Outubro 2021
- I. Uma paixão irreprimível
- II. Quando Deus invade a vida inteira
- III. Aquela capela que nunca saiu da memória
- IV. Quando foi terminado o tempo de viver
- Nesta edição
I. Uma paixão irreprimível
Um dia, aos berros, entramos no mundo. Quiseram que existíssemos: nossos pais e a Fonte misteriosa da vida. Aos poucos fomos sendo apresentados a uns e aos outros, ao mundo e à história. Compreendemos que era preciso viver. Olhamos a maneira como as pessoas iam vivendo. Copiamos a uns e outros. Nem sempre nos ensinaram a refletir sobre a arte de viver. Fato é que somos mistérios ambulantes. Viver, conviver, prestar carinhosa atenção aos outros, criar espaços de solidariedade e de fraternidade, morrer interiormente quando necessário. Morrer para viver. O que conta é a vida. Viver densa e profundamente. Não encher o espaço de nossa biografia com banalidades e nem iluminá-lo com fogos de artificio. Não podemos enganar-nos a nós mesmos nem aos outros. A vida é breve e a pandemia andou dizendo que o fim da estrada pode ser antes do que se havia suposto. Queremos viver. Francisco de Assis é um mestre da vida de todos os dias e da aventura do seguimento de Jesus nesse espaço de viver.
A essência do cristianismo não é uma doutrina teológica, nem uma filosofia, nem uma moral, nem um dinamismo revolucionário. É uma pessoa, a pessoa de Jesus. O que decisivo para que alguém seja cristão não são os conhecimentos teológicos nem seu comportamento moral, mas sua relação com Jesus. Somente na medida em que a pessoa vai se enamorando de Cristo é que se vai tornando cristã.
O apóstolo Paulo sempre, em seus escritos, mostra um encantamento por Cristo: só quer conhecer o Cristo, e o Cristo crucificado; diz não saber se é melhor morrer para estar com Cristo ou andar falando de seu amor pelo mundo afora; tem como lixo o que não é Cristo Jesus. Com Francisco de Assis passa-se algo parecido . É a pessoa de Cristo que surge diante de seu olhar infantil e extasiado. A pessoa de Cristo em primeiro plano grande, linda, luminosa, encantadora, avassaladora. Tudo o mais se perde na sombra. Todas as questões e todos os problemas ficam em segundo plano, pecados pessoais, preocupações da Igreja, sonhos de grandeza, tribulações do espírito, Seus problemas ficam num vazio de memória.
Diante de pessoa de Jesus a atitude de Francisco é toda de amor. Não de curiosidade, interesse , temor, mas de gratidão, assombro, encanto, Quando depois de beijar o leproso Cristo lhe aparece na capelinha de São Damião crucificado, mendigo, pedindo-lhe ajuda, a alma de Francisco fica verdadeiramente e para sempre “colada” à pessoa de Jesus. Toda sua vida foi um processo de enamoramento. Nunca houve uma involução egoísta sobre si mesmo, nem para áreas laterais, mesmo em seu apostolado. A pessoa de Jesus é o ponto de mira e o enamoramento uma modalidade de relacionamento.
Pode ser que venhamos a olhar a figura de Jesus com certo interesse: mestre, redentor, salvador. Nossas necessidades como as de Francisco estariam sendo contempladas, de modo especial diante Menino das Palhas e o Crucificado do Calvário. A “resolução” de seus problemas pessoais não se coloca em primeiro plano. Sua atitude não é interesseira, mas de assombro. Como Deus pode amar assim? Francisco, embriagado de amor por Cristo.
“Nada retenhais para vós a fim de que totalmente vos possua Aquele que totalmente a vos se dá” (Carta à Ordem, 26-29).
