Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Setembro 2011

I. LEITURA ESPIRITUAL

Como era bonito aquele ipê roxo!

 

Uma Igreja sempre nova e viçosa

 

1. Um dia desses viajava de ônibus da Rodoviária de Barra Funda rumo a uma cidade do interior de São Paulo, numa amena e bela tarde de sexta-feira de céu claro e temperatura tépida. Enquanto não era levado a dormir com o doce embalo do ônibus, ia lendo alguma coisa sobre o tema do envelhecimento. O veículo entrou numa cidade antes de chegar ao destino final. Vi uma paisagem encantadora: um imenso ipê roxo cheio de flores ao lado de uma capelinha fechada. O ônibus ia devagar por sobre os quebra-molas. A paisagem ia ficando para trás. Virei-me na direção do deslumbrante espetáculo enquanto pude. O vento soprava e as pétalas caíam como uma chuva colorida, cobrindo o chão de tapete lilás. Algumas pétalas se fixavam nas telhas da capela. E comecei a pensar em tantas coisas. Sim, lia um artigo sobre o envelhecimento da Igreja. Na cena do ipê roxo havia uma força da vida, a exuberância das pétalas, a gratuidade da árvore em fazer uma festa com suas flores, a generosidade. Aquela cena me apontava para a vida. Apesar de todas as turbulências vividas pelos cristãos em suas comunidades através do mundo há uma chuva de vida sobre eles, vida generosa.

2. Pensei nas coisas de nossa Igreja. A gente tem a impressão, em muitos lugares do mundo e à nossa volta, que a Igreja envelheceu. Parece uma senhora de cabelos brancos e não aquela mulher vestida de frescor dos versos de Gertrud von Le Fort. Pensava eu nas fraternidades franciscanas seculares, muitas delas envelhecidas, sem vocações novas, com pessoas boas, profundamente boas, repetindo ritos e sem coragem e a força de criar o novo. Pensei nessas paróquias que vão se esvaziando. Os fiéis vão morar em outros lugares e ficam apenas os vestígios de um tempo áureo, com tantos santos nos altares, mármore no chão, tantos altares. Pensei na dificuldade que temos em organizar de verdade nossas pastorais, mormente a da formação permanente dos fiéis e da juventude. Penso nos prédios de tantas comunidades de vida religiosa que estão vazios. Precisam ser vendidos e serem usados para outras finalidades. Talvez nunca como hoje fizemos tão intensamente a experiência de fragilidade. Como dizer a fé às novas gerações? Como viver o Evangelho em nossas famílias? Como? Como? Nada de pessimismo. Mas de constatação. Ora, vivemos no coração da Igreja e a Igreja que conhecemos é jovem, eternamente jovem. Seu rosto é banhado pela eterna juventude que vem do futuro, pela beleza do esposo que ama a esposa, qualquer coisa parecida com as pétalas de vida lilás do ipê sobre a capelinha que, naquele contexto, para mim apontava para a grande Igreja.

3. Lembrei-me de uma palavra do Ministro Geral: “Nesse momento histórico em que vivemos, como muitos de nossos antepassados, que, apaixonados por Jesus Cristo e seu Reino, agiram de tal forma que a vida se incendiou ao invés de se apagar, assim também nós, longe de desperdiçar energias para conservar e manter uma vida consagrada e franciscana à qual falta energia e incisividade e, portanto, encanto e sedução, somos chamados a permanecer fiéis e atuais, de modo que o carisma de Francisco continue a ser significativo para o homem de hoje. Agarrar-nos ao passado, chorá-lo nostalgicamente, levar-nos-ia a uma inevitável decadência. Não se trata de sermos aventureiros, mas também não nostálgicos. Não há alternativa para a vida consagrada e franciscana senão abrir-nos ao Espírito. Só a força do Espírito evitará que existam entre nós vidas pela metade, sufocadas pela rotina e pela inércia, sujeitas ao funcionamento das estruturas. Só assim poderemos abrir-nos com confiança ao futuro” (Com lucidez e audácia, n. 118).

4. Nós, franciscanos, temos sempre em mente esse Francisco, pedreiro, reconstrutor das igrejinhas de Assis, pedindo uma pedra e um tijolo para reconstruir as capelinhas em ruínas. Esse pedreiro de templos de pedra que, com sua vida, com a força do evangelho, com a coragem do coração trabalhou para que a grande Igreja tivesse um rosto belo, belo com águas puras que descem das montanhas. Esse Francisco que, guiado pela mão de quem disse que estaria com a Igreja até a consumação dos séculos, se tornou o grande embelezador do semblante da Esposa. Sentimos, como franciscanos, a necessidade de dar a nossa colaboração para o embelezamento da Igreja. E fazemo-lo com nossas vísceras, nossa vontade de sermos simples, sem pose, sem sentimentos de superioridade, na qualidade de menores… Como tudo isso é difícil de concretizar. Sentimos que carregamos em nossos corpos e corações sementes do novo. Na medida em que nossas paróquias e nossas casas tiverem o perfume da simplicidade do Evangelho, na medida em que não agirmos na pastoral com a superficialidade das coisas fugazes, na medida em que as pessoas conseguirem enxergar em nós pedreiros de um mundo novo, seremos renovados e uma chuva de pétalas de ipê roxo atapetará nossas casas, nossas atividades… A força e a beleza da vida na rotina e na inércia de que fala o Ministro Geral.

