmoronam com crises econômicas, mas o dinheiro não pode ser o centro de todos os interesses.  Os governos caem por causa da crise financeira. Compreendemos que a economia precise funcionar, faz parte das exigências da sociedade de consumo e capitalista. Aos poucos, no entanto, as pessoas mais sensíveis que andam visitando o seu interior, vão se dando conta que nos tornamos escravos da sociedade do dinheiro, da força, do consumo, do supérfluo, do poder. Quando Clara abraça o Cristo pobre e vive a alegria das núpcias, com Ele mostra à Igreja onde estão as coisas essenciais.

2. Clara é a mulher do essencial e da autenticidade. Algumas práticas ascéticas de Clara, feitas com exagero, não precisam ser imitadas. Mas, em sua forma de viver o Evangelho encontramos elementos muitos válidos para nossos dias, não somente para  as irmãs clarissas, mas para todos os cristãos. Lembramos alguns deles:  fidelidade à vocação recebida, sua autenticidade e a preocupação de centrar-se sempre no essencial. Num mundo marcado pelo relativismo, pelo efêmero, pela dispersão, quando o que conta são aparências, pela busca do protagonismo espiritual do individuo a mensagem de Clara pode nos fazer voltar ao primeiro amor. Os cristãos, de modo particular os religiosos, precisam voltar ao centro e não seguir modas e modismos. E qual é o essencial para Clara? É seguir o caminho do Cristo pobre e crucificado e nele colocar todo seu ser e suas forças. Clara, na busca do essencial, faz a opção pela desapropriação, deixar todo estorvo que a impeça de estar radicada no centro, no seu espelho, Cristo pobre. Sua opção pela contemplação e pela união esponsal com Cristo vão nesta linha. Trata-se de viver em Cristo, a Ele unida, para poder reinar com Ele. Para Clara viver pobremente não é somente carência de coisas, mas entrega ao serviço de Deus e dos irmãos. O serviço prestado às irmãs, sua oração por todos os homens,  sobretudo os mais necessitados, tem como pano de fundo a pobreza. A vida das irmãs era sustentar os membros frágeis da Igreja. Ainda hoje,  a oração dessas mulheres autênticas ajudam a Igreja a viver. Não é necessário insistir sobre a autenticidade de Clara. Ela afastava todo subterfúgio, todas as propostas para levar uma vida menos evangélica. Foi a mulher corajosa.

3. Por vezes lamentamos um cristianismo formal vivido por muitos, queixamo-nos da frieza da vida paroquial.  Questionamos formas de vida consagrada, sem elã, nem ardor, sem a seiva do Evangelho. Clara é a mulher evangélica. A Palavra de Deus atravessa todos os seus Escritos , marcando-os de maneira indelével. Seu compulsar do Evangelho não se limitava a uma leitura material- literal, mas de tal modo era feita que, inspirada pelo Espírito, marcava o cotidiano.  Ouvimos dizer que precisamos voltar ao Evangelho, Evangelho  força,  Evangelho  Jesus Cristo presente entre nós. Os religiosos, quase de madrugada, rezam o ofício, penetram no silêncio, escutam a Palavra, celebram a Eucaristia e depois vão pelo mundo…. E o Evangelho penetra de tal forma a vida desses religiosos que agem evangelicamente. A falta de um carinho pelo Evangelho não seria a explicação de tantas vidas religiosas sem gosto, sem sal? Não se trata de qualquer retorno ao texto. Trata-se  de pessoas perplexas e  perdidas que se deixam  renovar pelo Evangelho. Clara foi uma mulher do Evangelho. Para obedecer à Palavra, para encarná-la aqui e agora será preciso que todas as dimensões da pessoa sejam atingidas: sentimentos, inteligência, memória e vontade. No silêncio de São Damião, em vidas que buscavam  o essencial, a Palavra podia ressoar.

4. Clara é mestra de vida. Neste  tópico, seguimos as reflexões de Irmã  Maria Victoria Triviño, clarissa, em  La Via de Belleza. Temas espirituales de Clara de Assis, BAC, Estudios y Ensaios, n. 46, p. 13-14.  Clara , por sua vida e por seus escritos  projeta um magistério feminino irresistível.  Não escreve um manual, não multiplica normas e conselhos. Partindo da força de seu amor, de sua convicção de fé e de sua gozosa  esperança, Clara exala um entusiasmo contagioso.  Ensina, apresentando a fascinação pela formosura de Cristo, fazendo com que suas ouvintes por ela se sintam atraídas. Ensina a partir de sua experiência.  Ensina como alguém que beija. G. Cavazos González  escreve: “Há um provérbio espanhol que reza: Quando os discípulos estiverem prontos, chegará o Mestre. No nosso caso, o mestre é uma mestra.  Graças às novas descobertas, traduções de documentos escritos por mulheres da Idade Média, o cristianismo pôde contar com várias mestras de vida evangélica:  entre elas está Clara de Assis. O movimento feminino no interior da Igreja e da sociedade ocidental e os estudos  psicológicos sobre ao anima, quer dizer da dimensão feminina existente no homem, contribuíram para preparar discípulos de tal mestra. Depois de tantos séculos escondida à sombra de Francisco, Clara veio à luz e lança sobre nós sua luz ensinando-nos o que é viver o Evangelho libertador de Jesus Cristo”.  Clara, a mulher de São Damião, continua forte. Não constitui ela apenas uma lembrança apagada do passado. Clara se renova em nós ativando a dimensão do feminino que confere à Ordem Franciscana um caráter especial. Maria Victoria  cita o brasileiro  José Carlos Correa Pedroso, conhecido religioso capuchinho: “Estou convencido de que Clara de Assis marcou os começos do franciscanismo com sua personalidade, influenciou na santidade de São Francisco e contribuiu com suas irmãs a elaborar o que hoje conhecemos como espiritualidade franciscana. Por isso, agora nessa mudança de século, toda a família franciscana precisa voltar-se para essa fonte de Clara e de suas irmãs – as fontes do século XIII e as fontes de toda a história para recuperar sua plenitude e dar ao século XXI a resposta que a humanidade tem direito de exigir de seu carisma. Por outra parte estou convencido de que no decurso de todos estes séculos, o mundo dos franciscanos e das franciscanas  foi o setor em que sempre floresceu o feminino”. Um autor diz:  “Somos o que amamos e somos a partir de quem nos ama. Há vida onde há amor e onde deixa de  existir, acaba toda forma de vida”. Clara, por sua transparência evangélica, nos ensina a desejar os valores originais que nunca podem ser pedidos: o respeito pela vida e pela pessoa; a flexibilidade; a liberdade que sabe deixar o supérfluo, que não necessita dele para ser feliz; a delicadeza, a ternura de toda criatura.