Texto inspirador: São Francisco Fé e Vida – Frei David Azevedo, OFM – Editorial Franciscana Braga, p.22-23
Imagem principal: São Francisco de Assis, autor desconhecido (Wikimedia Commons, domínio público)
II. Quando Deus invade a vida inteira
Tudo parecia em ordem na vida do garboso italiano de Assis. Sonhos, vontade de guerrear, ser cortês com o mundo feminino em delicada galantearia; cantar, serenatas, dinheiro da loja do pai. Alguma coisa, no entanto, estava trabalhando dentro dele. A carreira militar e o mundo dos negócios não constituíam mais seus principais interesses. Perdera tudo o que tinha tido como tesouro. Vivia um terrível vazio dentro do peito. Seus sonhos iam se dissipando. Tem sede de outra coisa. Mas de que? O Poverello vai sendo trabalhado pelo Espírito. Suas ambições se interiorizam. “Alguém” anda querendo oferecer-lhe projetos novos. Quem, quando , como, onde?
Tudo levava a crer que esse Alguém poderia estar lhe dizendo: “Eu te quero…tu tens que ser meu…tenho muitas coisas a dizer ao teu ouvido… preciso de você”. Francisco descobre a fé como uma chama muito frágil no meio da noite. Vai adentrar-se nela como alguém que busca encontrar um poço no deserto e um tesouro escondido no campo. A aventura evangélica vai se desenhando aos seus olhos. Será necessário um rasgão. Aqueles primeiros anos foram decisivos. O evangelho doeu tanto em sua carne como o bisturi de um cirurgião. Os sermão de domingo que ouvia sonolentamente passou a ser um evangelho de fogo.
Agora era questão de tudo arriscar. Deixar seu projeto para acolher o projeto de Deus. Colocar a voz, as pernas, os braços, a inteligência para realizar o projeto amoroso de Deus. Não é esse o mistério da fé? Francisco aposta tudo na fé. Sua conversão é o desejo do homem que se abre ao desejo de Deus. Como deixar de responder ao apelo de um Deus que precisa do leite de uma mulher e de alguém que sepulte seu corpo.
Deus passa a não ter apenas um espaço reservado para seu culto aos domingos. Invadiu todo o seu espaço e tempo de homem. Isso significa crer. Em seus escritos o Poverello voltará sempre ao tema: guardar a fé, buscar Deus sempre e por toda parte, de todo o coração. Na fé responder a um chamamento que vem do Alto.
Este é o coração da espiritualidade de Francisco: a fé vigilante, permanecer disponível aos apelos do Senhor. Aceder de novo às nossas fontes interiores. Escutar a Deus Deixar-se conduzir de novo no meio da noite pela esperança que tomou o rosto de Jesus. Despertar de uma sonolência de bem estar. Silêncio, grutas, colóquios interiores, andanças, aguardando as visitas do Amado.
O projeto evangélico de Francisco se arraiga na fé. Fé que acredita que Deus é amor, que seu projeto sobre o homem faz explodir a estreiteza de d horizontes, que a dependência de Deus não aliena o homem, mas o liberta.
Texto de apoio: El caminho franciscano – Michel Hubaut Editorial Verbo Divino Estella (Espanha), p. 15-18
III. Aquela capela que nunca saiu da memória
“Francisco já inteiramente transformado em seu coração, e muito próximo de o estar igualmente quanto à maneira de viver, calhou de passar um dia perto da Igreja de São Damião quase em ruína e de todos abandonada. Conduzido pelo Espírito, entra nela para orar, prostra-se devoto e suplicante aos pés do crucifixo e sente-se tocado de modo extraordinário pela graça divina que o torna completamente diferente ao que era antes. E estando ainda profundamente emocionado vê de repente – inaudito milagre! – a imagem de Cristo, pintada de Cristo crucificado despregar os lábios falar-lhe, chamando-o pelo próprio nome: “Francisco, vai e repara a minha casa que, como vês, está quase em ruína”. Francisco pasma, treme, quase perde os sentidos e não atina na resposta. Propõe-se, no entanto, a obedecer imediatamente ordem recebida e concentra todas as forças para executá-la”(2Celano 10).