5. A Igreja é santa e pecadora, está sempre em estado de reconstrução e de renovação porque seus membros estão reincindindo em falhas. Robert Scholtus, antigo formador dos padres do Seminário de São Sulício, junto do Institut Catholique de Paris, na revista Christus (n. 196) escreveu um artigo sobre o envelhecimento da Igreja, ao deu o título extremamente sugestivo de “Cette vieille Eglise d’une insolente jeunesse” (Esta Igreja de uma insolente juventude). Com toda evidência, a Igreja, na prática de sua vida, na evangelização, nas atividades de todos os dias necessita se inculturar. Tudo fará para que ela possa ser fiel ao Mestre. Proliferam os planos de ação das diferentes Igrejas pelo mundo afora. Não há dúvida que há traços de velhice em muitas das concretizações da vida da Igreja e, ao mesmo tempo, carregamos interrogações. Scholtus assim se exprime: “Talvez nessa época da história da Igreja, contra toda evidência sociológica, a Igreja nunca foi tão jovem. Ela sente que precisa recomeçar a viver num mundo que aprendeu a dispensá-la, ela se dá conta novamente de que ela é começo, ela se recorda que nasceu da ressurreição de Jesus, que ela é o acontecimento da juventude, de que ela é a juventude de Deus, segundo a bela expressão de Frédéric Boyer. Paradoxalmente é à Igreja, esta velha senhora ultrapassada, tão denigrida por sua posturas ultrapassadas e sua rigidez, a quem devemos a salvaguarda da irredutível novidade deste acontecimento. Há somente ela para salvar Jesus, não somente do esquecimento, mas sobretudo do mito em que esse Jesus se torna quando se apossam dele as espiritualidades jovens e selvagens da Nova Era. Guardiã do mistério desse Deus encarnado, ela impede que o evangelho seja definitivamente reciclado na velha lavadora sincretista”.

6. Porque a Igreja é contemporânea do Ressuscitado transparece por detrás de sua maquilagem com fissuras e por detrás de suas roupas fora da moda o ar da eterna juventude. Para aqueles que conseguem enxergar para além das aparências do mundo e do vaivém da história em seu rosto resplandece sua beleza virginal e primordial, reflexo do amor de Deus mais jovem do que toda morte. “Há os que acreditam que ela esteja na menopausa, completamente estéril. Mas, tendo sido obrigada ao despojamento está descobrindo aquilo que secretamente ela sempre foi no mais íntimo dela mesma: uma adolescente que fica enrubescida e meio desajeitada, admirada de tanta graça e responsabilidade, de uma insolente juventude”.

7. Sim, é verdade, nossas paróquias envelheceram, nossos grupos de jovens nem sempre estão conscientes de que devem transformar o mundo e permanecem numa inércia devocional, nossa pastoral dos casados anda marcada pelo conservadorismo e repetição de mesmices, nossa vida religiosa tem suas incertezas… Mas, ao mesmo tempo há tanto frescor mesmo no rosto dos velhos. Essa senhora continua cuidando da capela de Nossa Senhora das Vitórias, esses homens sem títulos e sem adereços lutam para que no bairro reine a concórdia. Essas catequistas estão inventando o novo. Há um frescor do Evangelho em rostos meio enrugados de tal forma que as rugas se transformam em troféus de vitória. A obra não é humana. Há uma força que vem da presença do Ressuscitado dando juventude à Igreja. Como esse ipê já de certa idade, carcomido em seu tronco, mas generosamente cobrindo de vida e de beleza a paisagem.