5. Desde a nossa juventude aprendemos a admirar a cena da fuga noturna de Clara. Aos poucos aquilo que, à primeira vista poderia parecer temeridade, foi nos parecendo fé indômita, desejo de  se apoiar apenas com o Senhor, não contar com seguranças… Esclarecida por Francisco e, com a conivência do bispo de Assis, Clara lançou-se na aventura da fé, muito mocinha, mocinha demais. Na simplicidade de sua vida e na beleza de seu interior ela foi uma reencarnação do homem que deixou terra e parentela para dirigir-se a um terra desconhecida, sem mapa na mão, apenas confiando no Altíssimo. E, aos poucos, Clara foi descobrindo seu caminho: ela seria a face feminina do movimento encetado por Francisco de Assis.  Clara dependeu de Francisco e Francisco é devedor de Clara. Depois de suas idas e vindas Clara foi compreendendo que sua vida se passaria nos exíguos espaços de São Damião. E foi a partir dali que  fez jus a seu nome de iluminadora, de esclarecedora, de Clara. Tudo tão simples e tudo tão importante. Felice Autieri, OFMConv, em estudo publicado na Vita Minorum sobre a originalidade da experiência de Santa Clara de Assis no pano de cultural do século XIII,  faz considerações que merecem se traduzidas quando nos questionamos a respeito das coisas que Clara tem no peito, dos desejos de seu coração. “Na verdade, Francisco não exaure  todo o Evangelho, como também Clara não o esgota. Daí, Clara tem necessidade da fidelidade de Francisco e de suas intuições evangélicas. Clara, também, a partir de seu ser mulher, tem o dever de  fazer como mulher dedicada à contemplação, a sua leitura do Evangelho. Em São Damião, as irmãs pobres sorvem do Evangelho a linfa que alimenta a oração e a pobreza, o silêncio e a vida comum, a humildade e o ofício de governar próprio da abadessa, a discrição  e o trabalho, a penitência e a correção fraterna. Francisco irá pelo mundo  pregar, animado de ardor missionário pela divulgação do Evangelho vai comparecer em 1219  diante do sultão. Clara encarnará o Evangelho na dimensão da pobreza, da humildade, da ininterrupta oração, nesse modo próprio de uma mulher de vida contemplativa em clausura. A paixão  missionária incendeia  Clara. Irmã Balvina,  no Processo, diz que Clara, antes que adoecesse queria ir para o Marrocos, onde os frades tinham alcançado a glória do martírio…

6. Impressiona a singeleza e a grandeza da experiência de São Damião. Os que tivemos a graça de passar dias ou horas naqueles espaços escutamos agora  o borbulhar de tudo o que ali foi vivido.  O que Clara tem no coração? Quais as suas preocupações? Uma qualidade de vida evangélica nos espaços pobres da abençoada casa de São Damião. Novamente damos a palavra ao frade conventual que estudou a originalidade da experiência de Clara: “A experiência de São Damião é fundante e  constitui um ulterior passo avante na resposta de Clara à vontade de Deus e na clarificação do carisma.  Uma vez tendo chegado a São Damião nunca mais abandona o lugar onde viveu quarenta e dois anos. Ali se une a Cristo com todo o seu coração e realiza na perfeição da profecia de Francisco de Assis, ali faz nascer uma nova ordem monástica. O extraordinário de sua experiência está no fato de que, ao menos a partir do que aparece, Clara nada faz de excepcional: reza, faz penitência, realiza os serviços domésticos  próprios da vida comunitária.  Assim se compreende que, com sua santidade  tenha causado fascínio em papas e cardeais, que possa ter sido chamado de “mestra de vida”  e que continue a seduzir, não para que as pessoas parem nela, mas levando-as a Cristo, seu Senhor por ela profundamente amado”.

7. E vamos terminando essas reflexões sobre o mistério de Clara e sobre alguns pontos que encheram de paixão seu coração com um jeito de escrever lusitano: “De quando em quando aparecem no mundo mulheres enriquecidas de qualidades e virtudes excepcionais que se impõem à estima e admiração da humanidade.  Ou se tenham salientado por lances sublimes de coragem e de heroísmo, ou hajam trilhado a senda apertada e íngreme da perfeição cristã, a sua passagem pela terra deixou  um rasto tão vivo e luminoso de personalidade inconfundível, que nem os séculos conseguiram apagar de todo. Tais foram entre outras, Joana d’Arc, Catarina de Sena, Brígida de Suécia, Teresa de Jesus.  Clara de Assis pertence a esta nobre estirpe de almas grandes e insatisfeitas, que não se contentaram com a vulgaridade de vida de suas contemporâneas” (Joaquim Capela, OFM , Santa Clara de Assis, Edições  das Missões Franciscanas, Montariol, Braga).

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