Outubro 2019
- Apresentação
- Um homem de Assis que se chamava Francisco
- Em busca do verdadeiro Francisco
- Uma Igreja que caminha pelas sendas do tempo (II)
- A verdade transparente dos provérbios
- Gosto de...
Apresentação
TIRANDO DO BAÚ COISAS NOVAS E VELHAS
Reinventando a vida a cada dia
Edição de outubro de 2019
Está suas mãos o número de outubro da revista que procura tirar do baú coisas novas e velhas. Formação, espiritualidade, entretenimento. E neste mês de outubro nitidamente com marcas franciscanas.
Frei Almir Guimarães
freialmir@gmail.com
Um homem de Assis que se chamava Francisco
E depois que o Senhor me deu irmãos, ninguém me mostrou o que eu deveria fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu deveria viver segundo a forma do santo Evangelho.
Testamento, 14
Meu Deus! Quanto tempo se passou desde que Francesco di Pietro Bernardone, Frei Francisco, terminou seus dias na tardinha de 3 de outubro de 1226, deitado nu na terra nua! E como ele é atual. O mundo todo, gente de todos os cantos, não apenas os adeptos de religiões que buscam nelas conforto e alívio, mas, principalmente, os que são atraídos pelo perfume do Evangelho acolhem seus gestos e suas palavras e se deleitam em contemplar seus passos.
Georges Duby diz que, em parceria com Cristo, Francisco foi o grande herói da história cristã e que aquilo que permanece vivo hoje no cristianismo se deve a ele. Julien Green afirma que São Francisco de Assis é o cristianismo em todo o seu frescor matinal. Ele é a redescoberta do Evangelho. Green se pergunta se Deus não nos ofereceu o seu Evangelho uma segunda vez na vida de São Francisco. O agnóstico Ernest Renan escreveu: “Pode-se dizer que depois de Cristo, Francisco de Assis foi o único cristão perfeito”.
Celebrar é tornar presente. Ao celebrarmos um aniversário natalício de alguém trazemos para o presente de nosso hoje o tempo vivido, as experiências feitas e as esperanças para o amanhã ainda aninhadas no coração daquele que é festejado. Celebrar São Francisco é cantar as maravilhas que o Deus belo operou nesse filho da sorridente cidade de Assis, na Úmbria italiana, cujo espírito perdura através dos séculos.
Ele é santo. Se ele não foi, quem poderia ser? Ele está na glória em companhia desse Cristo que arrancou lágrimas de seus olhos e que o fez dançar de incontida alegria.
Seu nome é Francisco, o “francesinho” que gostava de cantar na língua de Molière. Deus sabe quanto a França haveria de estimá-lo! Quantos conventos, quantas igrejas, quantos santos, quanto e quantos mosteiros de Clarissas erguidos naquelas terras.
Seu nome vem sempre acrescido de um “título”: “irmão”, “frade”, “frei”. Irmão dos frades, de Clara, de Leão, da cotovia, do fogo, do vento, de Fra Jacoba, do verme da estrada, dos ladrões e salteadores, da morte… da irmã morte.
Irmão que ama os irmãos, ama de um amor com a qualidade do amor de mãe, amor materno, maternal, visceral. Comendo uvas com um irmão doente nos tempos reservados para o jejum, escrevendo uma das mais lindas cartas jamais escritas pedindo que o Ministro e servo da fraternidade amasse o frade pecador até o fim… até o fim…
Simples, sem pretensões, um irmão menor, sem imposições, atraindo a simpatia de todos os de ontem e os de hoje, sem afetação, sem rebuscamentos e prejulgamentos. Menor, adoravelmente menor. Perto dele todos se sentiam bem, à vontade… um irmão menor.
Vemo-lo nos caminhos e estradas, sempre a caminho, dizendo que o Amor precisa ser amado, que os corações precisam mudar, chorando e enxugando as lágrimas, cobrindo o rosto com as mangas de seu hábito quando recebia as visitas do Alto.
Sincero e reto, deixando a direção do grupo dos irmãos quando ele se dá conta que a Senhora Pobreza não era mais a “rainha do pedaço” e não morava no coração de muitos irmãos. “Esqueçam-se de mim…”.
Retira-se sem estardalhaço. Vai a uma montanha com Frei Leão. E nas mãos, nos pés e no lado do peito recebe os sinais Daquele que doido de amor dera sua vida pela vida do mundo.
O Evangelho foi belamente reescrito na vida e no corpo de nosso irmão Francisco.
