Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Novembro 2012

I. LEITURA ESPIRITUAL

Ascese Cristã

 

Carregamos o tesouro da vida nova em vasos de barro (I) 

 

Continuamos a refletir sobre o tema da vida espiritual. Ao longo desse ano de 2012 temos nos ocupado das fontes  da vida espiritual. Hoje, vamos nos deter num tema espinhoso: a ascese. Ascese  vem ascender, subir. Toda subida custa, é penosa. Quem hoje fala de ascese parece falar de alguma coisa completamente fora de moda. Nossa reflexão começa neste número de novembro e será concluída na edição de dezembro. Toda a ascese tem como finalidade dilatar o amor a Deus e aos irmãos, de tal sorte que tenhamos o domínio da barca da vida na travessia do tempo, vigiando cuidadosamente o tesouro que carregamos em vasos de barro.

 

1. Na verdade, quando se decide abordar as fontes da espiritualidade convém também refletir sobre os meios e modos de alimentar a vida nova de Cristo em nós que, no dizer do Apóstolo, “carregamos em vasos de barro”. Cada forma de vida tem sua modalidade de treinamento, de ascese, de terapia preventiva. Vivemos fazendo esforços para servir a pequenos deuses exigentes. Ascese e esforço para perder peso, para ter um corpo “sarado”, esforço de economizar nosso dinheiro para poder comprar um carro, uma casa, renúncias de lazer para ter sucesso num concurso público, privação do chocolate para não engordar, exercícios sem conta para vencer nos esportes. Sem esforço não se caminha. A impressão que se tem, em muitos ambientes cristãos, é que se duvida da necessidade e da importância da ascese. Esta soa como algo de um passado que já deixamos há algum tempo: cilícios, disciplina, jejum e abstinência, silêncio, regularidade na oração. “A mentalidade corrente parece banir os valores da ascese como se eles se opusessem à alegria do Evangelho e ao primado da Graça, portanto não condizentes com a vida espiritual. Dá-se a entender que basta o desejo e a espontaneidade dos indivíduos para atingir uma meta tão elevada como a de uma intensa vida espiritual. O caminho  espiritual, no entanto, precisa de cuidados, de atenções porque é uma trilha exigente e dura. Não esqueçamos: a finalidade é ser verdadeiro discípulo de Jesus, autêntico amigo do Esposo. Trata-se de um caminho fascinante, mas exigente.  A ascese cristã nada tem a ver com afirmação de si, não é uma forma de voluntarismo fechado e orgulhoso  que faria depender o progresso espiritual diretamente do esforço individual segundo uma visão pelagiana. Também  não é uma espécie de “quietismo” que considera inútil e incoerente o esforço espiritual do discípulo” (Angelo Bagnasco,  arcebispo de Gênova,  Camminare nelle vie dello Spirito, Carta Pastoral de 2009-2010).

2. Ser filho de Deus é uma graça, mas viver na qualidade de filhos é uma responsabilidade. O principal e primeiro protagonista da vida espiritual é o Espírito Santo. Ele é a fonte de todas as fontes. Mesmo nosso pecado não extingue a vida interior. Temos confiança que ele, o Espírito, é o artífice de nossa vida interior. Não nos esquecemos da palavra de Paulo:  “Tudo posso naquele que me conforta” (Fl 4, 13). Será preciso, no entanto, deixá-lo agir. Ora, a ascese tem como finalidade facilitar o caminho para ação do Espírito: renúncia ao supérfluo, vigilância dos sentidos, cuidar de que a consciência seja delicada.

3. A vida cristã, como qualquer empreendimento humano, necessita de método, atenção, exame, exercícios, hábitos…  Precisa de ascese. Necessário cuidar das disposições para a conversão, para a vida espiritual, para o seguimento de Cristo ou para a entrega ao trabalho em prol dos outros. Vemos pessoas que foram personalizando uma forma de oração e fazendo cotidianamente esse “exercício” da oração, preparando bem a celebração da Missa, adotando um estilo generoso de entrega aos outros, tendo disciplina no trabalho e no estudo, exercitando numa maneira serena de enfrentar as dificuldades. Com esses expedientes foram se fortalecendo e  fazendo viável a ação do Espírito.

