Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Rito e jogo: coisas muito esquecidas

10/07/2014

raposa

Leonardo Boff (*)

Nestas semanas de Copa Mundial de futebol vivemos cenas carregadas de ritos, festas e símbolos. A abertura oficial é uma sequência de ritos e símbolos ligados ao futebol, principalmente a apresentação dos times e o canto do Hino Nacional. O ambiente de festa enche as cidades, enfeita as ruas e as janelas das casas.

Vamos abordar o tema do rito e da festa, cujo sentido humano e social nem sempre é refletido quando não  é esquecido.  Antes de mais nada, sem o rito não há festa, porque esta se move dentro do mundo simbólico, feito de ritos e símbolos. O comer e o beber na festa não visam matar a fome e saciar a sede. Para isso comemos em casa ou num restaurante. Eles simbolizam a amizade e a alegria do encontro e de juntos participar de um evento como uma partida de futebol. Cantar na festa não quer ser um show de música artística mas expressão ritual de euforia e de desafogo existencial. E como se celebra e se bebe quando o time de estimação vence uma partida ou ganha um campeonato.

“Que é um rito?” perguntava  o Pequeno Príncipe à raposa que o havia cativado, no famoso livro de A. de Saint Exupéry com o mesmo título. E respondia: “É uma coisa muito esquecida; é o que faz os outros dias diferentes dos outros dias, uma hora diferente das outras. Há um rito entre meus caçadores. Às quintas-feiras eles dançam com as meninas da vila. Então, na quinta, é um dia maravilhoso!  Eu vou passear até o vinhedo. Se os caçadores dançassem qualquer dia, os dias seriam todos iguais e eu não teria férias” (p.27).

O rito, pois, é o que faz a festa, como o dia diferente dos outro dias. Mas ele só ganha força expressiva se houver a preparação e a espera interior, como ocorre antes de um jogo de futebol entre dois times famosos. Por isso pondera a raposa ao Pequeno Príncipe: “Você faria melhor se viesse sempre na mesma hora; se vier, por exemplo, às quatro da tarde, já às três eu começarei a ser feliz… mas se você vier a qualquer momento eu não saberei jamais como preparar o meu coração… São necessários ritos” (p.71).

Só com o rito haverá festa porque então todas as coisas perdem sua consistência natural, para assumir um valor simbólico e profundamente humano. Elas perdem sua finalidade (são inúteis) para ganhar seu verdadeiro sentido. Os ruídos dos passos não espantarão mais a raposa mas são como música: lembram a aproximação do Pequeno Príncipe. Os trigais não fazem recordar o pão (finalidade) mas os cabelos de ouro do Pequeno Príncipe (sentido).

Geralmente forte é a presença do rito, além dos fatos acima referidos, nas celebrações religiosas (o matrimônio, por exemplo, ou a ordenação sacerdotal). O rito exprime melhor o sentido das coisas que a linguagem que é “fonte de mal-entendidos” como comenta a raposa. Por isso, o rito é tanto mais expressivo quanto mais brotar das profundezas de nosso eu, de nossos arquétipos profundos, onde se elabora nossa identidade pessoal.

Todo ser humano, mesmo o mais secular e racional, é mítico no sentido da expressão ritual e simbólica. Quando quer dizer o que ele mesmo é, sua alegria, sua tristeza, sua paixão, seu amor não usa conceitos frios mas metáforas ou conta histórias de vida que são os mitos reais. Por eles, emerge o mistério da caminhada pessoal de cada um, sem violá-la. Os ritos e as celebrações sempre pedem seriedade e concentração.

Tudo isso que descrevemos do rito tem muito a ver com o jogo. Não penso aqui no jogo que virou profissão e grande comércio internacional como o futebol e outros. São antes esportes que jogos.  O jogo, como ocorre nos meios populares, nas peladas ou na praia, não possui finalidade prática nenhuma, mas em si mesmo carrega um profundo sentido como expressão de alegria de estar e de divertir-se juntos.

Há uma tradição antiga das duas Igrejas-irmãs, a latina e a grega que se referem ao Deus ludens, ao homo ludens e até da eccclesia ludens (o Deus, o homem e a Igreja lúdicos).

Eles viam a criação como um grande jogo do Deus lúdico: para um lado jogou as estrelas, por outro o sol, para baixo jogou os  planetas e com carinho jogou a Terra, equidistante do Sol, para que  pudesse ter vida. A criação é uma espécie de alegria transbordante de Deus, um theatrum gloriae Dei (teatro da glória de Deus).

Num belo poema diz o grande teólogo da Igreja ortodoxa Gregório Nazienzeno (+390): “O Logos sublime brinca. Enfeita com as mais variegadas imagens  e por puro gosto e por todos os modos, o cosmos inteiro”. Com efeito, o brinquedo é obra da fantasia criadora, com o mostram as crianças: expressão de uma liberdade sem coação, criando um mundo sem finalidade prática, livre do lucro e de vantagens individuais.

“Porque Deus é vere ludens (verdadeiramente lúdico) cada um deve ser também veres ludens, admoestava, já velhinho, um dos mais finos teólogos do século XX, irmão de outro eminente teólogo, que foi professor meu na Alemanha, Karl Rahner.

Estas considerações vêm mostrar como pode ser desanuviada e sem angústias a nossa existência aqui na Terra, especialmente quando transfigurada pela Presença jovial de Deus em sua criação. Então, não precisamos temer. O que nos tolhe a liberdade e a criatividade é o medo. O oposto à fé não é tanto o ateísmo mas o medo, especialmente o medo da solidão.Ter fé mais que aderir a um feixe de verdade, é alegrar-se por sentir-se na palma da mão de Deus e poder viver diante dele como uma criança que despreocupadamente brinca.

(*) Leonardo Boff, teólogo e escritor, é um dos principais autores da Editora Vozes

 

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