Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Setembro 2017

SETEMBRO 2017

Mais uma edição de nossa revista  “Tirando do Baú  coisas novas e velhas”. Que baú é esse?  É um espaço interior. Nas profundidades de cada um há mistérios. Vivências do passado afloram.  Há também o novo que vai  pedindo licença para fazer  parte da vida. Que estas páginas possam tocar o coração e a mente dos leitores.

Frei Almir Guimarães

I. PARA COMEÇO DE CONVERSA

Paulo Machado da Costa e Silva

 

Os franciscanos seculares conhecem bem o “irmão” Paulo. Os petropolitanos, por sua vez, ao se referirem a ele o designam de “professor Paulo Machado”. Está página é uma manifestação de carinho a um dos mais franciscanos entre os franciscanos. Isto é para  começo de conversa.

 

No dia 17 de maio de 2017 Paulo Machado da Costa e Silva, comemorou festivamente seu centenário de vida numa bela celebração  na Igreja do  Sagrado Coração de Jesus e na Casa da Ordem Franciscana Secular, em Petrópolis. Familiares, amigos da cidade, muitos irmãos e muitas irmãs da Ordem Franciscana encheram o templo da rua Montecaseros. Um digno cidadão, uma pessoa de Deus, um filho carinhoso de Maria e um irmão franciscano, assim é Paulo Machado. Houve discursos, cantos, aplausos, expressões de gratidão, emoção. O mês de maio em Petrópolis ficou mais bonito e a rua Montecaseros não cabia em si de tanta alegria. Faltaram bandeirinhas e uma banda de música!

Paulo não vive mais em seu apartamento no  Edifício  Cinda, na rua do Imperador, perto do Colégio Santa Isabel. Há algum tempo ele  precisou recolher-se a um  Lar de Idosos no Distrito de Itaipava,  na  Casa dos Irmãos de São João de Deus. Numa tarde de setembro recebi o convite de um terceiro franciscano para visitar o Irmão Paulo já com 100 anos e quatro meses.

Ele passou a viver num quarto asseado e claro com as coisas necessárias para uma vida digna. Lá chegando encontrei Paulo com as vistas marcadas pelos anos, os pés inchados, muito bem vestido com um terno cinza e uma camisa social sem graveta. Dizendo-se cansado, ouvindo com aparelho, respondendo com voz forte, lembrando-se de tudo.   Aceitei o convite para a visita também porque queria ainda uma vez administrar-lhe o sacramento da unção dos enfermos. Antes falamos sobre as catástrofes  políticas brasileiras, os processos, as condenações,  a função do Procurador Geral da República, da Polícia Federal, do Ministério Público. Sobre cada um desses itens ele deu um sucinto e preciso  resumo. Evocamos passagens da história: o tempo do governo Eurico Gaspar Dutra, da influência que exercia a primeira dama  Carmela Dutra,  o tempo de Brasília, do governo Juscelino, da construção da capital no Planalto.  Lembramos que nosso  Hotel Quitandinha no idos de 1940  recebia a fina flor das artes de Hollywood.  Uma conversa amistosa…

Ali estava um pai de família extremado, professor de português e de história, vereador, advogado, assessor da Câmara Municipal, sobretudo um homem reto, um ser humano límpido e transparente,  um cristão, um devoto profundo de Maria e honra da Família Franciscana de modo especial dos franciscanos seculares.  Exerceu cargos na OFS em muitos escalões. Foi colaborador na redação da preciosa Regra dos terceiros aprovada por Paulo VI em  junho de 1978.  Um homem que concretizava o ideal do cristão leigo franciscano vivendo no mundo e sempre com o coração a dizer que ele  precisava ser contemplativo. Um contemplativo na ação. Nos últimos anos andou se despojando de tudo e passou a viver  apenas com o estrito necessário.

Sobre uma cadeira do quarto havia um exemplar do jornal “O Globo” com notícias a respeito de Palocci, Janot e a Lava-Jato. Um homem que se interessa,  aos 100 anos, pela vida e pelo que acontece no mundo.  Um homem que recebia com gratidão e alegria, uma vez mais o sacramento da unção dos enfermos. Um leigo cristão…

Depois de uma visita de perto de uma hora deixamos o quarto do  “professor”. Ficou em Itaipava aquele gigante com o corpo alquebrado,  as pernas inchadas, a dificuldade de ouvir e de enxergar, vestido com um terno, uma camisa sem gravata e respirando uma imensa  dignidade  através do irmão corpo.

