Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Novembro 2021

I. Santos do Céu e da Terra

Santos são  homens libertados de si mesmos

 por se terem dado aos outros.

Ambroise-Marie Carré,op

 

            Os primeiros dias de novembro  trazem à nossa mente a solenidade  bonita de Todos os Santos. Somos levados a louvar o Senhor  pela maravilha que opera nos homens.  A santificação do homem é sempre obra do Artista divino com uma mínima colaboração de nossa parte.  O que nos cabe é  deixar o Escultor agir. Ele o fará na medida em que encontrar sede em nossa garganta e um efetivo desejo mudar o coração, ou seja, “deixar o mundo”, ao que  nos prende ao que é debaixo. No final da caminhada deveríamos  poder experimentar a convicção de estarmos prontos para entrar na sala do banquete e das núpcias.  Insisto: o santo é obra da graça.

Santos, pessoas esvaziadas de si mesmas e abertas ao  Senhor e aos irmãos.  Léon  Bloy  afirmava:  “No fundo há apenas uma tristeza, é de não ser santo”.  Na verdade, só  Deus é santo. Três  vezes santo.  Fornalha de dom.  Deus não cabe em si mesmo. Ama o que cria  especialmente os homens que inventa à sua imagem e semelhança.  Ele opera no coração do homens. Charles Foucauld  dizia que  Deus é mestre do impossível.

O santos nos fazem sonhar:  podemos realizar o sonho da santidade. Não de uma carolice, de uma santidade açucarada, mas marcada por uma imensa bondade.  Todos esses santos da caridade.  Nos estimulam: Teresa de Calcutá e irmã Dulce da Bahia estão a nos dizer  que sonho é realizável, que podemos ir além de nossas posturas acanhadas e pequenas e derramar  bem-querer.

Santos e santas foram aqueles e aquelas que, através do tempo da vida, buscaram contemplar o  Mistério, um Deus que  mora no seu interior no mais intimo.  Oração não de frases e sílabas, mas exposição do seu interior a um  Deus companheiro de todos os  dias e de  todas as estações da vida.  Viveram, na força do alto, perguntando:  “Senhor o que queres de mim?” ou  “Faça-se em mim segundo a vossa Palavra” “Minha alma tem sede do Deus vivo”.

São pessoas profunda e alegremente pobres.  Viveram com digna sobriedade, não colocando seus tesouros onde a traça pode corroer.  Pessoas simples sem necessidade de ficar inventando passarelas.  Pessoas que sempre espelham num Deus pobre que nasce  na fragilidade de uma criança e no abandono de um  condenado sem motivo.   Pobres de coração e ricos do Senhor. Que  belo viver assim!”

Os  santos têm qualquer coisa de simples, de “infantil”, das crianças. Estas improvisam a vida. São espontâneas.  Não falam buscando vantagens. Perguntam com confiança a um velho: “Por que você  tem essa barba branca?”  “Mãe, por que esse passarinho  morreu?”. Chega à minha um   Francisco  de Assis que no momento de morrer ainda tem vontade de  comer  um doce de amêndoas que “Fra  Jacoba” de Roma sabia muito bem fazer.

Ficamos sempre impressionados com a decisão desses que chamamos de  santos e santas de ir até o fim.  Não são os que dizem Senhor,  Senhor…  Há  uma meiguice nos santos, mas há também  algo de firmeza em suas vida. Vem sempre à nossa mente a figura de João  Batista. O santo não  se mostra conivente com a mentira e a duplicidade.  Reage. Não é covarde.  Alguns chegam a derramar o sangue por causa do amor ao Senhor.  Onde ficaram os profetas?

Os santos  experimentam necessidade  de criar paz, construir a paz, fazer com que as pessoas deponham as armas, sem   se deixarem fazer de tolos.  São capazes de perdoar.

A convivência com Cristo vivo, ressuscitado  ao longo do tempo da vida leva à santidade.  Os santos podem dizer, no fim:  “Já não sou eu que vivo, é  Cristo que vive em mim”  Só lhes resta o face-a-face.


Imagem: Duccio di Buoninsegna

II. Finados é todo dia

          LÁGRIMAS, FLORES E APERTOS NO CORAÇÃO

O acompanhante de um doente não tem muito que fazer: apenas comunicar sua própria presença amorosa. É esta proximidade que arranca o doente das mais penosas das sensações: a de estar abandonado, excluído do mundo dos vivos.