4. Enzo Bianchi lembra que o cristianismo em nossos dias tem a tendência de desconsiderar a dimensão do “combate da fé”. Sabemos que o ensinamento dos primeiros cristãos que dava grande importância ao conjunto dos expedientes que permitiam a  fidelidade à vocação. “Não vigiamos suficientemente costumes que adotamos e que, por vezes, desfiguram nossa vocação humana e cristã. A luta espiritual é elemento essencial em vista da construção de uma pessoa madura e sólida” (In  Panorama Chrétien,   março de 2005, p. 44). Trata-se de uma luta interior contra o que existe em nós e nos leva a realizar o mal. Há ações concretas que precisam ser neutralizadas: vanglória, inveja, cólera, tristeza, avareza, desmandos sexuais. E. Bianchi afirma, dirigindo-se a um correspondente: “Esta luta deverá fazer de sorte que  passes do regime do consumo para o da comunhão com Deus e com os outros”.

5. Haverá de se descobrir novas formas de ascese. Os tempos são outros. O ser humano, no entanto, é feito de um desejo de atingir as estrelas e, ao mesmo tempo, sente-se atraído pelo que é de baixo. O tempo da vida é longo e o esposo custa a voltar. Pode ser que o Senhor, em seu retorno, surpreenda alguns  sem óleo nas lâmpadas! Não existe, no entanto, uma ascese  totalmente nova. Karl Rahner escrevia: “Há que se evitar de considerar o novo e o antigo como compartimentos estanques dentro da espiritualidade cristã: o novo só é autêntico quando conserva o antigo. O antigo só tem viço quando vivido de forma nova”.

6. Há que se cuidar de não se repetir os exageros e erros do passado. As práticas ascéticas do passado eram marcadas pelo dualismo entre corpo e espírito. O corpo era sempre visto como inimigo do espírito. Conhecida a expressão “salva a tua alma”, como se a espiritualidade não tivesse que levar em conta o fato de que Deus  assumiu um corpo. A cultura dominante era que o corpo se constituía como inimigo da alma, sede das faculdades inferiores que deveriam ser submetidas ao espírito. No fim de sua vida, Francisco de Assis pediu desculpas ao “irmão corpo” por tê-lo tantas vezes maltrado… Havia a convicção de que a salvação se faria sempre pela fuga do mundo.  Assim, os religiosos eram os fadados à santidade. Vivemos um tempo de  graça quando, depois do Concílio do Vaticano II, compreendemos essa visão unificada da vida, da humanidade, do caminho espiritual. Hoje, compreendemos melhor a bondade do mundo criado. No passado se exaltou uma certa espiritualidade ‘dolorista’, exaltando o sacrifício e a mortificação. Esta é uma página definitivamente virada.

7. De outro lado  vemos a perspectiva da espontaneidade que caracteriza a cultura difusa na atual sociedade. Hoje é sempre mais difundida a ideia de que tudo é válido. “O elogio da ‘espontaneidade’  e da ‘naturalidade’ numa cultura em que a espontaneidade está colonizada e a naturalidade segue padrões de comportamento socialmente induzidos, é ingênuo. Aquilo com o que se pretende nos fazer livres e nos abrir à graça, ao contrário, nos fecha em nós mesmos e ficamos à mercê dos ventos que sopram. O fruto da falta de ascese, do imediatismo, da indefinição e da anemia de uma vida cristã sem estrutura, continuidade, nem esqueleto  também inunda  as clínicas psicológicas e favorece  os negócios da indústria farmacêutica”  (Juan Antonio Guerrero Alves, SJ,   Desintoxicarse, situarse en la paz y caminar en el bien, in  Sal Terrae 93,  p. 790).

