Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Outubro 2012

I. LEITURA ESPIRITUAL

Inabitação e divinização

 

Luz tabórica e conformação ao Cristo da cruz

 

Continuamos neste número nossas reflexões sobre a vida espiritual. Já examinamos  algumas fontes dessa vida no Espírito. Hoje, queremos nos deter no tema da inabitação e da divinização do ser humano. O Espírito vem morar no coração do discípulo e nele produz sua “divinização”. 

 

1. Nada mais urgente do que ser do Senhor, completamente do Senhor e deixar que o tempo da vida seja gasto para que os jogados à beira da estrada possam levantar-se e serem levados aos albergues onde serão gente, gente de pé, gente amada. Perder-se no adorável mistério de Deus e viver um amor sem sombras. Felizes os cristãos e religiosos que levam uma vida intensamente espiritual: fidelidade na oração de intimidade, escuta da Palavra, seguimento de Cristo, delicadeza de consciência. Todos esses “expedientes” nos levam ao tema da habitação do Espírito na vida de cada um.  Ao longo da caminhada de peregrinos pobres, na fidelidade à voz do Senhor, vamos nos dando conta que somos  habitados pelo Espírito que nos queima, ilumina e diviniza.

2. O Espírito Santo vem habitar no coração do cristão e aí forma  Cristo (cf  Gl 4, 19), tornando esse coração templo de Deus, casa do Pai, do Filho e também sua habitação (cf.  Jo 14,23 e 17). Sim, a vida espiritual não consiste meramente em exercícios piedosos mais ou menos bem realizados. Seu mistério: “Cristo em vós, esperança da glória”( Cl 1,7). Quando tomamos a decisão de seguir o Senhor, Cristo não é mais exterior a nós, não é somente um mestre a ser seguido no caminho para o Pai,  mas ele está em nós.

3. “Certamente, seguimos a Cristo, encontramo-lo de muitos modos. Ele, no entanto, é presença contínua em nós, em nossa profundidade pessoal, em nosso coração.  Quando ouvimos sua palavra, ela permanece em nós, seu corpo e seu sangue, que no corpo místico se tornam nosso corpo e nosso sangue (Jo 6,56)  fazem de nosso corpo o templo de Deus.   Temos dificuldade de exprimir com palavras humanas essa presença fiel e contínua do Cristo que nos visita. Como exprimir essa presença fiel e escondida? Como dizer que ele está em nós – “mais íntimo do que nossa própria intimidade” – e, contudo, afirmar também que ele nos visita como Verbo? Como dizer que é o Esposo ao qual nos entregamos e ao mesmo tempo o Esposo que procuramos chorando, na saudade de encontrar seu rosto? Somente um linguajar aparentemente contraditório, linguagem de amor,  poderá significá-lo e indicá-lo… Mas sem explicação”   (E. Bianchi.p. 48).

4. O cristão não é somente alguém que tenta fazer a vontade de Deus, observar sua lei, mas alguém que, antes de tudo, avalia a qualidade de sua fé  ao reconhecer a graça de Deus que está nele. Paulo pede aos coríntios: “Examinai a vós mesmos se estais na fé. Provai-vos a vós mesmos. Não reconheceis que Jesus Cristo está em vós?” (2Co 13,5). Ter a fé cristã para Paulo é operar  esse reconhecimento, ter a consciência da presença de Cristo em nós. Tal aspecto é fundamental para a vida espiritual. Muitos cristãos não têm consciência dessa nobreza. Pensam que tal é reservado para os místicos. Devemos dizer que em vários lugares do Novo Testamento aparece a afirmação. Cristo vive no coração do cristão (Gl 2,20) e cria comunhão  com  Deus, o Pai (cf Jo 14,20 e 17,23).

5. “Evidente que esta ‘incorporação no Cristo’, esta incorporação do Cristo no cristão é a grande obra do  Espírito Santo  (“ o outro Paráclito”) que manifesta como fruto do seguimento de Cristo o fato que Deus habita no cristão e o cristão em Deus, nisto consistindo o ágape, o amor.  O Espírito derramado em nossos corações  como caridade (cf  Rm 5,5)  faz do cristão uma sarça ardente, na qual os outros homens podem contemplar a figura  no amor que os cristãos sabem viver. “Verifica tuas entranhas: se estão repletas de caridade, então o Espírito de Deus está em ti” (Agostinho)  (E. Bianchi, p. 49).