Luciano Manicardi 

Nos primeiros dias de novembro, antes da pavorosa pandemia, nossos cemitérios era ocasião que nossos cemitérios ficavam bonitos, belamente enfeitados, feito jardins. Era quase só neste dia em que grande número de sepulturas eram enfeitadas. Era a lembrança dos falecidos, data dos finados: dia de saudade, quase sempre serena, mesmo que lágrimas mornas e calmas descessem rosto abaixo. Floristas armavam bancas perto dos cemitérios. Pessoas também traziam flores. de seu quintal. Todos sempre sofremos com a partida de seus entes queridos, mas lá por dentro, acolhemos o acontecimento com serenidade e fé. Os cristãos esperam uma plenitude de vida. De repente, tudo mudou. Um grande número de campas estão ricamente enfeitadas todo o tempo, mesmo estas covas criadas na última hora em. terrenos próximos aos outros sepulcros ou alhures. Os cemitérios estão sempre floridos. Finados  é todo dia.

Sim, na verdade finados passou a ser todos os dias. A morte tornou-se um fato cotidiano, quase banal. cotidiano demais, fato numeroso, trágico, apavorante, amedrontador. Uma terrível guerra sem tanques, sem armas, sem força aérea, sem trincheiras, sem inimigos claramente detectáveis. Nem condições temos de erguer barricadas. Há guerra vacinas. Virus que atinge o pulmão e mata impiedosamente. Veio de longe.   Fabricado em outro país? Nesse tempo de exílio, de distanciamento, de não se saber o que vem, temos dificuldade, com todo respeito  a São Francisco, de falar da morte como irmã. Compreendam-me.

Não temos condições de estar ao lado dos que morrem.  As pessoas são internadas, distanciamento total com o exterior. Apenas anjos sem asas andando de um lado para o outro em ambiente clean. Médicos e enfermeiros rigorosamente vestidos até à alma. Heróis e heroínas desses primeiros anos do século XXI. Doentes monitorados em unidades de tratamento intensivo ou entubados. Os parentes são comunicados do óbito, providenciam o sepultamento, sem velório. Rápidas preces com caixões fechados. Tudo reduzido ao mínimo. O corpo  no carro funerário e as coroas de flores  de todas as cores que são “sacramentos” da saudade e vão enfeitar mais ainda o campo santo.

Temos em mente acontecimentos ligados a conflitos bélicos. De ontem e de sempre. Jovens convocados para a guerra. Aprendiam a caminhar em terreno alagado, a atirar, a se arrastar pelo chão,  a suportar sede e fome. Matavam ou eram atingidos pelo inimigo, ficavam sem uma perna, um braço, ou seus corpos eram estraçalhados, estilhaçados, incendiados. Uns voltavam para suas famílias, outros morriam sem deixar rastros deixando dor imensa no coração dos que amaram e uma ferida difícil de se fechar. Um dia a guerra terminava. Podia demorar.

Quando vai terminar essa  guerra da covid que mata como a guerra mata ou mais ainda?. Guerra universal. Todos recolhidos. Pobres e miseráveis, ricos, poderosos e famosos, mendigos esqueléticos e robustos atletas. Como é difícil chegar para todos o armistício da vacina?  Quando chegará o dia a libertação? Quando poderemos ir para a Avenida Paulista, para a Praia da Boa Viagem no Recife, para o Aterro  do Flamengo e as vielas da Rocinha, mandar parar o trânsito e abrir os braços, cantar o fim da terra do exílio, e consolar os que tanto sofreram. Fazer uma festa como se faz no Reveillon, estourar  um espumante e dizer  “Graças a Deus e aos homens e mulheres de boa vontade”.

Não somos seres derrotistas. Temos fé na vida. Na terra do exílio as quaresmeiras floriram, deixaram de florescer e reapareceram com tons lilás mais luminosos. Os passarinhos não deixaram de namorar, de fazer seus ninhos e ajudar seus filhotes a voar. Crianças continuaram nascendo Lutamos pela vida. Temos dentro de nós uma chama que arde, talvez meio fraquinha nesse momento e que se chama esperança. Por vezes, é verdade, cobrimos o rosto com as mãos  e dizemos: “Senhor, não nos abandones, estamos quase no limite de nossas forças interiores. Ouve nossos apelos”.

E as cenas são doídas e doloridas. Houve casas em que mãe e filhos morreram, presídios e  residências coletivas tiveram baixas acentuadas, no meio de tudo isso assaltos a mão armada, negros morrendo em  supermercados ou nas ruas, mortos e mortos em comunidades onde  o tráfico manda e desmanda. Mortes. No meio dessa pandemia como organizar um mundo diferente?  Meu Deus, o que será dessa aldeia chamada planeta terra?

Prisioneiros dentro de casa, máscaras, trabalho on line, aulas pela telinha, falta de conviver livremente, as crianças descobrem que o mundo é feito de pessoas com máscaras, os encontros presenciais que podem aquecer  o coração não existem…  “quando dois ou três estão reunidos em meu nome” é diante da telinha ou da telona.