8. Damos novamente a palavra a Robert Scholtus, embora seja uma transcrião um tanto longa: “As comunidades cristãs são constituídas de crianças e de pessoas idosas, de jovens e de adultos, de antigos militantes e neo-convertidos, de jovens que receberam a confirmação e de catecúmenos amadurecidos, de adolescentes céticos e pais com maiores convicções (talvez o contrário). Eles precisam uns dos outros, para juntos testemunharem a novidade do velho Evangelho que a Igreja lhes legou. Uma Igreja jovem não se confunde com as auto-celebrações da juventude. Uma Igreja jovem tem necessidade daqueles que, precisamente por não o serem mais, pelo seu dinamismo e seus engajamentos, dão o testemunho de uma juventude que não passa, a juventude do Cristo ressuscitado . É bem provável que com o recuo dos anos e da experiência, os avançados em anos possuam mais do que os jovens “o que faz a força e o encanto dos jovens: a faculdade de se alegrar daquilo que começa, de entregar sem reticências e repartir para novas conquistas”. Esta citação foi extraída da Mensagem final que os Padres Conciliares dirigiram aos jovens em 1965, convidando-os a que afirmassem sua fé na vida e naquilo que dá sentido à vida: a certeza da existência de um Deus justo e bom, diante do ateísmo, esse fenômeno de cansaço e velhice. Todo aquele que crê, qualquer que seja sua idade, é sempre jovem. Será que já nos demos conta que as grandes testemunhas da fé que fazem vibrar o coração dos jovens não são “ídolos” de sua idade, mas, as mais das vezes, pessoas idosas buriladas pelas provações com inoxidável esperança?”

9. Não podemos desanimar. A Ordem não é nossa, é do Senhor. A Igreja não é dos cristãos, é do Ressuscitado… Ressuscitado que antes de ganhar o rosto de glória, passou pelo aniquilamento. Na ruas cansadas de certos bairros de São Paulo, nos centros envelhecidos com seus conventos e igrejas quase transformados em museus, há “patas de vacas” enfeitando as coisas feias, há ipês roxos e amarelos abrindo nossos olhos: a vida está em ação.

II. PÁGINAS FRANCISCANAS

O humilde crucificado

 

Franciscanos que somos gostamos dos dias de setembro. No dia 17 celebramos a impressão das chagas na carne e no coração de São Francisco. Não vamos entrar nos meandros das discussões se o fato se deu assim, ou de outro jeito ou, segundo alguns, de jeito nenhum. Transcrevemos aqui algumas linhas do livro A Páscoa de São Francisco, dos frades Ignace-Etienne Motte e Gérald Hégo, que irmã morte já nos levou há muito tempo. Temos diante dos olhos a tradução publicada pelos franciscanos portugueses de Braga, p. 97ss (O original francês foi publicado pelas Editions Franciscaines de Paris. O texto transcrito vem depois de considerações feitas a respeito de visões de Isaías e Ezequiel. Francisco está diante da visão do serafim alado.

Nasce na consciência de Francisco, uma espécie de escândalo do momento em que contempla o “serafim com as asas resplandecentes como o fogo” semelhante a “um homem crucificado, pés e mãos estendidos e presos numa cruz” (S.Boaventura 13,1).

Como pode a impassibilidade do Serafim ser atingida pela Paixão? Como pode uma tal glória ser compatível com um tal sofrimento? Interroga-se o santo. E São Boaventura declara:

“Era grande a sua admiração diante de tal visão, pois não ignorava que os sofrimentos da Paixão eram incompatíveis com a imortalidade dos espíritos celestes”.

Sim, a imortalidade do Deus Santo mostra-se atingida pela infâmia humana do mais injusto sofrimento. Mistério incompreensível, mistério sem significado, se não pusermos o amor no coração de sua explicação.

Mas eis que a visão se esclarece: a Glória crucificada, a Transcendência imolada, a santidade rebaixada à mais indigna condição, revela o sentido do Mistério Cristão, e mostra a infinita progressão que conduziu a Glória da Antiga Aliança nunca atingida, intacta, até esta Glória da Nova Aliança descoberta em Cristo, ferida, tocada, humilhada, mas ressaltando em novo esplendor, pelo Mistério Pascal. Eis que o Amor, oculto, até então numa santidade inatingível, eis o que o Amor fez. Sobre a colina do Calvário produziu-se a mais completa teofania, e a Glória sempre igualmente grande e resplandecente, nunca se tinha mostrado numa tal obscuridade, numa nuvem tal. No acontecimento da morte de seu Filho na Cruz, Deus revela que a grandeza de sua Glória não podia exprimir-se melhor do que na prova de seu Amor, que consistia justamente em dar-se até à loucura àqueles que nenhum direito tinham a esse dom. Doravante, na Nova Aliança, aqueles que mais serão objeto desse dom, os eleitos, os místicos nunca mais poderão descer das montanhas da teofania, marcados unicamente com o sinal da Glória: será preciso que o Sinal da Glória comporte simultaneamente a marca da Cruz, que se transforma no sinal da transcendência do amor. Porque Deus revelou em Jesus Cristo que o seu poder deslumbrante, o Seu poder de vida, é essencialmente um poder de amor, de ternura, de misericórdia e que este amor teve que passar pela morte para ficar mais forte, mas vivo do que nunca, para além daquela morte.