6. Podemos sentir melhor o que foi dito quando contemplamos a postura dos mártires quando entregam sua vida ao Senhor. O mártir testemunha que o amor vivido por Cristo é uma amor que vai ao extremo, que o  cristão pode viver por graça:  sua morte  pode ser vivida como um Páscoa e o dom de sua vida por seus irmãos é razão pela qual vale a pena morrer. Felicidade, a mártir romana, no momento de morrer  dirá: É Cristo que sofre em mim”.

7. Inabitação e divinização… Duas realidades últimas da vida espiritual. Finalidades da vida espiritual: ingressar no reino dos céus, participar da vida eterna, tornar-se Deus. A finalidade da vida espiritual foi expressa de várias maneiras. O Oriente sempre gostou de falar da aquisição do Espírito Santo, ou da divinização. Desde o tempo de Santo Atanásio, o adágio é o seguinte: “O homem é um animal que tem a vocação de se tornar Deus”, ou então “Deus se fez homem para que o homem viesse a se tornar Deus”. “O cristão é feito stravrophore  (aquele que carrega a cruz  no seguimento de Jesus)  para se tornar pneumatophore (portador do Espírito, seu templo, inabitação) até participar da natureza divina (cf. 2Pe 1,4). Acontece, então, a divinização do homem que ele que não é resultado de suas próprias forças, mas operada no homem por obra do Espírito Santo que derrama em nós o amor (ágape) até fazer de nós Filho de Deus, o Crucificado que perdoa os inimigos e pede que todos sejam salvos” (E. Bianchi, p.  50).

8. O Ocidente, hoje, tendo reencontrado a força e o sopro do Espírito, ou seja  fazendo um equilíbrio entre cristologia e pneumatologia, aproxima-se da tradição oriental. Deve-se dizer, no entanto, que no Ocidente, preferiu-se ver a finalidade da vida espiritual  na imitação de Cristo, na conformação com ele na cruz, no seu seguimento até à ressurreição. O Oriente acentua a obra do Espírito Santo, enquanto que o Ocidente insiste na atração do Cristo crucificado. A primeira é interpretada como luz da transfiguração no semblante do santo, a segunda conformidade do santo que se tornou  muito semelhante a Cristo. Poderíamos dizer que a vida espiritual  tem como finalidade a salvação obtida  pelo seguimento de Cristo graças às energias do Espírito.

9. Nesse contexto, Enzo Bianchi coloca lado a lado a morte de Antão, o pai dos monges  e a estigmatização de Francisco de Assis. Segundo Santo Atanásio, o rosto de Antão tornou-se luminoso graças às energias da transfiguração. No caso de Francisco de Assis, dá-se o dom dos estigmas. Os dois foram marcados pela glória do Espírito Santo, mas de modos diferentes: a luz tabórica e os  estigmas.

Obs.: Nesta reflexão seguimos de perto o texto de Enzo Bianchi sob o título de La vie spirituelle chrétienne, in Vie consacrée 2000, n. 1, p. 35-52.

Para a reflexão em grupo:

● O que mais chamou sua atenção na leitura deste tema?

● Conformar-se com o Cristo, de modo especial com o Cristo, que dá a vida pelos outros ou abrir-se ao Espírito, artífice do homem novo? Os dois? Como inteirá-los na descrição de nossa vida espiritual?

● Que Paulo quer dizer quando afirma: “Não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim?”

II. JANELA ABERTA

A fé religiosa e a prevenção de doenças

 

A revista “Veja” de 10 de outubro de 2012 publicou entrevista com o psiquiatra americano Harold G. Koenig. O médico afirma que as diferentes formas de religiosidade podem ser relacionadas com a prevenção de doenças cardiovasculares e hipertensão. A “espiritualidade” ajuda o ser humano a ter saúde. 

 

Leigos, religiosos e sacerdotes temos a ver com a realidade da doença grave e da iminência da morte. Esse momento da passagem, precedido por uma enfermidade mais ou menos longa é sempre delicado. Vemos hoje, nas congregações religiosas, tanto masculinas como femininas, casas que são preparadas com recursos para abrigar doentes gravemente doentes e pessoas muito envelhecidas. A religião, de modo particular a fé cristã, não é terapia individual ou grupal.  Os seguidores das religiões querem, antes de tudo, prestar um delicado culto de homenagem Deus de toda beleza e de toda generosidade. Ao lado do  “amarás o Senhor de todo o teu coração, de toda a tua mente e de toda tua alma e ao próximo  como a ti mesmo”, Harold G. Koenig afirma, no entanto, que há uma relação significativa entre frequência da prática religiosa, boa saúde e longevidade.