Demora demais esse tempo de privação e de provação. Que o Senhor, Altíssimo e belo  Senhor injete em nossos corações esperança e faça chegar o mais rapidamente o tempo dos abraços. e das festas. Finados é todo dia!

Aqueles que se foram

Eles estavam animados pelo sopro da vida.

Cantavam, lutavam, viviam vigorosamente.

Eram nossos companheiros no dia a dia.

Deram o que puderam dar.

Não foram nem anjos nem demônios.

Eram pessoas que conviviam conosco,

que nos deram seu tempo, sua atenção, seu afeto

e o que tinham de melhor.

Quando levamos seu corpo ao pó da terra de onde viemos

era um pouco de nos mesmos que com eles enterrávamos.

Em espírito e em silêncio acompanhamos sua última viagem.

Quem sabe, ao sairmos do cemitério,

o Senhor tenha deixado para nós um pouco do sopro deles

para que permanecessem, de alguma forma,

no templo de nosso coração e nos jardins da saudade.

Vivem em Deus e perto de nós.

III. Sacramento dos Enfermos

Ternura de Deus na provação da enfermidade 

               A enfermidade e o sofrimento estão entre as provações mais doloridas que deve afrontar toda existência humana. Na doença a pessoa faz a experiência de sua finitude e de seus limites.

No Antigo Testamento, a doença se apresenta num estado de fraqueza e de fragilidade  que espontaneamente levanta a questão  do pecado.  Conhecemos salmos que  descrevem  o estado  do doente,  bem como os salmos de penitência.  A oração desliza imperceptivelmente de um registro para o outro., do mal físico para o desconforto  espiritual e vice-versa.  Na concepção do salmista a doença chama atenção para um outro mal, abrindo os olhos dos que se escondem nas dobras  de toda existência. “As desgraças alertaram o meu espírito…perdoa  todos os meus pecados” (Sl 25, 17-18).  Todo doente vive essa experiência do salmista.  A doença cai como uma fatalidade.  O sofrimento que  o acompanha o fragiliza no relacionamento consigo mesmo, com os outros e com  Deus.

A  doença agride e  solapa a unidade subjetiva da pessoa, provocando divisão em si mesma.  Obedece a uma lei obscura que escapa a todo controle: ocorre um mal impossível de controlar e cuja origem  escapa. Ao final dos exames médicos aos quais se submete, o doente percebe  seu corpo como um obstáculo, um objeto dissecado como  objetos  exteriores.  Esta ruptura interior engendra  também uma crise de comunicação  com os que os rodeiam. Apesar de todas as atenções prestadas o doente sente sozinho para enfrentar a doença.  Entra em relacionamento de dependência cada vez maior, sofrendo por estar ocupando o tempo dos outros e de se sentir inútil.   Faz a experiência de sua finitude. De um jeito ou de outro, a doença sempre deixa pressentir  a realidade como um “destino”  sobre  o qual não se tem controle  e finalmente lembra a realidade da morte.  Confrontado então com a própria morte  o doente pode viver dramaticamente uma alternância  de esperança e angústia, ao sabor de momentos de melhora da  doença ou de seu agravamento que podem obscurecer o relacionamento com  Deus. 

Graça do reconforto 

Um dos primeiros efeitos do sacramento da unção dos enfermos é a graça do reconforto.  O doente  precisa ser ajudado a se reconciliar com seu próprio corpo  sentindo como um objeto que o aliena.   Por isso a importância  da unção aplicada no corpo.  Deus não  salva o homem de sua vulnerabilidade  mas em sua vulnerabilidade .A  força do Espírito dá coragem e inventividade de sorte que as forças  intactas em si mesmas se dilatem onde o corpo  mostra-se enfraquecido.   A unção encoraja as vitórias cotidianas com um corpo que sofre e fortalece a unidade  interior renovando a Aliança com  Deus.  O doente pode então descobrir em si possiblidades de  adaptação  inesperadas  prestando atenção a valores que  lhes dão “um mais ser”   (plus essere).

O mesmo se verifica  no relacionamento do  doente  com as pessoas que vivem à sua volta.  A graça do  Espírito contra  o  voltar-se sobre si  ou ainda uma utilização interesseira por parte de outrem.  O fato de estar sendo cuidado por um outro pode até mesmo levar a aprofundar os relacionamentos  pessoais com ele.  O doente descobre então o lugar  único que ele ocupa  com os que o cercam de solicitude.,  Pode até, de algum modo,  encontrar uma forma  de reciprocidade  aceitando certas atividades para as quais sente-se hábil, encontrando novos modos de ajuda com sua entourage familiar, profissional ou eclesial.   A Igreja tem também necessidade dos doentes. Por isso ela lhes pede que rezem em suas intenções.  De múltiplas maneiras e  com  muita   paciência e benevolência, a comunicação se restabelece  com a entourage numa maior autenticidade.