Em busca do verdadeiro Francisco
Jacques Le Goff, estudioso da história da Idade Média, escreveu um livro sobre Francisco de Assis. Transcrevemos uma página em que Le Goff dá largas à admiração que tem pelo Poverello. Trata-se de um rara página que, em poucas linhas, situa Francisco no seu contexto histórico e geográfico.
Nada mais fácil a priori do que apresentar São Francisco de Assis. Ele deixou muitos escritos que nos informam sobre sua sensibilidade, suas intenções, suas ideias. Amigo da simplicidade em seus escritos como em sua vida e em seu ideal, voluntariamente ignorante das sutilezas escolásticas, não embrulhava seu pensamento e suas efusões literárias num vocabulário ou num estilo eruditos ou obscuros que exigissem um grande esforço de elucidação ou de interpretação. Santo de um novo gênero, segundo o qual a santidade se manifesta menos por milagres – entretanto numerosos – e pela exibição de virtudes – embora excepcionais e brilhantes – do que pela linha geral de uma vida totalmente exemplar. Francisco teve, em seu próprio círculo de companheiros, numerosos biógrafos não apenas elencando documentos, mas cuidadosos de pintá-lo também através dessa verdade, dessa simplicidade, dessa sinceridade sempre dele naturalmente irradiadas. Amigo de todas as criaturas e de toda a criação, espalhou tanta solicitude, compreensão fraternal a todos, caridade no sentido mais elevado, quer dizer, amor, que a história como que lhe deu em troca a mesma simpatia e admiração afetuosa e geral.
Todos os que falam dele ou sobre ele escreveram – católicos, protestantes, não-cristãos, incréus – foram tocados e frequentemente fascinados por seu encanto. A geografia e a história também com naturalidade lhe compuseram o cenário e o meio ambiente íntimos que mostram com evidência inescondível as ligações profundas que o uniam à sua terra: à sua cidade, Assis, à beira das estradas, em contacto com a planície e a montanha, ao alcance do homem e perto da solidão; a sua Úmbria, propícia às caminhadas por montes e por vales, cheia de silêncio e de ruído, de luz e de sombra, agrícola e mercante, fervilhante de um povo simples e profundo, tranquilo e apaixonado, ardente por dentro, mas às vezes soltando bruscas fagulhas, afinado com as árvores, a terra, os rochedos, os riachos sinuosos, rodeado por um mundo de animais nobres e familiares – os carneiros, os bons, os burros, os pássaros -, entre os quais especialmente a pomba, a gralha, a gralha miúda às quais ele pregava, o falcão, o faisão, as laboriosas abelhas e cigarra humilde que vinha cantar em sua mão; na Itália dilacerada entre o papa e o imperador, cidades voltadas umas contra as outras, nobreza e povo, tradições rurais e progresso de uma economia cada vez mais invadida pelo dinheiro, e que também o ligavam à sua época, esse tempo trepidante do avanço urbano, da inquietude herética, do ímpeto prestes a ser que brado pela cruzada, da poesia sensível, também dilacerada entre a brutalidade das paixões e os sentimentos refinados. Como parece fácil situá-lo! E nesse cenário luminoso, o historiador, vê diante de si, a oferecer-se, uma última graça, um outro presente inestimável: a poesia que se desprende de Francisco, a lenda que dele emana desde quando era vivo de tal forma fazem parte de sua personagem, de sua vida, de sua ação, que nele Poesia e Verdade se confundem. Há mais de cem anos já, Ernest Renan se admirava “que sua maravilhosa lenda possa ser estudada tão de perto e confirmada em suas grandes linhas pela crítica”.
Jacques Le Goff
São Francisco de Assis
Record, p. 43-45
Uma Igreja que caminha pelas sendas do tempo (II)
Com que Igreja sonhamos?
Continuamos as reflexões de nosso número de setembro. Eis mais umas características de Igreja que desenhamos diante de nós, que tem condições de ser sinal do Reino. Sabemos que quem nos anda convidando para tanto é o Papa Francisco.
Entrando no clima
A imagem da Igreja que vivemos se manifesta em nossa prática pastoral. José Antonio Pagola nos adverte: “Grande parte de nosso trabalho pastoral limita-se a alimentar e sustentar um cristianismo convencional, que se ajusta àquilo que amplos setores esperam e pedem à Igreja: respeito a uma tradição religiosa empobrecida e cada vez mais anacrônica; observância de uma prática litúrgica inamovível e que tranquiliza, embora não alimente a comunhão vital com Cristo; insistência em certas verdades doutrinais, embora não abram os corações à experiencia do Deus amigo da vida, encarnado em Jesus; lembrança ameaçadora da moral, embora não ajude a acolher seu Espírito. No interior de tudo isso escondem-se, sem dúvida grandes valores cristãos, obscurecidos às vezes pelo peso dos séculos; mas será isto que Jesus esperava de seus discípulos quando os chamava para anunciar a proximidade do Reino de Deus cuidando da vida e aliviando o sofrimento?” (José Antonio Pagola, Voltar a Jesus, Vozes, p. 52-53).