Três fatores influenciam a saúde de quem pratica a religião. O primeiro deles é o significado que essas crenças atribuem à vida. Elas orientam decisões diárias, o que contribui para evitar o stress. O segundo fator está ligado ao apoio social. As pessoas convivem com comunidades que acreditam nas mesmas verdades e oferecem suporte emocional e, por vezes, mesmo financeiro. O terceiro elemento é a influência que a religião tem na formação de hábitos saudáveis. Os religiosos tendem a ingerir menos álcool e quase sempre têm tendência a não fumar. Bem provavelmente não assumirão comportamento sexual de risco. Não manterão relações com vários parceiros. Tudo isso faz com que vivam mais, tenham mais saúde.

Segundo Koenig, uma pessoa que, desde a infância e adolescência, pratica uma fé tem grandes benefícios. Perguntado a respeito dos efeitos positivos em alguém que começa a prática a fé em idade adulta, respondeu: “Quem se torna religioso numa idade mais madura também se beneficia, especialmente dos aspectos psicológicos e sociais, a pessoa ganha apoio da comunidade, esperança e interlocutores afinados com seu jeito de ver o mundo. A consequência  é a melhora da qualidade de vida”.

Não se trata apenas de se dizer “espiritualizado” e não fazer nada. É preciso ser comprometido com a religião para gozar seus benefícios: levantar cedo para ir ao culto, fazer parte de uma comunidade, interessar-se pelos outros, cultivar a interioridade (leitura das Escrituras). “As crenças religiosas precisam influenciar sua vida (a do crente) para que elas influenciem  também sua saúde”.

Os que seriamente praticam uma crença, segundo estatísticas mencionadas na entrevista, sofrem menos de stress, de disfunções cardiovasculares e  hipertensão. “O stress influencia as funções fisiológicas de maneira já muito conhecida e tem impacto em três sistemas ligados à defesa do organismo: o imunológico, o endócrino e o cardiovascular. Se esses sistemas não funcionam, ficamos doentes. A religiosidade põe o paciente num outro patamar de tratamento”.   Observação curiosa do  psiquiatra americano: “Pacientes infartados que são religiosos têm menos complicações após a cirurgia, ficam menos tempo internados e, claro, pagam contas hospitalares mais baixas”.

Observação interessante que aparece na entrevista: parece que os doentes, segundo estatísticas, gostariam que os médicos falassem das coisas espirituais, da religião.  Há médicos que conseguem fazê-lo com habilidade, respeitando a religião do outro. Os médicos podem facilitar o acesso de um sacerdote ou pastor, se o paciente quiser, e isso colocará este último num universo de maior serenidade interior. Há médicos que se recusam a fazer tais propostas. Dizem que uma coisa é a medicina,  rígida em seus princípios e outra  a religião que lhes parece muito vaga. A entrevistadora colocou a seguinte pergunta: “Como o médico deve falar de religião com o paciente?” E Koenig: “É mais simples do que parece. Só de perguntar ao paciente quanto a religião é importante na vida dele, o médico está abrindo o caminho para atender suas  necessidades espirituais. O paciente deve sentir-se confortável falando sobre esse assunto com o médico. O médico pode, naquele momento mais especial,  tentar saber das decisões que um  paciente terminal espera dele em situações-limite. Pode descobrir se o paciente terminal quer ser ressuscitado em caso de parada cardíaca, se deseja receber  tratamento extenuante prolongado ou se prefere não estender o sofrimento. Ajuda muito o médico puxar o assunto com o paciente sobre o que ele pensa a respeito de milagres ou se quer receber orações. O paciente  tem de estar seguro de que o médico não vai ignorar ou fazer pouco-caso de suas carências espirituais”.

Até que ponto nossa prática da fé tem nos ajudado no campo da saúde?

III. CRÔNICA

Um certo senhor Vítor

 

Muitos chegaram a conhecer o “seu” Vítor no quarteirão e no bairro. Era um desse muitos aposentados vivendo (ou sobrevivendo) com uns trocados de pensão. (Quando é que os aposentados terão um reajuste?) Ele, como tantos outros aposentados, andam por aí, de um lado para o outro. Seu Vítor morreu e foi enterrado num dia de muito calor com a presença de uns poucos parentes e muita gente do bairro.