A visão com que Francisco é mimoseado sobre o Alverne é, pois, tanto a da Cruz glorificada como a de uma Glória crucificada. O sublime serafim resplandecente de fogo, tanto representa a Ressuscitado, o Transfigurado de amor, como o Santo de Israel tocando as montanhas com seu esplendor.

A Glória que surge diante de Francisco sob a aparência do serafim é bem a glória do Senhor para além da Sua morte Gloriosa, é a Glória Pascal, aquela que, pelo amor, triunfou sobre a morte, aquela que, no silêncio do Calvário, gritava sem palavras: “Ó morte, eu serei a tua Morte!”.

E se quisermos saber por que motivo, flamejante sob a forma dum serafim, a visão atingiu São Francisco e não qualquer outro cristão, basta-nos lançar mais uma vez o olhar sobre o Alverne e contemplar aquele homem predisposto, abrasado também ele, roído, devorado pelo amor. Era preciso que, estupefato perante a Santidade, ele fosse arrebatado por ela, pois que ela se revela Amor. Era preciso que o amor que abrasa fosse absorvido nela, pois que ela se revela seu coração, desposasse o Amor que se lhe deparava, como ele próprio exprimia na sua magnífica oração:

“Peço-Te Senhor, que a força ardente e doce do teu amor absorva a minha alma e a arranque de tudo quanto está debaixo do céu, para que eu morra por teu amor, pois dignaste morrer por amor do meu amor!”

Francisco vive no seu corpo o efeito deste momento intenso de comunhão:

“Ele conheceu”, diz São Boaventura, “por divina revelação, que esta visão lhe havia sido enviada providencialmente, para que compreendesse que não era tanto o martírio corporal, como o amor abrasando a sua alma que o devia transformar à semelhança do Cristo crucificado. Ao desaparecer, a visão deixou no coração de Francisco um ardor maravilhoso, mas não sem lhe haver imprimido no corpo marcas igualmente maravilhosas: nesse momento, apareceram nas suas mãos e nos seus pés, os sinais dos cravos, tais como ele os acabava de os ver naquele homem crucificado”.

“E aquele que desce cambaleante do Alverne”, conclui Paul Claudel, “e que mostra a Clara, em segredo, aquela chaga e aquela cicatriz, é Jesus Cristo com Francisco, uma só coisa viva e sofredora e redentora”.

O nosso poeta contemporâneo vê ainda o místico Francisco, nesse momento, como “uma espécie de esposo gemendo e rindo, vacilando e ferido por essa Glória da qual é o consorte inexplicável”.

A Glória de que Moisés resplandecia ao descer no Sinai era imperfeita. Graças à obscura teofania do Calvário, ela viria a aumentar, com o acréscimo que lhe seria dado pelo triunfo pascal de Cristo, marcado com o cunho do sofrimento. A epifania do Alverne situa-se perfeitamente na linha das teofanias do Antigo Testamento, chegando mesmo a ultrapassá-las. Ultrapassa-as, primeiramente, mostrando que a gloria da qual Francisco se torna “consorte inexplicável”, mantendo embora o mesmo fulgor, é engrandecida pelo triunfo pascal do Ressuscitado. Ultrapassa-as também porque acrescida da mais intensa comunicação; visionário e visão, entre aquele que ama e o amado, numa presença mútua de amor, até então mais igualada, chega ao ponto de identificar misteriosamente, interior e exteriormente, o Ser Santo que se revela e o ser que recebe a revelação . E este amor transformante reveste o aspecto da dor, do sacrifício e da Cruz, porque, ele é todo orientado para a redenção do mundo ferido: pois é ele uma transcendência que se dá aos seres mais pecadores, uma Glória que só deseja comunicar-se.

O Alverne não é somente a simetria do Sinai: é, para além do Tabor e do Calvário que lhe permitem o aumento de glória de amor, a sua sublime perfeição mística. O acontecimento místico do Alverne é talvez a mais alta manifestação da transcendência de amor da Nova Aliança no Sangue, à criatura mais apta de retribuir este amor, aniquilando-se totalmente perante a Glória e a Santidade.