8. A ascese faz parte da vida humana. Algumas modalidades de ascese são encontradas  nas sabedorias do mundo pagão, nas filosofias antigas e nas religiões. Vejamos algumas expressões que descrevem ou apontam para a ascese: abnegação,  humildade, renúncia, pureza de coração, despojamento, mortificação, sacrifício, privação, continência, domínio de si, combate espiritual, retidão de intenção, luta contra os instintos. Muitas destas formas de ascese podem parecer absurdas quando desconectadas de seu sentido. Quando bem situadas, todas elas e muitas outras podem  facilitar o relacionamento do homem com Deus e com os outros. Somente a partir desta dupla relação é que as práticas ascéticas ganham sentido. Os exercícios ascéticos constituem um meio para o fim. Os Padres do deserto afirmavam que uma ascese privada de amor não aproxima de Deus. A ascese é treinamento para o amor.  Não é fim, mas meio.

9. Praticam a ascese aqueles que experimentaram alguma coisa acima das coisas do presente mundo. O empenho ascético brota de alguém ter atingido uma vida nova em Cristo, ter pregustado o sabor do Reino! Viver em união com Cristo supõe encontro com a cruz. A ascese cristã não perde a referência ao Reino, nem à cruz. Os escritores espirituais e os místicos nunca dão a entender que a ascese quer como que  arrancar a graça de Deus. Não fazem uma aritmética  entre o esforço pessoal e a graça. “Podemos distinguir os movimentos  internos na ascese cristã: o primeiro nos ensina que é necessário experimentar a libertação, a saída da escravidão do Egito. Esta libertação nos predispõe para o relacionamento com Deus e acolhida de seus dons. É o tempo da conversão. A travessia do deserto pode ser vista como o tempo das dificuldades e do estresse, ou também o tempo em que Deus fala ao coração e educa seu povo. Talvez esta seja a essência da ascese: dispor-se em estar diante de Deus em adoração e pura disponibilidade, para serem levados e guiados por ele. Permanece ainda um segundo movimento não menos delicado: tomar posse da terra prometida, sempre a  partir da fé, da esperança e do amor porque continuamos vivendo nesta história. Nesse momento procuramos tornar “real” o dom recebido nesta história. Por isso, Jesus Cristo não é só modelo, como também seu Espírito  guia esse processo, nos ensina a experimentar, educa a sensibilidade  e nos leva à sintonia com a encarnação”  (Juan Antonio Guerrero Alves,SJ  p. 792-793).

10. Em seus Escritos de Teologia, VII, ed. de Madri  1967, p. 30-31,  no seu famoso  artigo Espiritualidade antiga e atual  falava de uma nova espiritualidade emergente  e assinalava algumas de suas notas:  mais mística, com mais experiência  pessoal de Deus, mais presente no mundo, de maior compromisso com as realidades temporais. Para essa espiritualidade via surgir uma nova ascética que prescinde do heroico, do espetacular que não terá o caráter do adicional e do extraordinário  mas da liberdade responsável perante o dever e dos limites que cada um precisa impor  a si mesmo. Paul Evdokimov escreveu na mesma linha  dizendo que em nossos dias as práticas espetaculares de antigamente  são interiorizadas. O heroico se oculta sob o manto do cotidiano. Afirma ainda:  “A ascese cristã outra coisa não é de um método a serviço da vida e procurará estar em sintonia com as novas necessidades. A ascese consistiria mais num descanso que se impõe, a disciplina do sossego e do silêncio, períodos em que o homem se organiza para fazer uma pausa para a oração e contemplação, mesmo no âmago dos ruídos do mundo e, sobretudo, de ouvir a presença dos outros. O jejum, em vez da maceração que alguém com ele se inflige, seria a renúncia do supérfluo, o partilhar o bem com os pobres, busca de um equilíbrio saudável” (Citado  por Juan Antonio Guerrero Alves, p. 793).

11. Ascese significa exercitar, praticar e apontar para uma aplicação disciplinada, exercício repetido, esforço para adquirir uma habilidade e uma capacidade. Os exercícios ascéticos existem para que o projeto de vida cristão não venha a fracassar  por culpa de nossa inércia. Se alguém dissesse que em nossos dias não se faz necessária a ascese significa o mesmo que dizer que não há mais lugar para a educação. Ascese e educação consistem num trabalho que alguém faz sobre si mesmo ao longo da vida. Nos primeiros anos até o começo da juventude se faz com o auxílio  de adultos e na maturidade depende de uma opção pessoal, sob a orientação da própria consciência, da coerência com o próprio projeto de vida, muitas vezes sob a orientação de um diretor espiritual.