Foi uma visita que fizemos ao irmão Paulo Machado da Costa e Silva, honra da Família Franciscana e da Ordem Secular inventada por Francisco de Assis.

II. LEITURA ESPIRITUAL

Saudades do silêncio

 

Há ruídos demais.  Sons dos veículos, da tagarelice, das músicas sem beleza.  Há gritos dentro de cada um de nós que abafam nosso eu mais interior.  Tudo é zoada. Ficamos surdos e não sabemos mais falar de verdade. Nosso interior foi se esvaziando de nós mesmos. Quando falamos, o que dizemos é insignificante. Tornamo-nos seres vazios de nós mesmos e não escutamos mais a voz do Mistério.

 

Há esse barulho exterior. Carros, gritos, berros. E esse nosso “eu” perdido e sufocado. Perdido. Mesmo quando percorremos áreas de silêncio exterior temos medo do “barulho” do silêncio. O silêncio nos incomoda. Além da invasão do barulho exterior há esses gritos interiores. Essa falta de coragem de vermo-nos e ouvirmo-nos. Nas praças, nos restaurantes, até mesmo nas capelas as pessoas estão em rede, comunicando, deixando que os ruídos interiores as entorpeçam. As pessoas querem se comunicar, mostram suas ideias nem sempre aproveitáveis e até mesmo exibem o corpo com certo despudor. Tudo leva a uma excitação sem nome. Como não ficar “louco” com tantas informações? Temos  saudade do silêncio. Ou não?

Viemos de um silêncio eterno que os místicos chamam de “nada”. Esta experiência fundadora culmina no seio materno onde, como reza um midrash judaico, conhecemos toda a Torá sem haver escutado ou pronunciado sequer uma palavra. Somos também o único animal da criação sabedor, de ciência certa, que nosso destino final é esse mesmo silêncio eterno que representamos com a imagem de um desaparecimento total ou simplesmente com um além. Somos silêncio, cidadãos do silêncio, viandantes angustiados e apressados, em caminho de volta para esse nossa verdadeira pátria.  Tudo o mais é ilusão  (Simón Pedro  Arnold, OSB, , Revista  Testimonio,  Chile, p. 35).

Como acontece com o ar, meio onde a luz se propaga e vibram infinidades de ondas, como o fogo que aquece e ilumina, como a terra que nos sustenta e alimenta, o silêncio é elemento vital indispensável para nossa “subsistência” espiritual, para nosso equilíbrio interior, para a paz e a inteligência do coração e da alma. É também elemento raro, sutil e frágil que precisa ser procurado e buscado e fertilizado com todo carinho para que venha a ter viço e fecundidade.  O ar viciado é irrespirável, o fogo mal cuidado morre ou tudo destrói, a água poluída se torna veneno e a terra descuidada torna-se estéril; da mesma forma o silêncio  – e a solidão à qual está vinculado  – precisa ser desejado, respeitado e cultivado  com atenção e paciência para se transformar  em puro espaço de concentração, de meditação e de sonho. Se quisermos perceber, por mais tenuemente que seja, o pulsar do mundo, o sopro que sustenta o Invisível, algum eco colhido  no cantar dos confins, será preciso desenvolver a acústica do silêncio”  (Sylvie  Germain).

O silêncio num momento de tristeza fala mais do que as palavras. Quando perdemos um ente querido, frases de condolência são completamente impotentes. Queremos confortar o outro com nossa ternura e delicadeza, mas nossas tentativas serão em vão.  No melhor dos casos expressarão gentileza e afeto pessoal, mas não terão o poder curativo que tem o silêncio.  Nessas horas, um abraço silencioso diz mais do que qualquer protocolo ou fórmula  praticados na presença do corpo daquele que se foi. Alguns dizem: “Era a hora dele”, outros, “meus sentimentos”, “rezarei por ele, “Deus o chamou”, ou mesmo, “agora ele descansou”. Todo esse rosário de expressões bem-intencionadas, ditas de coração, são muito pouco quando comparadas com a força comunicativa  de um abraço silencioso, porque no abraço os dois corpos se unem em um só e as distâncias desaparecem.   Consequentemente, a empatia é a maior possível. É preciso ter a coragem de calar  quando o silêncio é mais expressivo que as palavras. Muitas vezes falamos para evitá-lo, já que ele nos desnuda, nos desarma, enquanto as palavras distraem, entretêm.  Por isso é preciso se despir  das vestes das palavras e encontrar-se nu diante do outro  (O valor de ter valores, Francesc  Torralba,  Vozes, p.  85-86).