Nesta experiência mística de São Francisco, uma das mais intensas da história da Igreja, é dado ao observador crente verificar esta dupla síntese que o cristianismo realiza: duma parte o mistério onde a admiração e o temor sagrados coexistem com a união mais íntima, que chega à identificação como Todo-Outro, o que levava Santo Agostinho dizer na sua oração: “Inhorresco e inardesco”, “Estou cheio de medo e todo abrasado de amor”; é Pedro no Tabor, caído de medo por terra e desejando ao mesmo tempo erguer três tendas para poder gozar daquele momento para sempre; e é Francisco no Alverne “fortemente atemorizado” e “ferido de amor”, segundo os próprios termos de São Boaventura; e, por outra parte, um mistério onde a Cruz, o sofrimento, a Paixão coexistem com a alegria e a glória porque a morte, que é então um ato supremo de amor, um sacrifício voluntário, apesar as aparências humanas de fracasso e de abjeção, é, na fé, um autêntico triunfo, uma sobrevida, no mesmo sentido em que dizemos super-homem, e que engrandece infinitamente a nossa vida glorificando-a; é, no Calvário, o Filho de Deus que, ao entregar o seu Corpo e o seu Sangue, está em vias de viver aquele momento vitorioso do qual tinha falado na véspera, dizendo: “Pai, é chegada a hora: Glorificai o vosso Filho”; e, é, no Alverne, Francisco abrasado do mesmo amor, sentindo os mesmos sofrimentos que o Crucificado e que todavia, mesmo glorificado com a mesma gloria que reveste o Crucificado com aspecto de fogo, no dia da festa da Exaltação da Santa Cruz.

Nesta identificação que se produziu no Alverne entre Cristo e sua imagem, entre aquele que ama e o amado, é a síntese do Tabor e do Calvário que se efetua: verificamos que o temor está no coração do amor, tal como a Glória está no coração da Cruz.

III. ORAÇÕES

Francisco da minha vida

 

Mês após mês, queremos oferecer aos nossos estimados
leitores eletrônicos preces, orações para o dia-a-dia da vida.

 

1. FRANCISCO DA MINHA VIDA

Francisco,
pequeno e grande Francisco,
tu continuas vivo entre nós.
Tu és o meu irmão, o meu irmão mais velho.
meu irmão modelo,
meu irmão da roupa marrom,
das chagas douradas na mão,
apaixonado pelo Senhor Jesus.

Gosto de te contemplar
erguendo os braços ébrios de amor,
cantando os louvores do Altíssimo
e Grande Senhor!
Acompanho-te pelas ruelas de Assis
com o irmão sol que te aquece o rosto,
pegando nas mãos a irmãzinha água
tão casta e tão transparente, pisando na terra mãe
que produz variedade de flores e frutos.
Gosto de ver teu olhar acompanhar os irmãos,
os irmãos leprosos, os irmãos que te seguem,
os irmãos que são filhos do Altíssimo.
Espreito-te ao jogares tuas roupas
nas mãos de teu pai e proclamares livremente
que teu pai está nos céus.
Aplaudo-te quando dizes
que teus seguidores são menores
e nunca hão de se alegrar a não ser
com o último de todos os lugares.
Vejo-te percorrendo as ruas e ruelas
da meiga Assis dizendo a todos
que o amor não é amado.
Aprecio a tua coragem de partir sem segurança,
sem sacola e sem dinheiro para dizer a todos os homens
que chegou o Reino novo
do Filho da Virgem Maria.
Recolho-me num cantinho
E vejo que saís da contemplação
com as chagas de Cristo Jesus
nas mãos, nos pés e no coração.
Morro e renasço contigo
quando cantas o salmo que fala que é preciso
que Deus nos tire da prisão.
Francisco de ontem e de sempre,
Francisco da roupa marrom,
Francisco da minha vida.

2. QUE NOSSOS LARES SEJAM SÓLIDOS

Senhor Deus, grande e belo,
altíssimo e bom Senhor, fonte de toda a vida,
aqui estamos diante de teu olhar perscrutador, meigo e misericordioso.
Neste momento de nossas vidas
queremos colocar diante de teus olhos
e no fundo de teu coração nossas famílias
e as famílias do mundo inteiro.

Pousa teu olhar sobre nossas mesas de refeições:
que as famílias tenham o pão de todos os dias
e abundância as coisas necessárias.
Livra-as do consumismo empobrecedor,
do espírito de competição sem medida
e do culto das aparências e do poder.
E que seus membros se alimentem de atenções mútuas
e de carinhos que não se adiam.

Dá aos esposos a graça da fidelidade e da ajuda mútua:
que se respeitem e se estimem
que cresçam juntos humana e espiritualmente
sempre diante de teu olhar!
Olha pelos filhos pequenos e grandes,
pelos que são dóceis de coração
e pelos que se mostram revoltados.
Que sejam iluminados na escolha de seus amores,
na opção profissional e em todos os momentos de sua vida.

Dá, Senhor, a nossos filhos o gosto pelo Evangelho,
o desejo da solidariedade,
a preocupação de se dobrarem sobre os mais abandonados
e de serem companheiros simples e bons
de todos os que passarem por seu caminhos.
Que sejam pessoas úteis e que enfeitem
a terra com a sua simples presença.
Olha, Senhor, os meninos de rua,
as crianças sem pai e sem mãe, as esposas abandonadas, as mães solteiras e os maridos machucados.

