Frei Almir Ribeiro Guimarães
Não posso clamar “meu Senhor e meu Deus” sem ver a ferida que alcança o coração. “Se credere (crer) provier de cor dare (dar o coração)”, então eu preciso confessar que meu coração e minha fé só podem pertencer ao Deus capaz de mostrar as suas feridas.
Tomás Halík, Toque as feridas, p.13
No momento em que me dispunha a refletir sobre a vida, nesse tempo de confinamento, não saía de minha cabeça o famoso poema de Drummond: “E agora, José?”. Meio perdido no tempo e no espaço, com portas que iam se fechando, o pobre homem estava diante dessa pergunta que a vida lhe fazia: “E agora, José?”
A mesma pergunta é dirigida a cada um de nós: “E agora, José?” Nosso confinamento social ainda não acabou. Andamos vivendo com recursos eletrônicos, on-line, lives, conferências e reuniões virtuais e a vida segue seu curso de maneira precária. José Tolentino Mendonça diz que fomos feitos para o abraço e precisamente o abraço nos é negado. O autor português afirma que, segundo entendidos, necessitamos de doze abraços por dia! Depois da pandemia vamos descontar. Colocaremos em dia nossa cota de abraços. O presencial faz falta. Ver de perto, tocar a pele, sentir o perfume dos que nos querem bem. Faz falta dizer um bom dia ao motorista de ônibus e um até logo à dona Lina que limpa o escritório onde trabalhamos.
Nesses meses todos, sempre em casa, foram pouquíssimas saídas sempre com máscara, gel e todos os cuidados. Não temos vontade de ligar televisão. As imagens e as falas nos fazem mal: óbitos, internações, testes, covas comunitárias, gente morrendo sem poder dizer adeus, curvas ascendentes de infectados… e o caos no meio dos senhores da política que deveriam cuidar da vida do ser humano que é a maior riqueza de uma nação. Ah! os governantes!!! Foram pegos de surpresa. Nos seus desejos loucos de subir na vida não esperavam por esta.
Certamente, a questão da economia no tempo da pandemia é importante. Não é meu intento aqui entrar na questão. Não me sinto competente. Afirmo que dói muito ver esses milhões de desempregados, de camelôs, de seres humanos que morrem do vírus, de fome ou se matam. O ser humano é que conta. Quem sabe o “mercado” possa abrir os olhos… Todo esse terrível vírus e as mortes em todo o planeta (espero que os astronautas não tenham levado o vírus para a lua) já fez grande estrago na terra.
A vida vai fazendo seu curso. Abrindo a janela pela manhã eram belas as quaresmeiras que baloiçavam que se movimentavam como num balé. Depois as árvores perderam o arroxeado. Vieram os manacás da serra com flores de muitas cores. Espero agora as azaleias de agosto e depois os agapantos de novembro. A vida continua. As águas correm, os pássaros “namoram” na hora certa e fazem seus ninhos. Nós paralisamos. O minúsculo vírus nos paralisou. Os aviões deixaram de voar. Os cinemas fecharam as portas. As pessoas deixaram de estar juntas. Aguardando o novo tempo e olhando o mundo à distância, pela janela. Quando vai passar?
Fizemos algumas experiências fortes nesse tempo todo. A primeira delas, penso eu, foi a do medo. Não estamos apenas perdendo dinheiro, postos e sei lá o que. Temos medo de morrer e de ver morrer nossos entes queridos e que levaram consigo sonhos que juntos sonhamos. Distanciamento físico, mas calor no coração mas com medo de abraçar. Medo porque este inimigo é especial. Não se assusta com carro blindado nem com alarmes e sensores. Não podemos estancá-lo. Ele é sutil e invisível. Um medo forte. Medo de morrer. Antes da hora? Na hora certa? Não sei.
Junto com o medo vivemos um período de insegurança. Os grandes da terra também mostram-se inseguros (ou inconscientes). Estamos andando na corda bamba. Máscaras, gel, lavar as mãos… nem sempre são seguros. Insegurança quanto ao amanhã da profissão e dúvidas se poderemos nos reciclar nesse mundo novo cujos contornos desconhecemos. Teremos que voltar para as primeiras letras. Aprender numa outra cartilha. Espero que seja um mundo mais humano e não frio marcado pelo egoísmo e terrível indiferença.