Na pequena igreja em ruínas de São Damião Francisco encontra Cristo e Cristo lhe fala. Cristo “interfere” nos projetos de Francisco. Interpelado pelo Cristo, transtornado., Francisco vê na figura humana de Jesus o que está sendo chamado a se tornar. Vai abrir os olhos e se entregar para sempre ao Senhor e à Igreja. A noite vai se dissolvendo e ele percebe uma claridade. O desejo o impulsiona e sente-se livre de seus medos.
Francisco não designa nunca a cruz por si mesma em suas falas e escritos. Ele sempre a celebra à luz mistério pascal. Dor e júbilo. Morte e vida. Sua visão é realista. Jesus sofreu efetivamente: “Os sofrimentos, as perseguições, humilhações, fome e sede, fraqueza, provações.” (Admoestação VI,2). A cruz foi plantada num itinerário de encarnação realmente escolhido por Cristo que “nasceu pobre, viveu muito pobremente neste mundo, permaneceu nu e pobre suspenso na cruz e foi sepultado num sepulcro de um outro” (Três Companheiros 22).
Ao realismo da cruz, contemplado nas chagas de Cristo, Francisco saberá enxertar seu apego pela ternura de Deus e a encarnação do Filho. Disso fará depender seu zelo apostólico e missionário. Descobrirá ao longo de seu caminho de santidade que os cravos de Cristo são as chaves que abrem a Porta da vida e que nossas feridas são as fechaduras nas quais podemos introduzir tais cravos para abrir a porta da liberdade interior, da paz e da perfeita alegria.
Quando Francisco encontra-se diante do crucificado, sabe como Isaías, que ele se fez leproso por nós (Is 52, 13-15). Não é mais o Senhor distante do sofrimento, mas o Senhor Crucificado-Ressuscitado cujo olhar se inclina tristemente para o mundo porque reconhece a indizível miséria dos homens. Francisco o contempla com um olhar novo. A partir de então o semblante de um sofredor não lhe será estranho nem indiferente e o rosto que ele contempla vai conduzi-lo à experiência interior do amor. A conversão de Francisco e sua consolidação estarão vinculadas a um relacionamento íntimo com Cristo e a Igreja.
Francisco é preparado, trabalhado, “arrastado” pelo Senhor para ser conduzido à claridade. Seu coração permanece em estado de espera. Ele nos diz que conduzido pelo Espírito Santo ele entra nessa igreja para rezar. É ali que se produz o encontro com Jesus Cristo e que o desejo de Deus se imprime em seu coração maravilhado. Vai receber resposta do “como” realizar sua vontade; Esse “como” será ocasião desvelamento e centralização em Cristo.
François d’Assise – Le prophète de l’extrême – Éditions Nouvelle Cité, p, 111-113
IV. Quando foi terminado o tempo de viver
Na vida os homens caminham às cegas. As palavras lhes servem de bengalas brancas como os cegos costumam usar. Elas previnem os obstáculos. Permitem que eles se “modelem” interiormente A palavra “rota” (route em francês), dizem os dicionários, apareceu no século XIII do latim rumpere quebrar violentamente, caminho aberto cortando uma floresta. Essa palavra poderia como que ter sido inventada por São Francisco que se abre no mundo um caminho, um caminho quebrado, infiel à sua parentela, infiel a todos por amor do amor traçando com curvas uma longa linha reta.
Vai terminando seu tempo de viver. Tudo avança muito rápido. Uns poucos anos que passam como a luz, como a água, como o vento. Francisco escreve para os seus discípulos uma regra de vida. Ela é simples: júbilo da alma, despreocupação com respeito ao amanhã, atenção total a todas as vidas, alegria de não ter nada, encantamento com todas as presenças. De acréscimo ele lhes conta esta história. Querem saber em que consiste a alegria, querem saber de verdade? Escutem: é noite e chove, tenho fome, bato à porta de minha casa, digo quem sou e não me deixam entrar. Passo a noite fora à porta de minha casa com frio e com fome. Nisto consiste a alegria Quem puder compreender que compreenda. Entenda quem quiser entender. A alegria é de não estar nunca em sua casa (chez soi), sempre fora, em tudo debilitado, faminto, fora do mundo como no ventre de Deus.
