Cultivar a interioridade
A Cúria Geral da Ordem dos Frades Menores publicou em 2003 um pequeníssimo fascículo que levava o seguinte título de “O caminho que leva ao lugar do coração”. O subtítulo indicava mais claramente sua finalidade: Achegas para descobrir interioridade e silêncio na vida franciscana. Haveremos de ter suas linhas diante de nossos olhos neste Retiro Mensal. Dois acentos nestas páginas: interioridade e silêncio.
Fr. Almir Ribeiro Guimarães, OFM
freialmir@gmail.com
Senhor, não sei para onde vou. Não vejo o caminho diante de mim.
Não posso saber com certeza onde terminará.
Nem sequer em realidade me conheço e o fato de pensar que estou seguindo a tua vontade não significa que em verdade o esteja fazendo.
Mas creio que o desejo de te agradar te agrada realmente.
E espero ter esse desejo em tudo o que faço.
Espero que jamais venha a fazer algo de contrário a esse desejo.
E sei que se assim fizer me hás de conduzir pelo caminho certo, embora eu nada saiba a esse respeito.
Portanto, sempre hei de confiar em ti ainda que me pareça estar perdido e nas sombras da morte.
Não hei de temer, pois estás sempre comigo e nunca me abandonarás. Não enfrentarei sozinho os perigos que me cercam.
Thomas Merton
Na liberdade da solidão, Vozes, p. 66
a) O coração como morada do Altíssimo
Disse Jesus: “Se alguém me ama, guarda minha palavra e meu Pai o amará, viremos a ele e faremos nele a nossa morada. Aquele que não me ama não guarda as minhas palavras. A palavra que estais ouvindo não é minha, mas do Pai que me enviou. Disse-vos estas coisas enquanto estou convosco. Mas o Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, ele vos ensinará tudo e vos trará à memória tudo quanto eu vos disse” ( Jo 14, 23-25).
Francisco diante deste texto: “Irmãos todos, vigiemo-nos muito a nós mesmos, a fim de não perdermos ou desviarmos do Senhor nossa mente e nosso coração sob a aparência de uma recompensa ou obra ou ajuda. Mas na santa caridade que é Deus, rogo a todos os irmãos, tanto os ministros como os outros, removam todos os obstáculos e rejeitem todos os cuidados e solicitudes para com o melhor de suas forças, servir, amar, adorar e honrar, de coração reto e mente pura, o Senhor nosso Deus, pois é isso que ele deseja sem medida. E preparemos-lhe sempre dentro de nós uma morada permanente, a Ele que é o Senhor e Deus todo poderoso, Pai, Filho e Espírito Santo” (Regra não bulada 22, 27).
b) Os que ouvem a Palavra são parentes de Jesus
Enquanto Jesus ainda falava ao povo, sua mãe e seus irmãos, do lado de fora, tentavam falar com ele. Então alguém lhe disse: “Tua mãe e teus irmãos estão lá fora, querendo falar contigo”. Jesus, porém perguntou a quem lhe deu o recado: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?” E estendendo a mão sobre os discípulos, disse: “Eis aqui minha mãe e meus irmãos. Pois quem fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, este é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12,46-50).
Francisco diante deste texto: “Somos esposos, quando por virtude do Espírito Santo, a alma fiel se une a Nosso Senhor Jesus Cristo. Somos irmãos de Cristo quando fazemos a vontade do Pai que está nos céus e somos mães quando o levamos em nosso coração e em nosso corpo por virtude do amor divino e de uma pura e sincera consciência; nós o geramos por uma vida santa que deve brilhar como exemplo para os outros” (Carta aos Fiéis, primeira recensão).
● Quando dispomo-nos a fazer um retiro temos o propósito e o desejo de que o Senhor possa agir e falar em nós. Não queremos resolver problemas, mas deixar que o Senhor nos ilumine e possa tomar posse de nós. Há algumas condições: silêncio de nós mesmos; desejo que o Senhor nos visite com seu perdão porque sem isso não conseguimos olhar nos olhos do Amado; que luzes se acendam no horizonte de nossa vida. Tudo isso será feito com grande humildade interior. No começo do retiro irrompe sempre a questão que nunca terminamos de responder: “O que queres de mim?” Somos convidados a passar alguns instantes em absoluto silêncio, nus diante da claridade do Senhor.
● Francisco começa a descentrar-se de si mesmo, abandona a lógica da carne e se abre às visitas do Espírito. “A partir desse momento começou a considerar de pouco valor e a desprezar as coisas que havia amado, mas ainda não estava plena e intimamente desligado das vaidades do mundo. Aos poucos, porém, subtraindo-se ao tumulto do mundo, procurava guardar no seu interior a Jesus Cristo e quase todos os dias ia frequente e secretamente fazer orações, ocultando aos olhos dos iludidos a pedra preciosa que desejava comprar mesmo tendo que vender tudo” ( Três Companheiros 8).