Vítor andava de bermuda e camiseta o tempo todo. Tinha uma meia dúzia dessas camisetas bem cavadas e umas três ou quatro bermudas. Calçava chinelos de dedo. Só usava calça e camisa quando ia à Missa aos domingos, sempre no primeiro horário, às 6h30 … Ou, então, quando participava das procissões do Senhor Morto e de Corpus Christi.

Frequentava a barbearia do Nando.  Aquele era, propriamente falando, seu domicílio. Encontrava ali muita gente. Ali era um espaço de comunicação, de atualização das novidades do “pedaço”.  Sim, por vezes, pegava uma vassoura e juntava os cabelo que iam caindo da cabeça dos fregueses cortados com habilidade pelo Nando. Por vezes, enfiava a cara num jornal de três ou quatro dias atrás. Diga-se de passagem que na barbearia do Nando, as revistas eram muito velhas… algumas já com dois anos… rasgadas pelos garotos pequenos que choravam aos berros… Por vezes, a gente começava a ler uma coisa interessante e, de repente, a página da continuação não existia mais…

Passava também, ao menos, dia sim dia não, no botequim do espanhol.  Tomava um café, um refrigerante e, de quando em vez, pedia uma cachacinha…

Estando por ali via algumas senhoras, suas conhecidas, com sacolas pesadas com as compras que haviam feito na feira ou no armazém.  O seu Vítor se oferecia para levar as sacas e bolsas até a porta do prédio ou da casa das ditas senhoras.  Algumas delas, de quando em vez, lhe davam um pote com doce de abóbora com coco ou doce de mamão verde.

Um dia ele desapareceu. Não preveniu a ninguém. Um sobrinho mais aquinhoado, morando numa cidade vizinha, ficou sabendo que se queixava de ardência na bexiga. O sobrinho veio buscá-lo para levá-lo a um médico especialista no assunto. Ficou-se sabendo que ele teve que se submeter a uma delicada operação da próstata. Tudo havia se passado da melhor maneira e o tumor não era maligno. Um belo dia, para gáudio de todos os seus amigos, voltou e  retomou a sua rotina:  conversas na barbearia do Nando, uma cachacinha no botequim do espanhol, prestação de serviços às senhoras… Esperando um doce de abóbora com coco, é claro.

Seu Vítor morava no quarto dos fundos da casa de um sobrinho. Era o quarto com banheiro e uma varandinha.  Um dia a mulher do sobrinho estranhou que ele não tivesse passado para lhe dizer bom dia. Ela abriu a porta que nunca ficava trancada. Encontrou-o morto no banheiro com as unhas roxas. Morreu de infarto. Pensou-se, então, no enterro. Seus amigos, ao saberem da notícia, ficaram profundamente consternados.  O Nando da barbearia fechou o comércio, encomendou uma coroa  feita com aquelas flores que se chamavam ou se chamam saudade. O Padre  Joaquim fez a encomendação do corpo com direito a água bênção e incenso. O espanhol do botequim, quando viu seu Vítor no caixão coberto de flores, teve um convulsivo ataque de choro. Muitas senhoras souberam de sua morte e vieram rezar um terço antes da encomendação.  Pouco tempo depois, no dia da Missa de mês, o Nando colocou uma placa na barbearia com os seguintes dizeres:  Ao querido Vítor: nosso amigo e amigo desta casa.

Muitos de nós conhecemos pessoas como o seu Vítor que andam por aí  e enfeitam a face da terra.

IV. E A FAMÍLIA, COMO VAI?

Quando se cria uma família? (I)

 

Estamos todos profundamente preocupados com a família. Levantamentos e estatísticas estão a dizer que um grandíssimo número famílias é constituído da mulher e do filho ou dos filhos.  Não podemos deixar de  nos empenhar em ajudar a família a se solidificar.

 

Tudo começa com o casal

Tudo começa com o casal, ele e ela. Quanto mais sólido e mais fecundo for o casal, mais sólida e mais fecunda será a família. O que está por detrás da realidade do casal e da família é o amor, a vontade de sair de si, o desejo persistente de estar voltado para o outro.  Na verdade, quando um rapaz se “encanta” por uma moça, e vice-versa, um e outro sentem a urgência de não pensarem em  primeiro lugar em suas coisas e nem rodopiar em torno de seus pequenos e miúdos interesses. O outro é mais importante. As pessoas se conhecem e intuem que podem se entregar uma à outra na confiança irrestrita. Esse amor dos começos tem perfume de paixão (ou de uma certa doença que se chama paixonite). Na medida em que vão se conhecendo, ele e ela, fazem um projeto, traçam as linhas de um amanhã juntos.

