Carisma - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

São Francisco e o Sultão – IV

 

Teria Francisco realmente buscado o martírio?

Continuamos na companhia do texto de André Vauchez em seu relato histórico sobre o encontro de Francisco com o Sultão.

As Fontes Franciscanas parecem afirmar que Francisco estava buscando o martírio. Hoje, no entanto, há os que não têm tanta certeza assim. Pensam que, com isso, poder-se-ia estar prestando ao herói uma atitude suicida ou atribuindo-lhe comportamento irresponsável. Pode-se dizer que o martírio estava, efetivamente, nas perspectivas de Francisco pelo que se pode saber de sua mentalidade e de sua cultura. A maior parte dos santos dos quais se ouvia falar e cujas imagens podiam ser vistas nas igrejas da Úmbria não eram de mártires a começar por São Rufino, o primeiro bispo de Assis, cujas relíquias tinham sido objeto de transladação solene na catedral da cidade de Francisco? Além disto, sua vocação e a de sua Ordem não tinha sido alimentada pelo desejo de seguir o exemplo dos apóstolos que deram a vida em testemunho da fé? Contrariamente ao que se costuma por vezes afirmar, a busca do martírio por parte de Francisco não estava em contradição com seu desejo de seguir precisamente a Cristo que morre na cruz para abrir o caminho da salvação para a humanidade. Enfrentar tribulações e perigos, inclusive a perda da vida, para propagar a fé cristã constituiu desde as origens um elemento que marcou a sensibilidade franciscana; Jordão de Jano afirma que “quando se recrutavam voluntários que fossem para a Alemanha por ocasião do Capítulo Geral de 1221 “levantaram-se cerca de 90 frades abrasados pelo desejo do martírio, e até mesmo ele, pensando que iriam encontrar o martírio” (Jordão de Jano, 11-18).

♦ Sabemos que Clara de Assis, em tantos aspectos tão próxima de Francisco, lamentava que sua condição de reclusa a impedia de se fazer martirizar no Marrocos quando teve notícia do fim trágico dos cinco franciscanos que tinham sido executados em Marrakesh em 1220.

♦ Chegando ao Egito, Francisco, muito provavelmente, partilhava dos preconceitos dos cristãos de seu tempo a respeito do Islã. Sem dúvida pouco conhecia a respeito do muçulmanos a não ser pelas letras da canções de gesta em que eram apresentados como idólatras, adorando estátuas de Maomé e de um deus misterioso chamado Tervagant, homens luxuriosos e fanáticos. Não há nenhuma possibilidade que Francisco tenha tido acesso à tradução do Corão em latim que havia sido feita na Espanha por volta de 1140, por ordem do abade de Cluny, Pedro o Venerável, desejoso de refutar os erros dos “filhos de Agar”. Este texto só se tornou conhecido por bem poucos manuscritos e não deve ter sido conhecido na Itália.

♦ Resolvendo encontrar-se com o Sultão, Francisco estava sinceramente convencido que seria martirizado devido à sua fé. Aceitava correr esse risco. Não se tratava de um perigo imaginário. Entre os Frades Menores que ele enviara em missão por ocasião do Capítulo Geral de Pentecostes de 1219, até antes de sua partida para o Egito, cinco foram para o meio dos muçulmanos na Espanha e chegaram efetivamente a seu destino. Dirigindo-se a Sevilha começaram a pregar contra Maomé. Depois de terem sido presos e encarcerados foram enviados a Marrakesh onde Dom Pedro, irmão do rei de Portugal, que comandava um exército de mercenários a serviço do sultão Abu Ya’qub Yusuf al-Mustansir (1213-1224) os libertou. Não levando em consideração os conselhos que lhes davam seus protetores cristãos recomeçaram a pregar em público em Marrakesh. o que fez com que sultão os banisse da cidade. Depois de pouco tempo voltaram, o que lhes valeu serem novamente encarcerados. Uma vez libertados começaram a atacar publicamente o credo do Islã, o que lhes resultou na decapitação em 16 de janeiro de 1229. Alguns meses depois seus restos mortais foram levados para Portugal, onde foram ocasião de muitos milagres. Vendo-os passar na abadia de Santa Cruz de Coimbra – o jovem cônego Antônio – o futuro Santo Antônio de Pádua – tomou a decisão de entrar na Ordem Franciscana. Diferentemente dos frades executados no Marrocos, parece muito pouco provável que Francisco pessoalmente tenha atacado Maomé diante dos muçulmanos presentes. Se tivesse feito não teria podido falar durante um período de tempo bastante longo sem ter sido interrompido e mesmo castigado.