Em seguida ele se retira para a solidão verde das árvores, solidão cinzenta das pedras. Uma enfermidade atinge-lhe os olhos, tira a força de seus olhos. Ferido pelo sol ele lhe escreve uma carta de agradecimento, um canto de louvor, última saudação a esta vida que ele tanto amou: “Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã e mãe terra, que nos sustenta e governa, e produz variados frutos, com flores coloridas e verduras”. O Cântico do Sol tem a evidente beleza do orvalho da manhã e do primeiro encarnado da manhã. Há duas versões. Há pouca diferença entre as duas páginas. A segunda não deixa de lado nada da primeira. Depois de algumas semanas de silêncio, Francisco de Assis acrescenta simplesmente uma frase, uma frase reluzente, luz de uma fala amarrada ao silêncio: “Louvado sejas tu por nossa irmã a morte”.
Louvado sejas tu por nossa irmã a morte – quem escreve esta frase, aquele que a pronuncia com o coração, nesse momento está longe de si mesmo e mais próximo de tudo. Nada o separa de seu amor porque seu amor encontra-se em todas partes, mesmo aquelas que chegam para quebrá-lo.
Louvado seja por nossa irmã a morte – aquele que murmura esta frase chegou ao fim de seu longo trabalho de viver, dessa separação entre a vida e a nossa vida. Três espessuras de vidro se colocam entre a luz e nós, três espessuras de tempo: do lado do passado, a sombra dos pais projetada ao longe sobre nossos dias. Do lado do presente, a sombra de nossos atos e essa imagem que eles secretam, fóssil, inquebrável. Francisco de Assis atravessou esses dois vidros sem se machucar. Fica restando a última prova, a última opacidade no tocante ao futuro próximo – o medo de morrer diante do qual até mesmo os santos podem recuar, um cavalo se empinando diante do ultimíssimo obstáculo.
Louvado sejas por nossa irmã a morte – lançando seu amor para longe diante de si na direção dessa sombra que vem toma-lo, Francisco de Assis elimina o ultimo obstáculo – como um lutador desfaz seu adversário pegando pelos ombros para abraçá-la.
Louvado sejas por nossa irmã a morte está dito e está feito: nada mais há entre a vida e sua vida, nada mais entre ele e ele. Não há mais passado nem presente , nem futuro nada mais que Deus infinitamente baixo, mas de repente o Altíssimo espalhado por toda parte como água.
O resto. Será que vale a pena descrever o resto que acontece aparentemente no sábado 3 de outubro de 1226.
Lentamente ele cerra os olhos como sob o encanto de um pensamento profundo, tão profundo que lhe retém o sopro.
Uma criança. Uma criança que interrompe suas brincadeiras, aparentemente sem motivos e permanece e se mostra pálido, imóvel, mudo – nada mais sabendo senão sorrir.
Texto traduzido: Christian Bobin – Le Très-Bas – Gallimard, p. 120-122
Nesta edição
FRANCISCO DE ASSIS, ENAMORADO DE JESUS
A 4 de outubro a Igreja assinala a passagem da festa de São Francisco de Assis. Nosso Caderno de Formação de outubro será consagrado a esse italiano luminoso de modo particular ao seu enamoramento por Jesus. Um encantamento que durará toda a sua vida. Com seu corpo nu deitado na terra nua havia lutado com unhas e dentes para que o Amor fosse amado. Um eterno enamorado Ele podia dizer de fato: não sou eu que vivo, mas o Amor que vive em mim.
Frei Almir Ribeiro Guimarães