Uma Igreja simples e humilde
Precisamos de uma Igreja que se renova em seu modo de proceder, inspirando-se mais no estilo de Jesus pobre e humilde, servo de todos, distante do modo próprio dos senhores da terra: autoritarismo, prepotência, distância. A Igreja precisa lembrar-se de Jesus que ia conversando pelo caminho. O típico da autoridade segundo o Evangelho é o serviço. Uma Igreja que se empenha mais em acolher e abrigar do que conquistar, ser apoio e teto, mais do que ser escritório e burocracia, serva de Jesus, mais lavadora dos pés do que aquele que impõe fardos nem sempre leves.
Uma Igreja missionária
Uma Igreja que vive para evangelizar não se fecha em si mesma, como os apóstolos se trancaram no cenáculo com medo dos judeus. O sal existe para temperar e não para ser guardado na despensa. Se a luz não ilumina a cidade, não serve para nada. A Igreja fica mais bonita quando de sacola no ombro e cajado na mão vai de lugar em lugar, à disposição do mundo, tornando-se memória viva do jeito de Jesus, não sendo noticia verbal, mas notícia encarnada, Igreja de testemunhas. Preciso é criar espaços de encontro, lugares de discussão, troca de ideias, espaços de se tomar junto uma xícara de chocolate.
Uma Igreja Mãe e Pastora
O povo de Deus quer pastores
“Como estamos tratando o Povo de Deus? Sonho com uma Igreja Mãe e Pastora. Os ministros da Igreja precisam ser misericordiosos, tomar em seu encargo as pessoas, acompanhando-as como o bom samaritano, que lava, limpa, levanta o seu próximo. Isso é o Evangelho puro. Deus é maior que o pecado. As reformas organizativas e estruturais são secundárias, isto é, são feitas depois. A primeira reforma deve ser da atitude. Os ministros do Evangelho devem ser capazes de aquecer o coração das pessoas, de caminhar na noite com elas, de Saber dialogar, e mesmo de descer às suas noites, na suas escuridão, sem se perder. O povo de Deus quer pastores e não funcionários ou clérigos do Estado. Os bispos, em particular, devem ser capazes de suportar com paciência os passos de Deus no seu povo de tal modo que ninguém fique para trás mas também acompanhar o rebanho que tem o faro de encontrar novos caminhos” (Papa Francisco – Entrevista aos jesuítas).
Uma Igreja samaritana
Uma Igreja que passa pelos caminhos dos homens não com atitude interesseira e calculadora, mas com coração e entranhas de misericórdia, capaz de captar todas as desumanizações no nosso mundo como o bom samaritano, esforçando-se por curar todas as feridas e tatos e tantas atingidos pela injustiça e pela violência de irmãos sem solidariedade. Conhecemos a palavra do Papa Francisco: “Admiro uma Igreja samaritana que não muda de caminho nem passa pelas pessoas com um coração distraído, mas mostra-se possuída pela vertigem da caridade que faz com desça ao inferno da vida dos homens. Continua ali encontrando Crucificado: este todos têm sua dignidade humana profanada”.
A verdade transparente dos provérbios
Convido a todos para se deixarem impregnar da sabedoria dos provérbios. Eles nos ajudam a viver com mais leveza.
♦ Sabedoria, simplesmente sabedoria
A Bíblia nos oferece uma inesgotável fonte de discernimento e de sabedoria. “Feliz o homem que encontrou a sabedoria, o homem que alcançou a prudência! Ganhá-la vale mais do que a prata e seu lucro mais do que o ouro. É mais valiosa do que as pérolas; nada que desejas a igualá-la” (Pr 3 13-15).
A sabedoria, o justo sabor da vida e do discernimento é dado aos que frequentam seu interior. Aos que ruminam tudo o que vivem, presenciam e experimentam. Normalmente, as pessoas que frequentam o silêncio são mais sábias. Sábios são, ou poderiam ser os idosos, se não estiverem querendo ser jovens a vida toda: plásticas, cremes, academia, linguajar. Triste uma pessoa que vive em torno de seus lucros e prestígio incapaz um palmo diante do nariz. Terá como recompensa a formação de um personalidade egoistamente miserável. Faltou-lhe a luz do discernimento.
