Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Outubro 2021

I. Uma paixão irreprimível

Um dia, aos berros,  entramos no mundo. Quiseram que existíssemos:  nossos pais e a Fonte misteriosa da vida.  Aos poucos  fomos sendo apresentados a uns e aos outros, ao mundo e à história.  Compreendemos que era preciso viver. Olhamos a maneira como as pessoas iam vivendo.  Copiamos a uns e outros.  Nem sempre nos ensinaram a refletir sobre a arte de viver. Fato  é que somos mistérios ambulantes. Viver, conviver, prestar carinhosa atenção aos outros,  criar espaços de solidariedade e de fraternidade,  morrer interiormente  quando   necessário. Morrer para viver. O que conta é a vida.  Viver densa e profundamente. Não encher o espaço de nossa biografia com banalidades e nem iluminá-lo com fogos de artificio. Não podemos enganar-nos a nós mesmos nem aos outros. A vida é  breve e a pandemia andou  dizendo que o fim da estrada pode ser antes do que se havia suposto. Queremos viver.  Francisco de Assis  é um mestre da vida de todos os dias e da aventura do seguimento de Jesus  nesse espaço de viver.

A essência do cristianismo não é uma doutrina teológica, nem uma filosofia, nem uma  moral,  nem um  dinamismo  revolucionário. É uma pessoa, a pessoa de Jesus.   O que decisivo para que alguém seja  cristão não são os conhecimentos  teológicos nem seu  comportamento moral,   mas sua relação com Jesus. Somente na medida em que a pessoa vai se enamorando de Cristo é que se vai tornando  cristã.

O apóstolo Paulo sempre, em seus escritos,  mostra um encantamento  por Cristo:  só quer conhecer o  Cristo, e o Cristo crucificado;  diz não saber se é melhor morrer para estar com Cristo ou andar falando de seu amor pelo mundo afora;  tem como lixo o que não é  Cristo Jesus. Com Francisco de Assis passa-se algo parecido . É a pessoa de Cristo que surge diante de seu olhar  infantil e extasiado.  A pessoa de  Cristo  em primeiro plano grande, linda, luminosa, encantadora, avassaladora.  Tudo o mais se perde na sombra.  Todas as questões e todos os problemas ficam em segundo plano, pecados pessoais, preocupações da Igreja, sonhos de grandeza, tribulações do  espírito, Seus problemas ficam num vazio de memória.

Diante de pessoa de Jesus a atitude de Francisco é toda de amor.  Não de curiosidade, interesse , temor,  mas de gratidão, assombro, encanto,  Quando depois de beijar o leproso  Cristo lhe aparece na capelinha de São Damião  crucificado, mendigo, pedindo-lhe ajuda, a alma de Francisco fica verdadeiramente e para sempre “colada” à pessoa de Jesus.  Toda sua vida  foi um processo de enamoramento.  Nunca houve uma involução egoísta sobre si mesmo, nem  para áreas laterais,  mesmo em seu apostolado.  A pessoa de Jesus é o ponto de mira e o enamoramento uma modalidade  de relacionamento.

Pode ser que  venhamos a olhar a figura de Jesus com certo interesse:  mestre, redentor, salvador.  Nossas necessidades como as  de Francisco estariam sendo contempladas, de modo especial diante  Menino das Palhas e o Crucificado do Calvário. A “resolução” de seus problemas pessoais  não se coloca em primeiro plano.  Sua atitude não é interesseira,  mas de assombro.  Como  Deus pode amar assim? Francisco, embriagado de amor  por  Cristo.

“Nada retenhais para vós a fim de que totalmente vos possua Aquele  que totalmente a vos se dá”  (Carta à Ordem, 26-29). 