♦ O Sultão parece ter se sensibilizado já que o deixou falar. O encontro dos dois homens resultou em que colocassem em comum as ideias que um se fazia do outro e de sua religião. Al-Kamil logo se deu conta que tal personagem desarmado e vestido de maneira tão curiosa não era um cruzado, mas um homem de Deus e Francisco não encontrou no Sultão o perseguidor que esperava. Tudo se passou mesmo de uma maneira desconcertante para os dois protagonistas, o que constituiu a razão pela qual esse face a face se revestiu de importância histórica e não cessou de fascinar os espíritos ao longo dos séculos.

♦ É vão querer saber o que se passou realmente entre Francisco e o Sultão nesse dia de setembro de 1219. O simples fato de que tenha acontecido um tal encontro por si já constitui uma novidade, ao menos para o Ocidente. Controvérsias religiosas públicas na presença de um soberano costumavam acontecer no Oriente: Al-Kamil presidiu uma no Egito da qual participaram do lado cristãos, os patriarcas copta e o dos melquitas. Resta saber – o que é o mais difícil – que assuntos ocuparam o tempo do encontro. Testemunhas diretas e próximas do evento mencionam todas uma “pregação da palavra de Deus” da parte de Francisco que consistiu em exposição dos princípios da fé cristã e num apelo à conversão. Tal “discurso” teria suscitado no Sultão uma reação de estima para com o pregador, do qual apreciou a coragem e suas convicções. As fontes decorrentes do ambiente de Jean de Brienne falam mais de uma confrontação, de um debate contraditório entre Francisco e os doutores da lei islâmica, o que parece estranho já que Francisco não dominava a linguagem nem os argumentos dos teólogos. Boaventura, por sua vez, introduziu o relato do repto tal como havia relatado Frei Iluminato, dizendo assim que era necessária uma intervenção sobrenatural para aceder à fé. Estamos no campo das hipóteses. Devemos confessar que não há razão sólida para optar por uma ou outra visão.

♦ Não se pode deixar de observar, no entanto, segundo a crônica de Ernoul, próxima do acontecimento e bem informada, Francisco teria declarado ao cardeal Pelágio que queria dirigir-se aos Sarracenos desde que isto pudesse resultar num grande bem. Que “grande bem” poderia justificar uma iniciativa de tanto risco? A conversão do Sultão e de sua “entourage” ao cristianismo como no tempo dos reinos bárbaros da Alta Idade Média? Francisco não era tão ingênuo ou presunçoso para pensar que iria imediatamente conseguir este objetivo. Durante essa entrevista deve ter sido abordado o tema da guerra e da paz como dá a entender um texto de origem franciscana, infelizmente não datado, intitulado Palavras de Frei Iluminado, segundo o qual Francisco teria declarado ao sultão:

É justo que os cristãos invadam a terra em que habitais,
porque blasfemaste o nome de Cristo
e afastastes de seu culto todos os que pudestes fazê-lo.
Se quereis, no entanto, reconhecer a Cristo,
confessar e adorar o Criador e Redentor,
se assim os cristãos haveriam de amar-vos com se amam a eles mesmos.

♦ Pode-se supor que Francisco tenha sugerido ao Sultão que concedendo aos cristãos o livre acesso a Jerusalém e não haveria mais da parte deles empreendimentos belicosos (ou seja, conquistar a cidade manu militari). A Cruzada perderia assim uma de suas motivações fundamentais: a reivindicação do direito para os fiéis de Cristo de se dirigirem pacificamente, sem taxas aos lugares santos da Palestina. Pode-se encontrar um eco disto na proposta que o Sultão faria aos cruzados algumas semanas mais tarde, quando estes últimos tinham tomado Damieta, de restituir-lhes Jerusalém em troca da evacuação rápida do Egito. Esse compromisso que teria o apoio de Jean de Brienne e da maior parte dos barões francos, foi rejeitado pelo cardeal Pelágio que era de parecer de continuar a luta à exaustão contra o Islã e até o momento da capitulação pela derrota de Mansourah, 30 de agosto de 1221. A ideia foi retomada por Al-Kamil e o imperador Frederico II por ocasião das negociações que haveriam de terminar, em 1229, com o tratado de Jafa. Por meio dele, Jerusalém – com exceção da esplanada das Mesquitas- Belém e Nazaré, bem como um corredor de acesso ao mar foram restituídos aos cristãos, o que possibilitou a Frederico II ser coroado rei de Jerusalém na Igreja do Santo Sepulcro sem se ter que verter uma gota de sangue. O imperador excomungado teria realizado o sonho de Francisco, ou em todo caso realizado uma das solicitações que o Poverello havia dirigido a Al-Kamil dez anos antes. Não parece absurdo ao menos levantar a hipótese.

(Continua)

FREI ALMIR GUIMARÃES

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