12. Terminamos as reflexões desta primeira parte do tema com palavras do Cardeal Angelo Bagnasco, arcebispo de Gênova, em sua Carta Pastoral sobre a vida espiritual: “O asceta cristão não é aquele que desafia a si mesmo para afirmar-se aos próprios olhos e aos olhos dos outros. Está em busca de um progresso espiritual, de sua unificação interior em Cristo. Tem confiança, sem ser ingênuo: sabe que em seu coração há o desejo do bem e as inclinações desordenadas. Tem consciência de seus instintos e da fragilidade de sua vontade. Faz a experiência do pecado. Está em busca da liberdade porque sabe que, em certo sentido, não nascemos livres, mas livres nos tornamos. Por este motivo se faz necessário um longo e penoso exercício”.

Carregamos o tesouro da vida nova  em vasos de barro…

Duas grandes referências:

● Paola Bignardi, Per una grammatica dell’ascesi, in La  Rivista del Clero Italiano  4/2012,  p. 269-283

● Juan Antonio Guerrero  Alves,  SJ,  Desintoxicar-se, situar-se en la paz y caminar en el bien.  Notas para una nueva ascética, in Sal Terrae 93 (2005), p.  789-803

Obs.: Resta-nos ainda a delicada tarefa de examinar formas concretas  de ascese para nossos tempos. Fá-lo-emos  em nosso próximo número.

Questões:

● Por que nossos contemporâneos são avessos ao tema da ascese?
● De maneira muito simples e clara tentar definir o que seria uma vida cristã vigilante?
● O que mais chamou sua atenção neste texto de reflexão?

II. JANELA ABERTA

Vida Consagrada

 

Para onde o Espírito nos impulsiona?

 

Ninguém sabe com certeza. Aqui e ali surgem pistas que precisam ainda ser testadas e experimentadas. Certamente, a vida dos religiosos e religiosas está em profundíssima transformação. Dizemos que o Espírito aponta direções e horizontes. Não é fácil ver claro.  Há neblina. Há aquilo que sabemos e aquilo que virá como resposta às nossas súplicas  prementes.

 

1. Nós, religiosos, como todos os discípulos do Senhor, respondemos ao seu apelo, ao seu chamamento, à sua convocação para sermos seus íntimos colaboradores, para fazermos uma profunda experiência de entrega irrestrita a Deus e aos irmãos. Foi do Cristo ressuscitado que chegou até o fundo do coração o apelo para seu seguimento. Tentamos ler os sinais desse chamamento em nossa biografia pessoal. Temos a certeza da vocação. No meio de todas as tempestades temos plena consciência desse chamamento. A religiosa idosa que cuida do refeitório das irmãs, que limpa o corredor, que salmodia na capela, que aceita os achaques da velhice, que reza toda casta, toda pobre, toda obediente é uma bênção para a Igreja e o mundo. Na vida consagrada, o que conta são as pessoas e não, em primeiro lugar, obras e prédios.

2. Vivemos, de verdade, um tempo incômodo de perplexidade e  de insegurança. Por vezes, fazemos mesmo a experiência de uma pobreza total, de uma incapacidade de encontrar soluções para dar passos firmes na direção do amanhã.  Há momentos em que não conseguimos enxergar luminosidade no horizonte. Algumas de nossas congregações  estão para fechar as portas. Muitas delas têm um alto número de religiosas e religiosos acamados (às dezenas) e que precisam de atenções e cuidados dispendiosíssimos dia e noite. Esses doentes e idosos não podem apenas ser entregues a casas bem equipadas com aparelhos e enfermeiros. Eles são o grande patrimônio das Ordens e Congregações. Quem os sucederá?  Todos os que refletem sobre as transformações da vida consagrada pedem que não alimentemos uma tal angústia.