● Pode ser que, devido a tantas transformações interiores e exteriores, tenhamos perdido a sede de Deus. Não é de estranhar que, com tantos ruídos, imagens e sensações, sem nos termos dado conta, perdemos uma certa orientação que nos guiava, o sentido de nosso projeto de vida e se se tenha instaurado em nós esse bulício que nos envolve. Sentimo-nos desmotivados e desorientados e mesmo sem sede alguma de plenitude. Jogamos a culpa no trabalho, nas circunstâncias. Talvez fosse importante perguntar: Por que perdemos a sede? Que fontes de água andamos buscando? Entregues a nossas rotinas fomos nos tornando seres secos.
● “O caminho para a interioridade hoje dá-se num tempo de mudanças, tempo rico de muitos sinais e de redescoberta da interioridade e do silêncio. A sociedade secularizada vem focada sobre o indivíduo, fragmentado, com uma identidade fluída.Temos diante de nós uma mudança radical da visão do homem, determinada sobretudo pela tecnologia (…). Importante que o homem permaneça o sujeito desse desenvolvimento, sobretudo a partir da verdade profunda de si mesmo. Confrontamo-nos também com o medo de entrar em nós mesmos, com a pobreza de nossos sentimentos, de afetos, de capacidade de amar e deixar-se amar. No espaço da interioridade, o silêncio pede a escuta de nós mesmos, dos outros e da realidade. Os meios de informação podem enganar-nos, ao dar-nos a sensação que eles fazem este trabalho em nosso lugar. Na verdade tornamo-nos estranhos a nós mesmos. O percurso para dentro de nossa interioridade não é somente terapêutico para nossa cultura do barulho, mas também vem a ser um caminho voltado para o acolhimento e para uma nova civilização do amor” (O caminho que leva…,op.cit., p.5).
● Analisando a vida de oração na Ordem dos Frades Menores o ex-Ministro José R. Carballo, escrevia: “Nesses momentos em que muitos sofrem as consequências do estresse e o secularismo introduziu-se entre nós, torna-se mais necessária uma intensa vida de oração. Chegou o momento de reafirmar a importância da oração diante do ativismo e do opressor secularismo. Sempre que estiverem paralisados pela angústia, desorientados e desmoralizados, os Frades e as Fraternidades precisam entrar na “sala superior”, o Cenáculo, num lugar íntimo, onde Deus seja reconhecido e adorado (…). Em tempos em que entre nós se faz sentir fortemente a tentação de cada um construir a própria estratégia e acender o próprio foguinho, é necessário contemplar e rezar para recebermos juntos o único fogo de Pentecostes, o Espírito que vem de Deus. Quando a superficialidade e a dispersão se tornam presentes em nossas vidas, é necessário que toda a nossa existência mergulhe num clima de oração, de contemplação, de adoração, de abandono e de ação de graças” (Com lucidez e audácia, n. 32).
● Anteriormente, o Ministro Giacomo Bini, recentemente falecido, falava da necessidade de reencontrar a unidade na diversidade. Ninguém pode dizer que nosso projeto de vida não esteja claro. O que sucede é que talvez não consiga tornar-se um projeto existencial nem levar a um novo estilo de vida. Essa é a questão. O problema dos documentos produzidos nos últimos tempos é que foram aceitos (quando foram aceitos) como “documentos” e não como instrumentos importantes para a reestruturação e reanimação de nossa vida diária. “Desta forma nossa vida quotidiana está se desintegrando e fragmentando a partir dos inúmeros compromissos e desejos despertados em nós por um mundo demasiadamente consumista. Devemos substituir a cultura da aparência, do imediato, da exterioridade, da eficiência própria do nosso mundo globalizado, por uma cultura da interioridade, do silêncio, da escuta obediente, da fecundidade divina” (A Ordem hoje, Roma, 2000).
● “O silêncio é a linguagem de quem ama. É o ambiente vital em que podemos reconhecer que o Pai do céu está presente e dá sentido à vida humana de cada um (…) A viagem para nossa interioridade não significa uma evasão da vida e de seus desafios. Ao contrário, pode tornar-se um lugar de escuta da realidade e dos sinais dos tempos. Além disso, pode conduzir-nos à unidade entre fé e vida; pode conduzir-nos a uma comunhão profunda, capaz de acolher o outro com respeito e gratuidade. A interioridade e o silêncio levam-nos ao reconhecimento de que somos criaturas limitadas e radicalmente pobres . E assim podemos abrir-nos à gratidão e à restituição de tudo o que somos Àquele que é o Bem, o Sumo Bem” ( O caminho que leva…,op. cit,. p.6).