O homem moderno já acha  difícil estar só; ir em busca  dos  fundamentos do seu próprio eu é quase impossível para ele. E quando alguma vez permanece consigo mesmo no cantinho silencioso, e estiver quase  chegando ao conhecimento de Deus, ele liga o rádio ou a televisão (Thomas Merton).

III. ORAÇÃO DE QUEM SE RECASA

Uma súplica do fundo coração

 

São incontáveis os homens e as mulheres, esses  que selaram seu amor com o sacramento do matrimônio e que não conseguiram chegar ao termo da aventura conjugal. Muitos deles refizeram sua vida com outro companheiro ou outra companheira. Uma mulher poderia  balbuciar diante o Senhor esta  súplica do fundo do coração:

 

Senhor,

coloco-me diante de ti  com um coração  confiante  e simples.

Tu me conheces, perscrutas o meu deitar e o meu levantar.

Conheces a trama de minha vida, os sonhos que andei arquitetando e

tudo aquilo que foi “acontecendo” ao longo do tempo de minha vida conjugal.

Tive diante de meu peito  ramalhetes  de alegria:  o companheirismo, o nascimento das crianças, as festas, as surpresas, tantos momentos de ternura.

Também quanta dor, tempos de profundo sofrimento e grande solidão: indiferença, rudeza no trato, infidelidades da mente, do coração e do corpo tantas vezes repetidas.

Chegou o momento em que não dava mais para continuar.

Tu bem sabes tudo o que se passava em meu interior no momento da decisão: pensei nas crianças, nesse homem que eu havia escolhido por companheiro, naquilo que havíamos construído juntos e também no que nunca fora construído.

Tive a firme convicção de que eu precisava sobreviver que não poderia continuar prendendo a respiração e sofrendo.

Precisava amar-me a mim mesma.

Meu mundo foi desmoronando enquanto a fonte de minhas lágrimas ia secando no fundo de meus olhos.

Depois de um tempo de restauração de meu interior resolvi me casar novamente

Quanto me custou esta decisão!!!

Pensava sempre na missa, na comunhão, na vida de intimidade que sempre tive com o Pão da Vida, o Pão dos pobres.

Nunca quero estar longe desse alimento e espiritualmente  por todos os meios e modos possíveis haverei de estar unida ao Deus feito carne, pão e misericórdia.

Quero continuar a ser profundamente cristã, discípula de Cristo.

Continuarei a propagar a beleza do Evangelho pelos meios que estiverem a meu alcance.

Meus filhos, quanto depender de mim, serão discípulos.

Suspiro caminhar pelas sendas que me levem à santidade

Quero ser santa.

Esta minha nova família, família meio diferente, será cristã.

Rezaremos juntos, acolheremos a Palavra da Vida, respiraremos o perfume do Evangelho

Necessito de tua força, de tua luz, de tua misericórdia.

Que meu novo companheiro seja pai para filhos que ele não gerou,

seja amigo deles e meu companheiro.

Aprendi lições ao longo de meu primeiro casamento.

Conto com tua força, Senhor Deus de amor.

IV. TEXO SOLENE

A eterna juventude

 

“É proibido envelhecer, envelhecer é um pecado”, escreve  Maurice  Zundel, sacerdote suíço (1897-1975), um dos grandes espirituais do século  XX. Tomar a decisão de permanecer jovem, de optar pela vida é descobrir o segredo de Deus, ou seja, o dom de si.

 

Na medida do possível será fundamental conservar a juventude de nosso corpo, da memória e da inteligência. Sempre, no entanto, conservar a juventude do coração. Isto quer dizer estar sempre voltado para o Oriente onde reluz o Semblante da eterna juventude. Estaremos sempre dispostos a acolher todas as opiniões, mas sempre voltados para a Luz viva, para a Luz sempre jovem, sempre bela que chega até nós com um Semblante de candura.

Esta eterna juventude assim se define: A única juventude imperecível é a do Sim. Cada manhã haveremos de entrar no mundo com nosso consentimento à vida… Dizer sim à vida tal como ela é,  dizer sim aos outros tais quais eles são, isto é entrar cada dia de novo no mundo, é renascer, é comunicar com o sim criador, é permanecer jovem da juventude de Deus.

 

V. VIDA CONSAGRADA

Pensando em voz alta

 

Reflexões descosturadas sobre o caminho cristão da vida consagrada.