Um texto, preparado para os casais das Equipes de Nossa Senhora do Pe. Caffarel, assim se exprime: “Lembremo-nos do estado de ‘graça’  em que ficamos quando nos conhecemos. A solidão e a incerteza do futuro despareceram porque uma pessoa nos escolheu, nos amou e nos deu segurança de que tínhamos necessidade para enfrentar a vida, para curar o passado. Isso nos levou a nos examinarmos em profundidade com o desejo de oferecer nossa verdade ao outro. O outro, por sua vez, nos ofereceu seu tempo, seus pensamentos e essa correspondência de amor parece-nos um dom imerecido.  O mundo encheu-se de significado e nossa vida se unificou” (Ser família na Igreja e no mundo,  Vozes, p. 48).

Importante esse encontro inicial, ou esses encontros iniciais. Não podem ser postos em dúvida quando de fato aconteceram. E os dois unem seus destinos. Cria-se uma nova família vivida com as famílias de origem em encontros regulares. Algo novo vai surgindo porque tanto ele quanto ela deixaram pai e mãe…. e começaram a se dar conta de que algo novo crescia: o laço conjugal. Os filhos vão dar rosto de família ao casal. Casal, suas famílias, os filhos, as pessoas com as quais a família convive.  Tudo vai robustecendo o casal.

No meio da caminhada, muita coisa foi acontecendo. Voltemos ao texto das Equipes de Nossa Senhora: “No decorrer da caminhada, passamos, talvez, por crises conjugais às quais se juntaram, quem sabe, problemas no momento da adolescência-puberdade das crianças; tivemos também problemas de saúde. Depois veio o tempo da dispersão dos filhos: às vezes, a casa se enche de filhos e netos,  às vezes, fica vazia. O círculo se fecha e voltamos a ser o casal que era éramos no começo,  mas com uma bagagem de amor maior, com uma noção mais positiva do sofrimento, com um conhecimento mais profundo do mundo” ( Ser família…, p. 49).

No começo de tudo, o casal,  durante o tempo todo o casal, mais tantos e tantas, depois novamente o casal. O fundamento da família inegavelmente é o casal.

O casal, depois que os filhos se foram, viverá uma nova fase de seu amor. Ele e ela aprenderão a descobrir novas paisagens, a escrever  novas páginas de um bem-querer marcado pelo companheirismo. Essa solidão a dois pode ser rompida pelo desaparecimento de um que precede o outro no encontro com Deus.  Os dois voltam a ser um.

A família é uma realidade de camaleão.  O importante é entrar na corrente do amor  que é vivido no meio de certezas e receios, de vaivéns, de conflitos e de esperanças… Mas sempre o amor de um casal como base de tudo.

A família começa a existir quando nasce um novo projeto

Ele e ela, cada um com sua história, suas trajetórias, suas luzes e suas sombras. O amor de um homem e de uma mulher é o encontro de duas memórias históricas. Cada um traz tudo aquilo que vivenciou anteriormente. O que viveu de bom e de menos bom. Cada um traz as marcas de sua família:  uma família cristã ou não, um deles é filho de mãe solteira, um teve traumas violentos na adolescência, outro teve até vontade de se consagrar a Deus na vida religiosa. Agora, aos poucos, no dia a dia, nas conversas, nos gestos de acolhida  os dois vão construir um novo projeto, a  sua  família, diferente da família dele e da família dela. Não quererão reproduzir o passado, mas saberão recolher em suas histórias uma cesta de frutos saborosos com os quais forjarão a nova família: o modo de festejar o Natal, o senso de carinho para com os idosos, as reuniões familiares com música e alegria… Ninguém impõe nada a ninguém.  Ninguém submete ao regime da família do outro ou da outra.  Há uma maneira nova de família que surge.

Tudo começa com o amor do casal…

Obs.: Este tema da criação de uma família terá continuação em nosso número de novembro de 2012.