Talvez, como nunca, neste momento a humanidade faz uma experiência de pobreza, de consciência dos seus limites. Os grandes foram derrubados de seus tronos. Não são atingidos apenas os habitantes das favelas. O vírus não faz seleção. São também infectados deputados e senadores, artistas e intelectuais, primeiros ministros e presidentes. O dinheiro e o prestígio contam pouco. Não somos donos de nossa vida. Não somos autossuficentes. Dependemos. Dependemos dos familiares, do pessoal médico-hospitalar que cuide de nós. Não podemos ter o nariz arrebitado. Dependemos dos pesquisadores: que encontrem uma vacina. Dependemos do Estado que nos dê um auxílio emergencial. Dependemos. Não somos deuses. Temos que reconhecer e agradecer os que colocam gestos e ações que não somos mais capazes de conseguir sozinhos. Eles nutrem nossa sobrevivência. Aprendemos a dizer “muito” obrigado.
Nesse período, como nunca, precisamos aprender a arte de conviver. Espaços domiciliares exíguos, muita gente em casa, gente que se estima e gente que se tolera, solidariedade nos serviços domésticos ou não, agressões verbais e físicas… Para onde fugir? Talvez, digo bem, talvez pais e filhos estão tendo ocasião de conversar, examinar comportamentos, simplificar a vida, moderar os desejos, desculpar a intolerâncias. Digo bem, talvez. No exíguo espaço de muitas casas há irritação. Será que conseguimos aprender a conviver?
Este tempo foi e é momento em que precisamos renunciar. Palavra delicada. Aceitar que não aconteçam e se concretizem projetos a médio e curto. Palavras correntes: adiado, protelado, cancelado, revisado, em estudo. Fomos aprendendo a diminuir desejos e projetos. O dinheiro que pensávamos ter, foi minguando com despesas novas ou com o fechamento de tantas coisas. Quem sabe vamos conseguir viver com menos e viver melhor. Quem ganha perde e que perde ganha. Novamente a questão da pobreza: viver feliz com menos.
Diria que querendo ou não vamos nos exercitando na obediência. Fomos obrigados a seguir as orientações. Não há escapatória: nada de aglomerações, distância, máscaras, gel. Quem não obedece está sujeito a multas. Tudo tem com finalidade de permitir a continuidade de nossa vida e da vida dos outros. O importante é a vida. Sempre de novo um apelo a que sejamos menos egoístas e não pensemos apenas em nosso quintal. Se não aprendemos por bem, a vida, por sua vez, tem suas lições duras.
Um dos espetáculos mais belos que podemos presenciar nesse confinamento foi o da dedicação e do heroísmo de todos os que trabalham em hospitais, mormente estabelecimentos públicos, com a sua habitual precariedade de recursos (e ainda com aproveitadores indecentes superfaturando as encomendas). Aprendi a ter imenso respeito pelo Ministro da saúde que enfrentou os primeiros meses. Médicos, faxineiros, pessoas que preparavam os mortos para serem sepultados, enfermeiros vigiando a respiração, a vida que poderia se extinguir. E a dor de dizer: “Mais um morreu”. Essa gente deu e dá um exemplo de dom de si, de esquecimento de seus interesses, plantões dobrados, sem poderem cuidar de suas famílias. Ousaria dizer que Deus pediu suas mãos para estar junto dos que sofrem ou porque Deus vive no doente de forma especial. Não seriam as chagas de Jesus a clamar nessa gente toda? A grande virtude desses agentes de saúde foi a solidariedade corajosa. São seres humanos verdadeiramente “humanos” que choram de alegria ao se despedirem de uma senhorinha de oitenta anos que ficou curada. Somos todos iguais.
Fizemos ou continuamos a fazer um prolongado tempo de recolhimento, um grande retiro. Penso aqui, de modo particular, nos cristãos. Incluo todos os homens de boa vontade sem rótulos e etiquetas. Estamos todos no mesmo barco, o barco da vida. Meses em casa. Com o silêncio no exterior e nas profundezas de nosso interior tivemos ocasião de pensar, refletir, fazer o filme da vida. Quantas alegrias ao longo da vida. As recordações do tempo percorrido empurravam a porta de nossa intimidade. De quando em vez surgia a figura da madrinha, depois os bolos que a mãe fazia, os médicos que nos olharam. E, compreende-se, também, avizinhavam-se de nós as pequenas e grandes loucuras cometidas: o servir-se do outro, esse descuido de amar até o fim, as feridas que deveríamos ter curado e que não permitimos que fossem cicatrizadas. Quantas lembranças. Havia dias em que pegamos os salmos de louvor: “Bendirei o Senhor em todo o tempo…”. Outras vezes: “Das profundezas eu clamo a vós, Senhor…”. Tempo de fazer as pazes conosco mesmo e de colocar-se como uma criança diante dos olhos do Amor. Bendito tempo de tal recolhimento que nos levou ao fundo de nós mesmos.