Por fim, o sacramento dos enfermos  permite ao doente se recompor e acolher sua finitude,  não como cega fatalidade, mas como abertura a Deus. A morte não aparece mais como um acidente de percurso que leva ao nada.  Ela faz parte da realidade humana e se abre para a eternidade. A unção dos enfermos, na liberdade do  Espírito,   coloca  quem a recebe  diante do  Cristo  curador e ressuscitado. “ Para  nós o ato de morrer  pode  dar a impressão de ser algo negativo, absurdo, inconcebível (…)  Jesus, faz do -ato de morrer o lugar e o campo privilegiado da liberdade do homem, de sua santidade e de seu amor.  Como se tivesse no poder do homem atravessar esse limite de sua vida, como se ele  pudesse se apoderar  desse  caminhar intransponível para fazer o coração de sua liberdade, o lugar onde se desenvolve sua liberdade, e pois o amor, e pois a vida. Desta forma  Jesus oferece ao homem esse inconcebível poder de oferecer sua vida e  ao perder reencontrá-la (Card.  Lustiger).  Aparentemente o homem  sofre a morte como um dilaceramento interior que lhe é imposto.  O Espírito  Santo transforma esta hora de ruptura  em momento de comunhão e de vida  Permite recapitular  toda sua existência na morte entrevista e fazer um ato de caridade.   Nessa hora se vive uma realidade   que ultrapassa infinitamente aquilo que  homem pode perceber.  O fim da vida é o momento por excelência em que cada um  recolhe  numa corbeille   sua existência e lhe dá um sentido.  Nesse momento crítico da vida de um cristão, o unção  coloca o enfermo de maneira decisiva   face de Cristo em todo o seu mistério: “ A cura  primeira e fundamental  acontece  pelo encontro  com o Cristo que nos reconcilia com Deus e cura nosso coração alquebrado  (Bento XVI).  A unção é o sacramento da ternura de Deus que atinge a cada um na obscuridade da doença.  O sacramento dos doentes  é expressão eminente da corporeidade da fé que abarca o homem em sua totalidade.

As múltiplas possibilidades de  celebração do sacramento que propõe  o  Ritual manifesta em sua prodigalidade a ternura de Deus  que se adapta às   necessidades de cada um.  O sacramento  concerne o  fiel que  atinge a idade da razão e que começa a se achar em perigo devido a uma enfermidade ou velhice (can 1004 §  1)  Dirige-se às pessoas  idosas cujas forças  declinam sem que uma doença específica  se detecte.   A  unção poderá ser reiterada  ao longo de uma doença diante do aparecimento de complicações novas.  Ao que não é “sui compos”   (consciente)  a unção pode se aplicada  se  houver razões suficientes para pensar que  o  doente se lúcido estivesse tê-la-ia pedido, apoiando-se de modo particular em sua vida anterior  marcada pela recepção dos sacramentos.   A salvação do homem passa pela carne, para além daquilo que a consciência possa compreender.  Em caso de dúvida o sacramento será administrado;

 Fonte inspiradora: L’onction des malades:  sacrement de la tendresse  de Dieu – Vincent Guibert –Nouvelle  Revue Théologique  134, 2012, p. 215-232

IV. Todos os dias a vida recomeça

            É bom saber, Senhor, que todos  os  dias vida recomeça.  A força criadora  da vida não se empalidece no labirinto  dos afazeres, nem a destroem a turbulência  de certas geografias ou a penumbra de algumas horas.  A  vida, a nossa vida, mesmo frágil e trêmula é soberana.  Pode sempre se refazer, se transfigurar, se vestir de música súbita.  A  vida parece-se à dança, humilde e fantástica que os pássaros desenham –  coisas para sabemos antes de todas as aprendizagens.

 José  Tolentino Mendonça – Um Deus que dança – Paulinas, p. 59

Nesta edição

CADERNOS DE FORMAÇÃO

Novembro de  2021

 Novembro, penúltimo mês de 2021.  Os santos marcam encontro conosco nos primeiros dias do  mês.  Somos feitos para a santidade.  Mais uma vez  o dia dos finados nesse  tempo em que a morte e os mortos passaram a constituir matéria constante dos  meios de comunicação. Novembro, encerramento do  ano litúrgico de 2021. O tempo  voa  mesmo  nesse tempo tão estranho da pandemia.

Frei Almir