Na inspiração de Ecl 3,1-11
Jacir de Freitas Faria[1]
Dando continuidade às nossas duas últimas reflexões, uma sobre perdão e outra sobre o amor, quero, hoje, completar a tríade, refletindo o tempo na inspiração do livro de Eclesiastes. Que é isso: tempo? Passamos por ele ou ele passa por nós? O tempo é nosso ou de Deus? Por que, não doce ilusão do viver, o tempo nos envelhece? O texto inspirador de hoje é Ecl 3,1-11: “Na vida, há um tempo para tudo, nascer, morrer, abraçar, separar, plantar, colher”… Eclesiastes é uma obra-prima de rara beleza poética, divina. Um livro que inspirou poetas, cantores e escritores. O grande poeta Machado de Assis tinha o Ecl como livro de cabeceira. Almir Sater, Titãs emprestam suas vozes para cantar Eclesiastes. Nunca leu o livro do Eclesiastes? Não. Leia. Você vai se deleitar.
O Eclesiastes reflete um pensar realista e não pessimista. Negativamente, ele é identificado a partir do jargão, que abre e fecha o livro (1,2;12,8): “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade!”. O seu autor trata a vida como ela é, e nos convoca a vivê-la com intensidade, pois o tempo, o dia da morte, chega para cada um de nós. Para ele é por causa da morte que somos chamados a rever nossas relações familiares, sociais, econômicas e religiosas, e a nos perguntar: Qual o sentido da vida? Qual o sentido de dedicar tanto tempo ao trabalho? Qual o sentido do acúmulo de riquezas? Qual o sentido em viver se tenho que morrer?
Em meio às perguntas, o autor chega ao sentido mais profundo do viver: a felicidade. E, como a felicidade não existe para sempre, ela é um momento que chega e vai, assim como o vento que sobra onde quer. Vaidade, em hebraico, hebel, em português é vento, névoa, fumaça, coisa passageira, mas também o nome do irmão de Caim, Abel. O segredo da vida, a felicidade consiste em viver cada tempo com intensidade. Se for tempo de chorar, chore. Faça seu luto. Quantos sofrem uma vida inteira por não ter vivido o luto por alguém que tanto amava. Se for tempo de rir, ria; de festejar, festeje. Faça festas, pois, de bons momentos é que a vida é feita. O resto é pura ilusão, vaidade. É tempo de abraçar, abrace, pois quando chega o tempo de despedir, alguém haverá de partir e nem poderá voltar. A vida é assim, um sempre “Tocar em Frente”, música inspirada em Ecl 3,1-6, na voz dos cantores e compositores, Almir Sater e Renato Teixeira: “Um dia a gente chega, e no outro, a gente vai embora”. Portanto, na intensidade do fazer no tempo, eles acrescentam: “É preciso conhecer as manhas e as manhãs, o sabor das massas e das maçãs. É preciso amor pra poder pulsar. É preciso paz pra poder sorrir. É preciso a chuva para florir. Todo mundo ama um dia. Cada um de nós compõe a sua história. Cada ser em si carrega o dom de ser capaz de ser feliz”.
O tempo, o tempo não é questão de cronologia. Nasci em 1962 e vou morrer em 2050, findou o meu tempo. Para o autor de Eclesiastes o tempo é atemporal: “O que foi, será, o que se fez, se tornará a fazer: nada de novo debaixo do céu” (Ecl 1,9). Viver é conferir sentido à vida. O dia é sempre o mesmo. O sol sempre nasce o mesmo. A questão não é o dia e nem o sol, mas como eu estou diante deles. Sou eu quem confiro sentido à vida. Um dia nublado pode ser alegre para mim. E um dia de sol e praia pode ser o pior dos meus dias. A questão está no sentido que dou ao tempo. Estou vivendo intensamente cada tempo de minha vida, ainda que ele seja de dor? A vida dá, leva e se recompõe num eterno rodízio. “Em tempo de felicidade, sê feliz, e no dia da desgraça reflete” (7,14). Quando a felicidade bate às nossas portas, é arte também saber vivê-la intensamente. Há pessoas que são tão pessimistas que nem percebem que a felicidade chegou.
A felicidade pode ser pequena, um gesto, um reencontro, uma viagem… O que vale é viver intensamente. Por que não esquecemos o dia da morte de um ente querido? É porque o vivemos intensamente. O mesmo ocorre com o tempo da infância de nossa vida. Tudo o que é vivido com intensidade, a memória não apaga, eterniza-o, escreveu a poeta Adélia Prado: “O que a memória ama fica eterno”. Na poesia da mineira, de Divinópolis: “Diante do tempo envelhecemos, nossos filhos crescem, muita gente se despede. Porém, para a memória ainda somos jovens, atletas, amantes insaciáveis. Nossos filhos são nossas crianças, os amigos estão por perto, nossos pais ainda são nossos heróis.”
Pois bem, para finalizar, deixo uma última ideia, antes que o tempo acabe: “Vivamos intensamente o tempo de nossas vidas, aproveitando cada momento com responsabilidade, muito amor e perdão. Viver é a arte de viver intensamente no amor! Morrer é arte, desde que se tenha vivido com intensidade. Viver e morrer se entrelaçam numa única irmandade. Bom, mas sobre o tempo da morte, falaremos numa próxima reflexão. Até lá! Paz e bem!
[1] Doutor em Teologia Bíblica pela Faje (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA-BH). É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de treze. Último livro: O Medo do Inferno e arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019).