3. Estamos convencidos de que quem mostra o caminho é o Espírito. Ele quer que aceitemos entrar no seu movimento. Não se trata de fazer por fazer, mas sentir, de fato, para onde o Espírito sopra. “A recuperação da dimensão espiritual da Igreja consiste não somente em promover cursos de espiritualidade, mas levar a sério o papel criador do Espírito em cada um dos batizados. Quando pessoas mais críticas e criativas são ignoradas ou caladas na vida real da Igreja, comete-se um pecado contra o Espírito Santo. Se os cristãos quiserem dar resposta à sede de espiritualidade que o mundo tem teremos, antes de tudo, que escutar o Espírito que fala pelas pessoas” (Alberto de Mingo, C.SS.R, in Vida Nueva  2414).  Muitos rapazes e moças, homens e mulheres maduros com muito carisma, não são aproveitados nas metas que o Espírito sugere.

4. Não é possível imaginar qualquer renovação da vida cristã e consagrada sem que religiosos e cristãos façam constantemente profundas e repetidas experiências do Senhor. Não se trata de um mero recitar de salmos mais ou menos mecânica e rotineiramente, mas de habitar o  próprio interior, deixar-se impregnar do som da voz de Deus e acolhê-lo num coração modesto e humilde. Não há outra saída. Os consagrados precisam rever sua vida de intimidade com o Senhor. O ponto mais importante da vida de uma casa de consagrados é a vivência e a celebração comunitária da Eucaristia. Não se pode fazer economia desse aspecto. Todos os esquemas de redesenhamento supõem homens e mulheres profundamente de Deus.  Nossas paróquias ou santuários serão espaços de formação de leigos com profundíssima vida de oração.

5. Os  membros da vida consagrada vivem um tempo de extrema pobreza: poucas vocações, religiosos idosos e doentes,  tentativas nem sempre bem-sucedidas de redimensionar e redesenhar o Instituto. Pode ser que  nessa extrema pobreza os religiosos estejam abrindo caminhos novos: poucos religiosos, casas simples, vida fraterna e missionária, vontade de descobrir o novo.  Nada de desânimo:  “ ‘Levantai os olhos e olhai os campos já brancos, prontos para a colheita’ (Jo 4,35). Somos convidados a levantar nossos olhos, a ter o mesmo olhar de Jesus e ver o mundo bom que já tem seus frutos. ‘O essencial é invisível aos olhos’, diz a raposa ao Pequeno Príncipe.  A “contração” na vida consagrada – e  na Igreja – nos obriga a concentrar no essencial, cuidar de não cair vítima da urgência ou da síndrome de salvador ou viver num  mal-estar que não acaba. O tesouro precioso das Congregações neste momento, ao meu ver,  não são as obras mas as pessoas.  As pessoas, os consagrados haverão de estar no coração da vida, com as pessoas que encontram. Não se pode viver a vida consagrada à parte, com o próprio carisma e atividades próprias. Será fundamental estar no mundo, disposto a perder a ideia de desfraldar a bandeira do próprio carisma. Não ocupamos uma posição assimétrica com o mundo: vivemos da reciprocidade. É o estilo da encarnação, é a identidade de nossa vida”  (Rosina Barbari,  Un futuro aperto. Vita ‘consecrata’, santità, mondo, La Rivista del Clero Italiano  12/2011, p. 869).