V. UM CERTO FRANCISCO DE ASSIS

Trabalhar sem perder o espírito da Santa Oração

 

Aqueles irmãos aos quais o Senhor deu a graça de trabalhar trabalhem fiel e devotamente, de modo que afastando o ócio que é o inimigo da alma, não extingam o espírito da santa oração e da devoção, ao qual devem servir as coisas temporais (Regra Bulada, V)

 

O trabalho é graça. Que belo o espetáculo dos trabalhadores em ação. O médico no santuário de seu consultório  examina resultados de ultrassonografias, verifica a pressão, mede a temperatura, ausculta os pulmões. Trabalha fielmente. Permanece no consultório ou no hospital horas a fio. Pensa, pergunta por sintomas, receita, previne… A mulher, esposa e mãe,  trabalha em casa.  Há esse trabalho de todo dia cansativo e rotineiro. Mas ele tem sentido. Ela  é, de alguma forma, a alma da casa. Gosta também de fazer bolo de amendoim e torta de maçã nos dias de festa. Aquela outra senhora pobre, bem pobre, que é gari. Varre as calçadas do centro da cidade todos os dias de madrugada.  Ajunta folhas e lixo com a vassoura numa pá e depois coloca em recipientes de lixo amarelos. Todos estes trabalham com as mãos, com o coração. Pensam na qualidade de seu labor. Cansam o corpo e a mente. Enfeitam a terra.

Os homens são os jardineiros da terra…  São formiguinhas trabalhadeiras.  Alguns, talvez, sejam displicentes cigarras que cantam o tempo todo e esquecem a dureza do labor.

O frade levanta-se. Imediatamente procura o rosto do Senhor, a presença daquele que está sempre perto. Há uma explosão de louvor  e um grito de  socorro. Tem diante dos olhos as horas  do labor. Mas tudo começa com essa sintonia com o Senhor. E vem o trabalho e quanto trabalho! Trabalho em casa. Trabalho pastoral. Trabalho de caridade.  Trabalho manual e trabalho intelectual. Trabalho sem a primeira preocupação do lucro, do guardar, do reter. Trabalho para fugir da ociosidade, da vadiagem, do ir e vir, de lá para cá e cá para lá… Simplesmente  pelo  ir e vir. Trabalho feito com disciplina e persistência. Trabalho para fugir da ociosidade que é a mãe de todos os vícios.

O frade desperta e coloca seu olhar no olhar do Senhor. Há compras a serem feitas, doentes a serem visitados, exortações a serem  dirigidas a uns e outros. Tudo feito com zelo, como se fosse a única coisa que tivesse que ser feita.  Tudo feito com a qualidade do servo inútil que faz bem e muito bem o que tem que fazer e não busca salário, nem recompensa.

Aqui e ali uma pequena pausa para um salmo ou um olhar para o Senhor. Um dia especial para o retiro, para saborear os salmos, escutar a palavra e se jogar mais explicitamente nos braços do Amado.  Nada de ativismo. Não somos funcionários de uma administração descontrolada e louca. Trabalhamos com a mente, o coração e as mãos. Há esses frades que vão pelo mundo, há esses que plantam rosas, preparam a comida, ensinam nas universidades… Sempre cuidando de não perderem o espírito da santa oração e da devoção.

“A intuição teológica de Francisco diz que o trabalho é um dom para o homem enquanto inserido na obra da criação e da redenção do mundo:  o homem com seu trabalho  imprime um selo cristão na atividade que transforma e melhora a vida  humana. O trabalho é continuação e  acabamento da criação que Deus confiou ao homem: é vocação e serviço. O trabalho é graça  na qualidade de coparticipar do “plasmar” da criação, própria de Deus (…). Todos vivemos esta graça: somos chamados para seremos mandados, para realizar uma tarefa, um trabalho, uma obra que somente nós podemos fazer e que ninguém fará senão nós. O trabalho cotidiano situa-se nesse plano e somente assim pode se tornar expressão de nossa liberdade e do nosso amor. Se não for resposta à graça que nos chama à vida, acabará sempre, inevitavelmente por cair numa busca de afirmação de nós mesmos e de nossas capacidades, acabará por ser coisa nossa, possuída como outras coisas e, no final das contas, fonte de tristeza e de  escravidão, peso insuportável de nosso eu egoísta e egocêntrico” (Francesco  de Lazzari,  Il Testamento di San Francisco. Meditazioni, Ed. Porziuncula, p. 239-240).

E quando termina o dia, o olhar do franciscano canta um pequeno hino de gratidão ao Doador de todos os dons, também do dom do trabalho.