Acompanha o sono das crianças, o descanso dos idosos, alivia o sofrimento dos doentes.

Senhor, nos te damos graças por nossas famílias e pedimos a coragem de batalhar pela construção de lares sólidos.

3.ORAÇÃO DA MANHÃ

Dá-me, Senhor,
acolher na paz o dia que vai chegando.
Ajuda-me a me apoiar em tua vontade;
em cada hora deste dia revela-me a tua vontade.

Abençoa minhas ações e dos que me cercam;
Ensina-me a aceitar serenamente todos os momentos imprevisíveis da jornada
e dá-me a convicção profunda que nada acontece sem teu consentimento

Orienta meus pensamentos e meus sentimentos em todas as palavras e ações
Dá-me agir com firmeza e sabedoria sem provocar amargura e constrangimento

Dá-me a força de suportar todos os cansaços do dia de hoje; orienta minha vontade, ensina-me a rezar e reza em mim. Amém.

(Antoine Bloom).

4.MARIA DE TODAS AS HORAS

Maria, Mãe de Jesus, Mãe de todas as mães,
Mãe da humanidade que atravessa
o vale das lágrimas e escala os caminhos íngremes dos montes mostrados por teu Filho Jesus; nós queremos estar contigo.
Tu foste querida e sonhada pelos planos de Deus
para seres a mãe da nossa esperança, Cristo Jesus.
Antes que as ondas dos mares começassem a bramir,
antes que as fontes jorrassem,
antes que os céus tivessem seu azul,
antes que tudo existisse, Maria,
tu já estavas nos planos eternos e sábios do Altíssimo
que depois cobriu teu seio com sua santa e desejada sombra.
Tu contemplavas as nuvens dos céus e querias que elas chovessem o Justo, porque tu eras a mulher da esperança.
Teu corpo foi preservado da divisão entre o bem e o mal que dilacera nosso interior.
Tu tens um nome belo; tu te chamas Maria Imaculada.
Tu tens o gosto do intacto, tu tens no teu coração o relicário da paz, tu não podias conhecer corrupção e por isso tu és Maria da Glória!
Tu és simplesmente Mãe!
Mãe de Jesus e minha mãe, abençoa todos os que querem ter no semblante os traços de teu Filho Jesus!

IV. E A FAMÍLIA, COMO VAI

Esses nossos adolescentes

 

Um olhar de simpatia sobre eles

1. Tornou-se extremamente complicada a arte de educar. É tarefa que reclama coragem, tato, perseverança e aceitação de inevitáveis recusas. Nesse campo, os pais experimentam uma imensa insegurança. As escolas, em boa parte, renunciaram a esta tarefa. Tornaram-se apenas locais de “instrução” e nem sempre boa qualidade. De modo particular ficou complexa a convivência dos pais com os filhos adolescentes e jovens. Não é aqui o lugar de elencar todos os problemas, dificuldades e desafios.

“A Árvore da Vida”, foi escrito e dirigido por Terrence Malick, que retrata quão magnífica e terrível a vida pode ser, fazendo isso em diversos níveis. O mais presente deles é a luta interna de seu personagem central, Jack (Sean Penn), amargurado filho de um casal com ideologias completamente diferentes. A trágica morte do irmão mais jovem do protagonista, aos 19 anos, marcou aquela família para sempre, com este trauma ainda se fazendo presente muitos anos depois.

2. Gostaria de pedir que Lya Luft nos ajudasse a refletir sobre o tema da educação dos filhos com algumas observações de seu “A riqueza do mundo” (Ed. Record). “Educar deveria ser ensinar a pensar, ajudar a observar e admirar o mundo e a reconhecer, buscar e admirar a própria liberdade. Sem querer parecer ser cética, lembro o que dizia um experiente professor: ‘Se numa turma de quarenta alunos consigo fazer uns dois aprenderem a pensar, me dou por satisfeito’. Não sei se nossa educação leva alguém a pensar. A observar a natureza, o cosmos, os humanos, as artes, a política, as ciências, as engenharias – e a maravilhar-se de tudo isso” ( p, 81-82).

3. Gostaria simplesmente de lançar um olhar compreensivo e amoroso sobre adolescentes e jovens que nos cercam. Fiquei impressionado com algumas cenas do filme “A árvore da vida” em que um pai presunçoso, onipotente, extremamente débil nas aparências de onipotência, esbofeteava os filhos e os tratava quase como animais quando algum deles ousasse em suas falas não dizer “senhor”. Os filhos desse homem foram sendo “martirizados” pela figura desse pai literalmente desalmado.