6. Sempre de novo será preciso beber das águas límpidas dos fundadores. Para viver em comunidade, numa dinâmica de fundação, de refundação, é preciso aprender a caminhar juntos  assumindo o risco de um amor verdadeiro, onde cada um é acolhido pelo que é, não pelo que pode fazer ou se pode tirar dele, não pelo que ele quereria ser. No caminho comunitário, o povo do êxodo, é capaz de atravessar desertos de nossos tempos para se dirigir com fé e confiança à terra nova da promessa. Falando de comunidade não se pode esquecer da solidão e do silêncio. Longe de ser fuga ou isolamento, a solidão  faz com que cada um aceite ser diferente dos outros. “Na solidão perdemos a ilusão de ser tudo para os outros e ali se mede melhor quanto é necessário despojar-se da necessidade de consumir ou de ser consumido por eles. Caminho do desejo, do amor, a solidão é uma prova pela qual devem passar, em diferentes níveis, os amigos, os esposos e os que vivem em comunidades” ( cf. Une  manière de vivre. Les religieux aujourd’hui, Philippe Lécrivain, Lessius, Bruxelles, 2009, p. 168). Quando se fala em comunidade, não se pode esquecer o silêncio:  “Na vida comum, convém aprender a acolher o sempre estranho que é o outro e não reduzi-lo ao que já é conhecido. Para tanto, é preciso aprender a se calar e aceitar serem questionadas algumas certezas”.

7. Nossas casas serão simples, nosso vestir modesto, nosso coração aberto, nossa criatividade sem limites, nosso interior sempre sedento de verdadeiros encontros, nossa vida como uma vela acesa que se consome.  Transpiraremos serenidade e alegria  e não haveremos de destilar pessimismo.

8. Nossa missão no mundo?  Estar presente onde pudermos. Com modéstia, mas com transparência. Marie-Étienne Bély, em instigante texto publicado em Esprit et  Vie, oct. 2001,  disserta sobre o mundo a ser evangelizado. Diante da lógica  da engrenagem da força: “Todos sabemos, ao menos depois de Gandhi, que a prática da não-violência nas relações humanas supõe inteligência e imaginação, infinita paciência e respeito pelo outro. Este conjunto de  atitudes engendra  uma ética do olhar, por exemplo, não fechar os olhos diante das múltiplas  facetas do ser humano: horrores para serem denunciados, realçar o que há de bom, sem exagerar com sofreguidão tanto no positivo quanto no negativo;  uma ética da palavra (falar  do outro em sua ausência como se ele estivesse presente) o que faz secar a fonte da maledicência;  uma ética do ouvido (capacidade de tudo ouvir com discrição), em outras palavras, domínio sobre si mesmo que saiba integrar as forças vivas da pessoa do conjunto e nunca desesperar”.

9. Diante da lógica do  dinheiro  responder pela gratuidade e a contemplação:  “Num mundo  marcado pelo aleatório, o arbitrário, o vago, a multiplicidade de escolhas, a tarefa que cabe aos cristãos é a educação para o querer, orientar para finalidades que não sejam apenas de hoje, imediatas, aprender a vencer-se a si mesmo, sem competição nem rivalidade”. Uma vida que não se erga sobre oscilações das  bolsas”. Os franciscanos são homens e mulheres da desapropriação, do êxtase diante do Deus rico que nos cumula de bens, pessoas que aprendem assim a dar a vida pelos outros.

10. Dois grandes campos de atividade se desenham diante do horizonte dos franciscanos, religiosos ou leigos:  um sério e profundo trabalho de educação do ser  humano todo desconjuntado, desarrumado, perdido, asfixiado, dopado, tonto por tantos ruídos e um empenho seríssimo de  formação do cristão. Não se trata apenas de uma catequese meio up to date. Nossas casas serão centros de formação de cristã, de catequese em todos os níveis e em todos os sentidos.  Esse trabalho de educação à fé haverá de ser feito pela  família. Pelos corredores de nossos locais de atividade, de nossas paróquias haverão de circular casais e famílias.

11. Estar à escuta do mundo contemporâneo  significa detectar as grandes interrogações dos homem moderno. Qual o sentido da vida? Como viver profundamente o amor? Como ajudar as novas gerações a se aprumarem na vida? Como alimentar no fundo do coração a saudade de Deus? Como reagir a um mundo de aparência, de salve-se-quem-puder, de individualismo?  Os religiosos darão o testemunho de viverem na paz e na alegria em suas fraternidades. Alguém escreveu que a amizade fundada na verdade, a vida fraterna, constituem verdadeiros laboratórios de educação para a autonomia e para a liberdade pessoal.  As pessoas não podem continuar a existir despersonalizadas, como se fossem joguetes de uma sociedade imoral que não respeita seu mistério. Os religiosos e os cristãos serão profetas,  fermento e testemunhas para o serviço da palavra e para fazer com que as pessoas reencontrem o caminho do coração. Tudo com muita simplicidade, sem alarido, sem confusão, sempre numa postura de pobreza e de despojamento.