Texto inspirador: São  Francisco   Fé e Vida – Frei David Azevedo, OFM – Editorial Franciscana  Braga,  p.22-23


Imagem principal: São Francisco de Assis, autor desconhecido (Wikimedia Commons, domínio público)

II. Quando Deus invade a vida inteira

            Tudo parecia em ordem na vida do garboso  italiano de Assis.  Sonhos, vontade de guerrear,  ser cortês com o mundo feminino em delicada galantearia; cantar, serenatas, dinheiro da loja do pai. Alguma coisa, no entanto, estava trabalhando dentro dele.  A carreira militar e o mundo dos negócios não constituíam mais seus principais interesses.  Perdera tudo o que tinha  tido como tesouro.  Vivia um terrível vazio dentro do peito.  Seus sonhos iam se dissipando.  Tem sede de outra coisa. Mas de que?  O  Poverello vai sendo trabalhado pelo  Espírito.  Suas ambições se interiorizam. “Alguém” anda querendo oferecer-lhe projetos novos.  Quem, quando , como, onde?

Tudo levava a crer que esse Alguém poderia estar lhe dizendo: “Eu te quero…tu tens que ser meu…tenho muitas coisas a dizer ao teu ouvido… preciso de você”.  Francisco  descobre a fé como  uma chama muito frágil  no meio da noite.  Vai adentrar-se  nela como alguém que  busca encontrar   um poço no deserto e um tesouro escondido no campo. A aventura evangélica vai se desenhando aos seus olhos.  Será necessário  um rasgão.  Aqueles primeiros anos foram decisivos.   O evangelho doeu  tanto em sua carne como o bisturi de um cirurgião.  Os sermão de domingo que ouvia sonolentamente passou a ser  um evangelho de fogo.

Agora era questão de tudo arriscar.  Deixar  seu projeto para acolher o projeto de Deus.  Colocar a voz, as pernas, os braços, a inteligência  para realizar o projeto amoroso de Deus.  Não é esse o mistério da fé?   Francisco aposta  tudo na fé.  Sua  conversão é o desejo do homem que se abre ao desejo de Deus. Como deixar de responder ao apelo de um Deus  que precisa do leite de uma mulher e de alguém que sepulte seu corpo.

Deus  passa a não ter  apenas um espaço reservado para seu culto aos domingos.  Invadiu  todo o seu espaço e tempo de homem.  Isso significa crer. Em seus escritos o Poverello voltará sempre ao tema:  guardar a fé, buscar Deus sempre e por toda parte, de todo o coração. Na fé responder a um chamamento  que vem do Alto.

Este é o coração da espiritualidade de Francisco: a fé vigilante, permanecer  disponível aos apelos do Senhor. Aceder de novo às nossas fontes interiores. Escutar a Deus  Deixar-se conduzir de novo no meio da noite pela esperança que tomou o  rosto de Jesus.  Despertar de uma sonolência de bem estar.  Silêncio, grutas, colóquios  interiores, andanças, aguardando as visitas do Amado.

O projeto evangélico de Francisco se arraiga na fé.  Fé que acredita que  Deus é amor, que seu projeto sobre o homem  faz explodir a estreiteza  de d horizontes, que a dependência de  Deus não aliena o homem, mas o liberta.


Texto de apoio: El caminho franciscano – Michel Hubaut Editorial  Verbo Divino  Estella  (Espanha), p. 15-18

III. Aquela capela que nunca saiu da memória

            “Francisco já inteiramente  transformado em seu coração, e muito  próximo de o estar igualmente quanto à maneira de viver, calhou de passar um dia perto da Igreja de São Damião  quase em ruína e de todos abandonada. Conduzido pelo Espírito, entra nela para orar, prostra-se devoto e suplicante aos pés do  crucifixo e sente-se tocado  de modo extraordinário pela graça divina  que o torna completamente diferente ao que era antes. E estando ainda profundamente emocionado  vê de repente – inaudito milagre! – a imagem de Cristo, pintada de Cristo crucificado despregar os lábios  falar-lhe,  chamando-o  pelo próprio nome:  “Francisco, vai e repara a minha casa que, como  vês, está quase em ruína”.  Francisco  pasma, treme, quase perde os sentidos e não atina na resposta. Propõe-se, no entanto, a obedecer  imediatamente ordem recebida e concentra todas as forças para executá-la”(2Celano 10).