♦ Apressado come cru
Depressa, depressa, não se tem tempo para perder. É urgente aproveitar tudo. Fazer tudo e tudo mal feito, quase mal feito. Se não deixarmos os legumes ferver e a carne assar vamos comer cru. Antes de escolher alguém como marido e mulher é preciso dar tempo ao tempo: estudar, discernir. Mas também não demais. Antes de despedir um funcionário verificar se ele não tem condições de melhorar seu desempenho, e como ele, desempregado, poderá cuidar de sua casa e de seu filho especial. Devagar no comer, devagar nas decisões, devagar nos trabalhos escolares e universitários, devagar na busca de Deus, nada de precipitações. Dar tempo ao tempo. Devagar e paciência no crescimento espiritual, senão vem o desânimo. Apressado come cru.
♦ Roupa suja se lava em casa
Se seguíssemos a sabedoria deste ditado seríamos poupados de muitas contrariedades. Há temas e assuntos que são tratados em casa, a portas fechadas. Ninguém precisa tomar conhecimento das falhas, dos defeitos e das incongruências de nossos familiares. Roupa suja se lava em casa. De que adianta falar em casa e no botequim dos defeitos de um padre. Não seria melhor sobre o tema com pessoas de confiança ou mesmo com o sacerdote. Por que mulheres em círculos de amigas deitam fora amarguras de modo tão indelicado a respeito de uma sogra ou um marido. Por que perder as estribeiras e, em lugar público, destratar uma pessoa? Roupa suja se lava em casa.
♦ Quem tem boca vai a Roma
Pode-se pensar em alguém que vai a uma cidade ou a um país desconhecido. Precisa de informações, mapas do metrô, saber do clima na ocasião da viagem. Quando, no entanto, não se tem todas as informações necessárias não há que desesperar. Pede-se informações, fala-se língua do lugar ou a dos gesto. Quem tem boca vai a Roma. Deseja-se encontrar uma escola que tenha um cuidado pelo ensino das humanas. Internet, visitas aqui e ali. Encontramos o médico que queríamos, a marca desodorante que estava em extinção. Perguntando, mostrando mapas, falando macarronicamente a língua do local. Quem tem boca indaga ao Mestre os caminhos para a santidade. Quem tem boca não desiste. Quem tem boca vai a Roma.
♦ Provérbios de outros países
>> A recompensa de uma boa ação é a de tê-la feito (latino)
>> Não basta fazer o bem, é preciso faze-lo bem feito (francês)
>> O bem realizado é um tesouro escondido (malgaxe)
Gosto de...
Temos o direito de ter nossas preferências, respeitamos o gosto dos outros. O que nos encanta de verdade?
⇒ Gosto de viver, simplesmente de viver. Levantar de manhã abrir as janelas, espreguiçando e ver o primeiros raios de sol que tingem o céu e colorem de luz tênue a fachada das casas. Perceber um pássaro peregrino dançando e se deixando levar pelo vento suave.
⇒ Gosto do araçá do mato que eu catava nos campos de capim melado na terra da minha infância.
⇒ Gosto do perfume terra molhada pela chuva forte numa tarde escaldante de verão. Perfume para o olfato e alívio para o corpo.
⇒ Gosto da Avenida Koeler e da rua Ipiranga de Petrópolis com seus palacetes e casas assobradadas, com estilo e garbo. Quando passo por elas não cesso de me encantar. Há jardins exuberantes e delicados balcões. Na Koeler, há o Palácio Rio Negro, casa de veraneio dos presidentes quando o Rio era a capital federal. Na Ipiranga, está o Mosteiro da Virgem com belas pinturas de Claudio Pastro.
⇒ Gosto de silêncio. Gosto também de uma boa “baderna” no momento adequado. Mas não a toda hora. Gosto do silêncio das madrugadas e das noites serenas. Gosto de ver os religiosos e religiosas deixando suas celas, com passo curto e semblante já iluminado, dirigindo-se à capela para o Ofício de Laudes. Gosto de ficar na capela de contemplativas quando fazem seus momentos de meditação comunitária. Parece que Deus adensa sua presença.
⇒ Gosto do barulho do mar quebrando nas areias das praias. Gosto de sentar-me diante do mar imenso de Copacabana ou de Ipanema. Gosto da serra, do verde, das árvores floridas de suas noites frias que nos pedem cobertores deliciosamente quentes. Confesso, no entanto, que tenho saudades do mar, da luminosidade de Cabo Frio e de Olinda.
⇒ Gosto de mulheres vestidas de branco e azul marinho. Blusa azul de seda com mangas compridas e saia branca. Ficam charmosas e bem femininas.
⇒ Gosto do Altíssimo e Bom Senhor que nos inventou a todos e mora no mais íntimo de mim mesmo e anda carinhosamente acompanhando meus passos.