Afinal de contas, para onde o Espírito está nos impulsionando?

III. CRÔNICA

A mulher toda vestida de tristeza…

 

Há tragédias que acontecem perto ou longe  que calam profundamente em nós: desastres automobilísticos, enchentes, desbarrancamentos, pessoas sequestradas e mortas cujos corpos nunca foram encontrados. Muitas vezes vem à minha mente esses terríveis desastres aéreos: o avião cai no fundo do oceano, ou, no impacto com a pista de um aeroporto, ele se despedaça e os corpos carbonizados nem podem ser reconhecidos. Neste ano de 2012, houve uma catástrofe no Rio de Janeiro. Prédios que desmoronaram, pessoas que foram soterradas, pedaços humanos que se confundiram com pedaços tijolos, areia, restos de concreto… Montes de entulho foram cuidadosamente revirados para ver se ali existiam ainda restos humanos. Tudo isso se deu junto ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro, perto da Cinelândia, à rua Treze de Maio.

Em algumas tardes de domingo, quando o centro do Rio costuma ficar deserto, a mãe que havia perdido um filho, cujo corpo não foi encontrado, vai ao local do desastre. Vive pensando no filho. Esse menino que era seu filho desapareceu e fez com que ela, interiormente, morresse antes da hora. Ficou sem o filho e sem um local para chorar sua dor doída, sem uma sepultura para colocar um botão de rosas. Numa tarde chuvosa ela se dirige ao local. Veste uma capa. Leva uma rosa vermelha. Senta-se num degrau de um prédio, protegida pela marquise. Fecha os olhos.  Não sei se reza, não sei se chora, não sei se se aquieta.  A área dos desmoronamentos está cercada de tapumes. Não se pode ver  nada dentro. Mas ali estava o seu filho na hora do terrível desabamento. Ela pensa, pensa e não para de pensar. Está vestida com toda simplicidade: uma blusa branca que ganhou do filho, uma calça jeans e a capa de chuva. Uma mulher ainda nova, com pouco mais de cinquenta anos…  Tira da bolsa um retrato do filho. Pensa no filho, na alegria que teve em ter sido mãe, mãe desse moço. Lembra-se do momento em que o viu pela primeira vez, quando deu-lhe o peito ainda na maternidade. Recorda-se dos primeiros passos do garoto, nas coisas tão simples e tão ingênuas que ele dizia quando aprendeu a falar… Lembra-se do jeitinho como ela rezava fazendo o sinal da cruz com a mão esquerda. Tem lembranças de sua Primeira Comunhão… dos anos de faculdade… Seu filho ficara um rapaz muito bonito, parecido, muito parecido com o pai…  Estava fazendo cursinho, naquele prédio, em vista de um concurso para uma dessas estatais. Estavam ele e dois rapazes. E agora nada… absolutamente nada. Se ao menos a mãe pudesse  ter certeza de onde encontrar o corpo do moço que era seu filho…

E ela, serenamente, começou a caminhar de um lado para o outro… Pensava no filho. Dizia para Deus que seu peito estava para estourar. Dizia para Deus que era demais o seu sofrimento. Sentou-se novamente… Abriu um livrinho de orações e se deteve no salmo De profundis…. Rezava e enxugava uma lágrima. Depois colocou a rosa no chão, diante dos tapumes. Inclinou-se, beijou o chão. Havia um guarda circulando no pedaço. Ele acompanhou com o olhar atento tudo o que a mulher ia fazendo… Teve a tentação de chegar perto e conversar com ela… mas preferiu ficar meio afastado, protegendo-a à distância, sofrendo a dor que ela sofria. Quando ela ia deixando o lugar  aproximou-se da mulher, deu-lhe um abraço apertado e fez o sinal de cruz em sua fronte. Tentou dizer alguma coisa carinhosa, mas começou a chorar…