Na pequena igreja em ruínas de São  Damião  Francisco encontra Cristo e Cristo lhe fala.  Cristo  “interfere” nos projetos de Francisco.  Interpelado  pelo  Cristo,  transtornado.,  Francisco vê  na figura humana de Jesus o que está sendo chamado a se tornar.  Vai abrir os olhos e se entregar para sempre ao Senhor e à Igreja.   A noite  vai se dissolvendo e ele percebe  uma claridade.  O desejo o impulsiona e sente-se livre de seus  medos.

Francisco  não designa  nunca a cruz  por si mesma em suas falas e escritos. Ele sempre a celebra à luz mistério pascal.  Dor e júbilo.  Morte e vida.  Sua visão é realista.  Jesus sofreu efetivamente: “Os sofrimentos, as perseguições, humilhações,  fome e sede, fraqueza,  provações.”  (Admoestação VI,2). A cruz foi plantada num itinerário de encarnação  realmente  escolhido por  Cristo que “nasceu pobre, viveu muito pobremente neste mundo, permaneceu nu e pobre suspenso na cruz e foi sepultado num  sepulcro de um outro” (Três  Companheiros 22).

Ao realismo da cruz,  contemplado nas chagas de Cristo,  Francisco saberá enxertar  seu apego  pela ternura de Deus e a encarnação do Filho. Disso fará depender seu zelo apostólico e missionário. Descobrirá ao longo de seu caminho de santidade que  os cravos de Cristo  são as chaves que abrem a Porta da vida e que  nossas feridas são  as fechaduras nas quais podemos introduzir tais cravos para abrir  a porta da liberdade interior, da paz e da perfeita alegria.

Quando Francisco encontra-se diante do crucificado, sabe como Isaías,  que ele se fez leproso por nós (Is 52, 13-15).  Não é mais o Senhor distante  do sofrimento,  mas o  Senhor   Crucificado-Ressuscitado  cujo olhar  se inclina tristemente para o mundo porque reconhece a indizível  miséria  dos homens.  Francisco o contempla com um olhar novo.  A partir de então o semblante de um sofredor  não lhe será estranho nem indiferente e o rosto que ele contempla vai conduzi-lo à experiência interior do amor.  A conversão de Francisco e sua consolidação  estarão vinculadas a um relacionamento íntimo com Cristo e a Igreja.

Francisco é preparado, trabalhado, “arrastado” pelo Senhor  para ser conduzido à claridade.  Seu  coração permanece em estado de espera.  Ele nos diz que  conduzido pelo  Espírito Santo  ele entra nessa  igreja para rezar. É ali que se produz o encontro com  Jesus Cristo e que o desejo de Deus se imprime em seu coração maravilhado. Vai receber resposta  do  “como”  realizar sua vontade;  Esse “como” será ocasião desvelamento e centralização em  Cristo.


François d’Assise – Le prophète de l’extrême – Éditions Nouvelle Cité,  p, 111-113

 

IV. Quando foi terminado o tempo de viver

Na  vida  os  homens caminham às cegas. As palavras lhes  servem de bengalas brancas como  os cegos costumam usar.  Elas previnem os obstáculos.  Permitem que eles se “modelem” interiormente A palavra  “rota”  (route em francês), dizem os dicionários, apareceu no  século  XIII   do latim rumpere  quebrar violentamente, caminho aberto cortando uma floresta. Essa palavra poderia  como que ter sido inventada por  São Francisco   que se abre  no mundo um caminho,  um caminho quebrado, infiel  à sua parentela, infiel a todos por amor do amor  traçando com curvas uma longa linha reta.

Vai terminando seu tempo de viver.  Tudo avança muito rápido. Uns poucos anos que passam como a luz, como a água, como o vento. Francisco  escreve   para os seus discípulos  uma regra de vida. Ela é simples: júbilo da alma, despreocupação com respeito ao amanhã,  atenção total a todas as vidas, alegria de não ter nada, encantamento com todas as presenças.  De acréscimo ele lhes conta esta história.  Querem saber em que consiste  a alegria, querem saber de verdade? Escutem:  é noite e chove, tenho  fome,  bato à porta de minha casa, digo  quem sou e não me deixam entrar.  Passo a noite fora à porta de minha casa  com frio e com fome. Nisto consiste a alegria  Quem puder compreender que compreenda. Entenda quem quiser entender.  A alegria é de não estar nunca em sua casa (chez soi),  sempre fora, em tudo debilitado, faminto, fora do mundo como no ventre de Deus.