 

No começo de tudo, antes de tudo está a vida. O importante é viver. Levantar os braços e cantar um hino ao existir, sob o sol, a lua, as estrelas nesse imenso jardim em que fomos colocados. Viver intensamente, não pela metade. Nascer, crescer, conviver, abrir espaço para o outro, para o amor de verdade. Conviver com os companheiros da grande viagem que começa  com a concepção no seio da mãe e termina  na terra de um cemitério ou simplesmente num punhado de poeira lançado  num canteiro de rosas ou nas águas do mar.  Sim, na esperança que tudo não termine destarte, mas num face a face com Aquele que nos criou e no momento da morte nos tira do mundo para que sejamos iluminados e inebriados em sua Luz.

Borbulha a vida em cada um de nós: busca de realização, colocar em ato as possibilidades que existem dentro desse mistério que somos cada um de nós. Conviver. Aceitar prazenteiramente a companhia desses tantos outros. Amar e ser amado. Dar um sentido a esse espaço que se chama vida. Sempre de novo a vida. No meio de tudo o Mistério, esse Deus que não cabe em nossas pobres categorias, a nos chamar, fazendo com que o coração inquieto não deixe de buscá-lo.

Triste ver esses seres jogados à beira da estrada, sem eira nem beira, esses homens e mulheres vazios, ocos, alimentados de mensagens fugazes, sem parar, sem cessar, sem pensar. Quantos nada têm a fazer senão girar em torno de seu próprio ego que aprenderam a idolatrar. Tanto os discípulos da sociedade de consumo como esses restos humanos jogados à beira do caminho fracassaram na penosa e difícil arte de viver.

Pode ter acontecido que, nos albores de nossa existência tenhamos nos deixado tocar pela força, pelo dinamismo do Evangelho. Talvez tenhamos nascido no seio de uma família católica e vivido preceitos de uma religião e não tanto os desafios da fé. Com o passar do tempo, quem sabe, pelo testemunho e coragem de uns e outros, pelo vigor evangélico de vidas à nossa volta, fomos convocados para ser discípulos. E mais. Fomos sendo “tentados a largar tudo” para empreender uma aventura radical de especial consagração ao Amado e a seu projeto. Um apelo. O Amado pedia para ser amado. No começo, meio macambúzios. Meio taciturnos como Francisco de Assis no tempo de suas buscas. Pode ser que o Evangelho tenha chegado até nós como o bisturi de um médico e deixado marcas em nossa carne e em nosso coração

De repente nos identificamos com o jovem rico, com o pequeno Zaqueu, com Madalena,  com a mulher que lavava os pés de Jesus  com suas lágrimas e os enxugava com os cabelos.

Seguir, seguimento, colocar nossos pés nas pegadas que os pés de Jesus deixam no mundo. Seguir com o companheiro de caminhada, pão, vida. Três grande experiências: a proximidade do Altíssimo, o viver a fraternidade e a urgência de recolher os  jogados à beira do caminho. Vida religiosa.  Vida de consagração irrestrita.  Vida de oração, de profunda intimidade, de amizade e de cumplicidade com Cristo vivo, ressuscitado e presente.  Uma experiência de fraternidade a partir do coração aberto ao outro.

Ordens e congregações. Cada uma com seu carisma. Os franciscanos voltam sempre aos seus primórdios. Uma vida segundo o Evangelho. Um itinerário a ser percorrido: o coração voltado para o Senhor, amar e nutrir seu irmãos como as mães da terra nutrem e amam seus filhos, uma vida na Igreja, viver as bem-aventuranças, gente em estado de missão, menores e missionários.

Oração que não é apenas fazer o prescrito, mas atentar para a presença do Amado, preocupação de se chegar aos píncaros da união mística . Não apenas a recitação, por vezes mecânica de laudes, sexta e vésperas.

Uma pobreza que não se limite apenas a uma questão de economia material, mas pessoas que foram se tornando livres de si mesmas, de seus caprichos, de suas teimosias, de seu eu sempre chorão e dengoso.

Uma castidade consagrada que não consista apenas em não cometer pecado, mas ter um coração ardoroso para os esponsais com o Senhor e um coração puro capaz de tecer laços de profundo bem querer com os de perto e os de longe.

Uma obediência não ritualista, mas uma tentativa sempre retomada de  dizer: “Senhor, afinal de contas, o que tu queres”, ou “Eis-me aqui!”