● “O silêncio é a última palavra do discurso. É plenitude da palavra. É diálogo sem palavras. É a medida do tempo necessário para amadurecer uma mensagem no coração. Consequentemente, é muito pouco defini-lo apenas como ausência de qualquer som ou rumor; é, ao contrário, um realidade plenamente positiva: é escuta intensa da Palavra de Deus. Daí se compreende que não se escolhe o silêncio pelo silêncio, mas o silêncio para a escuta, para o diálogo interior e prolongado, para a comunhão profunda” ( Ubaldo Terrinoni, Projeto de pedagogia evangélica, Paulinas, p. 182).
● Afinal de contas, o que pode bem significar trilhar o caminho do coração, voltar ao interior?
o Conservar sempre um espírito de simplicidade e de humildade.
o Conservar um coração puro que saiba escutar os silêncios de Deus.
o Reservar suficientes momentos de oração silenciosa.
o Fazer regulares revisões de vida procurando saber por onde anda seu coração.
o Ter o hábito da oração de louvor.
o Viver da melhor maneira possível o espírito de desapropriação.
o O caminho para a interioridade é um itinerário de tratamento das feridas mais profundas, é a conversão evangélica. Permitir que o Senhor nos cure em profundidade.
o “Preparar uma morada para ele exige uma revisão do uso do tempo, procurando espaços de gratuidade e de liberdade para si e para a Fraternidade; exige o cultivo de leituras adequadas; exige o tempo para a oração”. (O caminho que leva…, p. 11)
O gosto de Deus
Sem gosto nada se faz.
Para poder se achegar a Deus será preciso um certo gosto de Deus.
Há pessoas que não têm ou dão a impressão de não ter gosto de Deus. Deus não lhes diz nada. Para elas não corresponde a nada. Impossível falar-lhes de Deus.
Há, de outro lado, aqueles que experimentam alegria pelo simples fato de pensar em Deus. São esses que experimentam necessidade de amar e de amar não a qualquer um, a alguém passageiro e imperfeito, mas o Bem perfeito. Desejam, efetivamente, poder se entregar totalmente a ele e de entrar em sua alegria. Entram em sua alegria. O Bem as a trai. Têm o gosto de Deus.
A atração por Deus é experimentada de várias maneiras.
Pode ser uma claridade, um calor, uma atração experimentada que nos chama a buscar sua presença, a entrar ou permanecer em contato com ele.
Como isto pode se dar? Pode ser o sofrimento do vazio, a angústia que busca um coração a amar, o quase desespero em buscar a verdade. Há esse gosto pelo fervor que vem de Deus.
O gosto de Deus é também necessidade de viver com ele: que ele esteja comigo ou em mim, que eu esteja com ele e nele.
É a atração da amizade divina da vida verdadeiras.
Vaidade das vaidades, tudo é vaidade… menos Deus, o ser que não se divide e não pode ser limitado, luzente em sua plenitude sem sombra.
Há pessoas que parecem apreciar a vida em sua espuma. O homem que procura sua vida em alimentos mais ricos: em afetos profundos, na verdade e na probidade, na sabedoria, na justiça, nos atos retos e mais corretos possíveis: este homem vê sua vida se aprofundar e ao mesmo tempo se simplificar.
Em lugar de se derramar na atração pelas coisas passageiras, haverá de recolher-se em si mesmo e se alegrará menos em ter e mais em ser.
Dom Germain Barbier, OSB
Como uma fonte
Senhor, eu não sei rezar.
Incessantemente meu corpo se agita,
meus pensamentos se dispersam como indócil rebanho.
Todo meu ser foge de ti.
Nada mais tenho a oferecer.
E, no entanto, como que manco, inseguro e pesado
estou aqui e te contemplo.
Tu vens a mim, tu o Altíssimo,
o três vezes Santo, o Onipotente.
Debruças sobre mim.
Tu me esperas e me acolhes.
Tu estás em mim como uma fonte
que desliza suavemente declive abaixo.
Esse ribeiro tranquilo e sereno,
torna delicioso o ar com seu murmúrio,
exala frescor
e deposita um canto de alegria em meu coração.
Não me abandones, Senhor.
Sem ti nada sou.
Sem ti volto ao nada.
Permanece em mim como uma fonte.
Que essa fonte ilumine minha opacidade
e vivifique o barro do qual me tiraste.
De minha parte então talvez possa tornar-me fonte para os outros.
Irmão Henri-Renê, Irmão da Ressurreição