Em seguida ele se retira para a solidão verde das árvores, solidão cinzenta das pedras. Uma enfermidade atinge-lhe os olhos, tira a força de seus olhos.  Ferido pelo  sol  ele lhe escreve  uma carta de agradecimento, um canto de louvor,  última saudação a esta  vida que ele tanto amou: “Louvado sejas, meu  Senhor, pela nossa irmã e mãe terra, que  nos sustenta e governa, e produz variados frutos, com flores coloridas e verduras”.  O Cântico do Sol tem a evidente beleza do orvalho da  manhã e do primeiro encarnado da manhã.  Há duas versões.  Há pouca diferença entre as duas páginas. A segunda não deixa de lado nada da primeira.   Depois de algumas semanas de silêncio,  Francisco de Assis  acrescenta simplesmente uma frase, uma  frase reluzente, luz de uma fala  amarrada ao silêncio: “Louvado sejas tu por nossa irmã a morte”.

Louvado sejas tu  por nossa irmã a morte – quem escreve esta frase,  aquele que a pronuncia com o coração, nesse momento está longe de si mesmo e mais próximo de tudo.  Nada o separa de seu amor porque seu  amor encontra-se em todas partes, mesmo aquelas que chegam para quebrá-lo.

Louvado seja por nossa irmã a morte –  aquele que  murmura  esta frase  chegou ao fim de seu longo trabalho de viver, dessa separação entre a vida e a nossa vida.  Três espessuras de vidro se colocam  entre a luz e nós, três espessuras de tempo:  do lado do passado, a sombra dos pais projetada ao longe sobre nossos dias. Do lado do presente, a sombra de nossos atos e essa imagem que eles secretam, fóssil, inquebrável. Francisco de  Assis  atravessou esses dois vidros  sem se machucar.  Fica restando a última prova,  a última opacidade  no tocante ao futuro próximo  –  o medo de morrer  diante do qual até mesmo os santos podem recuar, um cavalo se empinando  diante do ultimíssimo obstáculo.

Louvado sejas por nossa irmã a morte –  lançando  seu amor para longe diante de si na direção dessa  sombra que vem toma-lo,  Francisco de Assis elimina o ultimo obstáculo – como um lutador  desfaz seu adversário pegando pelos ombros para abraçá-la.

Louvado  sejas por nossa irmã a morte   está dito e está feito: nada mais há entre a vida e sua vida, nada mais entre ele e ele.  Não há mais passado nem  presente , nem futuro nada mais que Deus  infinitamente baixo, mas de repente o  Altíssimo  espalhado por toda parte como água.

O resto.  Será que vale a pena descrever o resto que acontece aparentemente no sábado  3 de outubro  de 1226.

Lentamente ele cerra os olhos  como  sob o encanto de um pensamento profundo, tão profundo que lhe  retém o  sopro.

Uma criança.  Uma criança que interrompe suas brincadeiras, aparentemente sem motivos e permanece  e se mostra pálido, imóvel, mudo –  nada mais  sabendo senão sorrir.


Texto traduzido: Christian  Bobin – Le Très-Bas – Gallimard, p.  120-122 

Nesta edição

FRANCISCO DE ASSIS, ENAMORADO DE JESUS 

            A 4 de outubro a Igreja assinala a passagem da festa de São Francisco de Assis.  Nosso Caderno de Formação de outubro será  consagrado  a esse italiano luminoso de modo particular ao seu enamoramento por Jesus.  Um encantamento que durará toda a sua vida. Com seu corpo nu deitado na terra nua havia lutado com unhas e dentes  para que  o Amor fosse amado.  Um eterno enamorado Ele podia dizer de fato:  não sou eu que vivo, mas o Amor que vive em mim.

Frei Almir Ribeiro Guimarães