4. Todos nos lembramos de nosso tempo de adolescência (12-14 anos): sensação de não caber dentro da pele, sensação de não ser nem criança, nem adulto, de não morar em lugar nenhum, a não ser nas fantasias que íamos criando. Era como que nos retirássemos de nós mesmos sem saber para onde ir. E no meio disso, por vezes, as surra do pai, as reprimendas do diretor do ginásio. Uma vontade doida de fugir, de ir pelo mundo afora, de fazer o que desse na telha fazer, de comer na hora que se tem vontade… E havia essas espinhas no rosto, essa vermelhidão da face quando as pessoas nos olhavam: um professor, uma menina na rua, uma visita que chegava. Tínhamos vontade sair da sala. Quanto mal-estar! Era o tempo da descoberta louca da sexualidade, dessa louca força, incontrolável força, maravilhosa força… Entre nós, colegas de ginásio, conversávamos sobre o tema, com nomes chulos, tudo estranhamente sujos. Os pais de antigamente não tinham habilidade para falar dessas coisas. Como era complicada essa nossa vida de adolescentes…

5. Parece que as coisas não mudaram. Que os pais não aprenderam a conversar com seus filhos sobre as coisas essenciais como a sexualidade. Vejamos , mais uma vez, o que diz Lya Luft: “Pré-adolescentes muitas vezes iniciam uma pseudovida sexual sem ideia do que lhes acontece. Os pais, supostamente modernos e moderninhos, ou não sabem o que dizer ou dizem demais cedo demais – ou pela sua própria atitude provocam nos filhos uma sexualidade precoce e atônita. Talvez não precisem comer lixo, correr das balas dos bandidos, suportar brutalidades e incestos, tanto quanto os mais desvalidos” (p. 144).

6. Adolescentes de ontem e de hoje sempre perdidos. Nos tempos antigos precisávamos nos identificar com os artistas do cinema americano, ou com os cantores brasileiros, franceses, italianos ou americanos. Hoje, esses adolescentes precisam se identificar com a galera, sair com a galera… seguir os gostos da galera, esses cabelos em forma de crista de galo, com muito gel e brilhantina… esses corpos troncudos, tatuados. Adolescentes e jovens tomam remédio para que seus bíceps quase não caibam nas mangas de estreitas camisetas que lhes desenham as curvas de todos os músculos do tórax. As meninas querem ser magras, magérrimas, quanto mais magras melhor…

7. “Adolescentes podem ser difíceis, pois estão numa fase difícil: exercitando as asas não treinadas, expostos a uma sociedade superficial, que não se interessa muitos por eles. Mas é muito estimulante observar essa pessoa – que é um adolescente, assim como é uma criança (atenção, as crianças são pessoas) – ensaiando seus passos num terreno novo, aparentemente sem fronteiras, enganoso, quando não cruel, no qual as individualidades, capacidades e limites pouco importam” (p. 137).

8. Por detrás de tudo isso, um desejo doido de jogar-se nos braços do pai e da mãe e cobri-los de beijos e de todos os carinhos da face da terra. Exatamente como no filme de Terrence Malick: o menino mais velho no meio de todas as rejeições por parte do pai, se volta para ele com desejo de buscar refúgio de encontro ao seu peito. Não há que duvidar: pai e mãe, apesar de todos os pesares haverão de se fazer presentes na vida de seus queridos filhos. Faço questão do “queridos”. O quanto possível deverão tomar esses meninos e meninas pela mão, abraçá-los , fazer de sorte que eles sintam que ocupam um imenso lugar no coração do pai e da mãe. Não creio que possa haver alguma coisa mais reconfortante para pais e filhos do que esse abraço reconfortante. Quantos traumas seriam evitados!!!

9. “Querer bem a um adolescente é uma das formas mais desafiantes de amor. E nada compensa tanto isso quanto um olhar afetuoso, um abraço desajeitado, e qualquer conquista desses seres humanos tão complexos quanto encantadores, exasperantes às vezes, outras enternecedores, merecedores da maior atenção” (p. 141). Sim, e isso vale a pena de verdade.

V. PASTORAL

Acolhida

 

1. A acolhida é das dimensões mais importantes da vida. Em termos de pastoral se fala muito no assunto em nossos dias. Vemos pessoas à porta das igrejas, com algum sinal distintivo, distribuindo folhetos da liturgia da missa e folhas de canto e dando boas vindas aos que chegam. Ouvimos falar de “pastoral da acolhida”. Queremos que os que chegam para a missa sintam que são bem recebidos. Verdade que alguns dos que chegam evitam a porta em que estão os agentes de pastoral. Não querem se dar a conhecer. Muitos católicos que praticam não querem envolvimento com a paróquia e evitam todo contato mais personalizado. Há os que assim agem porque dizem terem tido muitas decepções com os “donos” das pastorais das paróquias.