Nesse tempo de recolhimento, de leitura, de viagem ao fundo do coração, de dores e dissabores quem sabe nasce o desejo de viver uma existência mais simples com manifestações de fé mais verdadeiras. Difícil exprimir o que seria isso. Uma vida de verdadeira fé e não uma existência pontilhada de gestos religiosos sem densa consistência.
♦ Quem sabe tomar consciência que já somos criaturas novas, que a nossa carne morreu com a carne de Jesus e ressuscitou com Vida dele na nossa vida… nossa vida na vida dele. Sem muito espalhafato. Sem muitos gritos frenéticos. Nossa vida está escondida com a carne gloriosa de Jesus no seio do fogaréu da Trindade. Consciência plena de somos em Cristo.
♦ Importante a missa, os sacramentos desde que vividos. Escuta da Palavra com um coração desatravancado, o corpo dado e o sangue derramado do Senhor continua em nossa vida quando damos o corpo para o surgimento do mundo de irmãos. Nossas missas… ah nossas missas… algumas frias, rígidas, ritualísticas, sem alma, secas. Celebradas ou assistidas para cumprir uma obrigação. Entramos na igreja e saímos sem ter atinado com o Mistério. Outras um encontro qualquer. Quanto mais barulho melhor. Celebrações eucarísticas verdadeiras podem nutrir nossa fé: fazer a memória, partilhar, anunciar e antecipar. A Eucaristia é o centro de nossa vida.
♦ Sempre se insistiu. Pouco se fez. Compreendo que se façam celebrações em grandes espaços, muita gente. A vida fica viçosa quando fazemos experiências de fé em grupos à dimensão humana, quando a Palavra penetra em nós e perto de nós a acolhemos com outros na nudez de nossa verdade. Comunidades sem pieguice. Gente de contemplação que sai pelas estradas do mundo a irradiar a alegria de sua fé. Gente que tem algo de significativo a dizer ao mundo. Que gosta da vida. Que irradiam esperança.
♦ Quem sabe depois da pandemia os cristãos serão pessoas mais despojadas, menos ritualísticas e mais ternas, exigentes no que toca o Evangelho, mas menos intransigentes mais misericordiosos diante da fragilidade, gente que de fácil acesso, pessoas que refletem uma bondade que vem de Deus que neles fez sua casa.
Houve guerras violentas na face da terra, muito sangue derramado, muita dor. Conhecemos o terror dos campos de concentração, o extermínio dos judeus, os cataclismos e as devastações. Tantas epidemias ao longo dos séculos. Mortes e mortes. E agora esse terror que tira a possibilidade do ser humano respirar. Muitas e fervorosas preces e pedidos foram e estão sendo dirigidos ao Senhor. Os céus silenciam. O homem dos salmos, quantas vezes, reclama do silêncio de Deus. Mistério do silêncio de Deus.
Um dia o Verbo de Deus se fez homem, carne, viveu e morreu. No alto da cruz lá estava Deus morrendo as mortes de todos. Também nesse tempo da pandemia. Fé e sempre de novo fé. Dietrich Bonhoeffer, ele que sofreu os horrores dos campos de concentração, diz: “Deus não nos salva da cruz, mas na cruz”. Deus parece indiferente ao nosso sofrer. Talvez ele possa dizer que está ali, no madeiro, com o peito aberto sofrendo nossos sofrimentos. “Deus não nos salva da cruz, mas na cruz”. Uma força vem dele. Retomando Halík: “…preciso confessar que meu coração e minha fé, só podem pertencer a um Deus que mostra suas feridas”.
O que vai acontecer depois… quando fizermos o rescaldo, precisaremos de seres bons e lúcidos, inteligentes e humildes, nova raça de seres humanos e de seguidores apaixonados pelo Evangelho. Quem viver, verá. O novo vai irromper. Tem que acontecer depois da tempestade!
Permitam-me terminar estas reflexões com Drummond:
Com a chave na mão
quer abrir a porta
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou,
quer ir para Minas, Minas não há mais.
José, e agora?
FREI ALMIR GUIMARÃES, OFM, estudou catequese e pastoral no Institut Catholique de Paris, a partir de 1966, período em que fez licenciatura em Teologia. Em 1974, voltou a Paris para se doutorar em Teologia. Tem diversas obras sobre espiritualidade, sobretudo na área da Pastoral Familiar. Atualmente reside no Convento do Sagrado Coração de Jesus de Petrópolis (RJ).