2. Não podemos limitar a “pastoral da acolhida” a essa recepção à porta da igreja nos dias de domingo. O bom acolhimento precisa ser uma nota que estará presente em todos os setores de atividades de uma comunidade cristã. Trata-se de uma mentalidade a ser instaurada na comunidade eclesial. Não podemos deixar de reagir contra uma “filosofia” da indiferença, do salves-se-quem puder, ou então de uma tomada de distância daquilo que nos parece o “diferente”. Trata-se de acolher o mundo dos outros e de todos os outros. Poder-se-á dizer que essa preocupação pelo acolhimento tem tudo a ver com uma mentalidade de hospitalidade.

3. Há toda sorte de acolhida e, forçosamente, de seu oposto. Há a acolhida de um filho que chega. Este, antes de seu nascimento, já ocupa um lugar na vida do pai e da mãe. Não se prepara somente seu berço e todos os balangandãs do quarto, mas sobretudo os espaços do coração: fidelidade, dedicação, compromisso. Essa acolhida do filho vai se manifestar numa decisão de não tirar os olhos do filho. Há a acolhida do marido e da mulher na sua diferença. Há o acolhimento da família dele e da família dela.

4. Há a acolhida dos fiéis na secretaria de uma paróquia. O funcionário da secretaria precisa estar a par de horários das atividades, dos dias e de como se faz a preparação para o batismo, das taxas que são fixadas para determinados serviços paroquiais. Tudo isso é importante. Mais importante do que tudo é saber acolher o mistério de cada pessoa, os dramas que trazem, as esperanças que nutrem ou que vieram a perder. Junto com essa atenção respeitosa no tom da voz, e no olhar, há no ar a certeza de que ninguém olhou para ninguém burocraticamente. Nas coisas da Igreja não existe “burocracia”. Muitas de nossas secretarias paroquiais viraram apenas locais de serviços burocráticos sem jeito de serem abrigos para os que caem na estrada, nem sala dos que sonham atingir os píncaros da santidade.

5. Nesse contexto, vale lembrar a figura do sacerdote e do religioso que animam uma comunidade ou algum movimento espiritual. Meu Deus, quanta ocasião de acolhida, mesmo sendo segunda-feira… Por vezes temos a impressão que muitos sacerdotes e religiosos estão sempre em reunião e não podem, naquele momento, atender aos que chegam, escutar um fiapo de voz de alguém que perdeu um filho, que está para separar ou que perdeu definitivamente a vontade de viver.

6. A dimensão do acolhimento, como já sugerimos, deverá estar presente em todos os espaços de pastoral. Não existe catequese de crianças, jovens e adultos sem essa atenção às histórias que são vividas pelas pessoas que vão chegando: uma empregada doméstica, um balconista, uma pessoa que mora sozinha. As crianças e os jovens, precisamente na acolhida inicial dos encontros, sentir-se-ão queridos. Quantas crianças e jovens que, em suas casas, carecem do olhar carinhoso do pai e da mãe.

7. Há todo um cuidado na acolhida de pessoas que vivem, no seio da Igreja, uma situação peculiar. Não se trata de faltar com a verdade, mas de agir com delicadeza de amor. O amor sempre se faz na verdade. Pensamos aqui, de modo particular, naqueles que devido a diferentes razões se separaram de um cônjuge com o qual haviam contraído o sacramento do matrimônio. Os recasados continuam membros da Igreja embora devido à sua situação não possam receber o sacramento da Eucaristia. Ele serão acolhidos como membros da Igreja, os filhos de uma segunda união poderão receber o sacramento do batismo e, posteriormente, da eucaristia. Tais católicos não serão discriminados.

8. Pensamos hoje num empenho sério de muitos cristãos bem como de pessoas de boa vontade de outros credos que buscam se acolherem mutuamente. Não é mais tempo de ataques e de discriminações. Há todo um empenho sério no encontro das religiões e na busca comum da verdade. Não queremos com aquilo que nos é particular impedir a união de todos os homens e mulheres de boa vontade. Isso não quer dizer que venhamos a fazer um ecumenismo fácil e sem profundidade.

9. Nos tempos atuais vemos crescer um respeito por pessoas que fizeram a opção de viverem com pessoas do mesmo sexo um tipo de união estável. Todo um sereno empenho de acolhimento de tantos e tantas que fazem esta opção será expressão de verdadeiro bem-querer.

10. As poucas considerações que acabamos de fazer mostram como é amplo o tema da acolhida e do acolhimento em nossa vida familiar e eclesial. Organizar uma Pastoral da Acolhida é bem mais do que escalar algumas pessoas para entregar um folheto de missa, o boletim paroquial ou envelope da coleta da campanha da fraternidade.