Depois, a mulher tomou o ônibus 127, na Cinelândia, rumo a Copacabana.  Chegando à casa fez um café, esquentou o leite, tomou uma xícara de café com leite com biscoitos de maisena.  Tentou ler, mas a dor do coração era forte, muito forte… Apagou a luz… E ficou na penumbra sustentada pela força de Deus que não abandona os seus… Antes de dormir ela dizia: “Creio na vida eterna, Senhor. Aumenta a minha fé!”.

IV. E A FAMÍLIA, COMO VAI

Quando se cria uma família? (II)

 

Em nossa edição anterior começamos a refletir sobre o tema da criação de uma família.  Apoiados no livro das Equipes de Nossa Senhora,  Ser família hoje na Igreja e no mundo continuamos a aprofundar o assunto.

 

Famílias… Casa… Lar… Encontros… Memórias e lembranças… A sala de comer, o quarto dos pais, a varanda, as cortinas, o balanço, os pés de goiaba e de laranja lima, as refeições, as visitas, os filhos que nascem e os avós que partem,  as roupas para dias de festa e  as coisas de todos os dias…

Família e doação

Família é lugar de entendimento, de bem-querer, de dom. Nossa cultura é egoísta e individualista. As pessoas, aos poucos, foram entrando numa cultura narcisista, obsessivamente individualista. As crianças pensam em suas coisas, seus passeios, seus interesses, seu lucro. Querem sempre receber a troca de um gesto feito pelo outros. As pessoas perderam o senso da gratuidade. Nada se faz de graça. A pergunta é esta: Quanto eu levo nisto? Passamos o nosso tempo esperando tudo dos outros e acabamos decepcionados. Estamos sempre  presos a nós mesmos. Precisamos aprender a fazer o êxodo de nós mesmos. “É assim que em família aprendemos a ter relações de amor.  Não são relações contabilizadas. Chego até aqui, para que você chegue até lá. São relações de gratuidade e de oferta”. Ninguém é empregado de ninguém. Dentro de suas possibilidades todos cooperam para que as coisas funcionem harmonicamente em casa:  limpeza, cuidado com as plantas, atenções para com membros da família doentes e envelhecidos.

A vida tem necessidade de espaço e de tempo

A casa não existe apenas para proteger da chuva, do vento, do frio, do sol. A casa é lar, lugar de calor, lugar quente e acolhedor. Não é hotel, nem pensão. É lugar de se estar… Nem sempre estamos em casa. Há o trabalho profissional dos pais e dos filhos mais velhos, há o tempo do estudo. Por vezes, as pessoas precisam de dois empregos para sobreviverem. Pode acontecer e acontece muitas vezes que os filhos sejam obrigados a permanecer em casa boa parte do tempo sem a presença da mãe. Se queremos uma família será preciso o tempo de estar em torno à mesa, tempo para uma oração em comum, tempo para comemorar os aniversários, tempo para  ficar perto de alguém que está doente ou passando por um momento psicológico delicado.

Necessário se faz procurar um equilíbrio entre trabalho profissional e vida de família. O trabalho pode ser fonte de realização, mas também pode ser fuga, evasão. Não podemos dizer que nos amamos como marido e mulher, como pais e filhos quando ninguém tem tempo para ninguém.

A vida existe se criarmos felicidade

“Criar a felicidade é dar a cada membro da família o sentimento profundo, a convicção de ser amado por si mesmo. Um tal desenvolvimento resulta do conhecimento e da acolhida do que somos, do que  pensamos, do que dizemos e é consequência também da certeza de reconciliação. O que faz com que um filho se sinta  feliz de voltar para casa em vez de retardar o mais possível a sua volta? E a mesma coisa com o casal? É saber que lá é esperado, lá tem um lugar e alguém contente em reencontrá-lo, de falar com ele”.

O ambiente familiar que ajuda o crescimento é aquele em que as pessoas não se sentem julgadas o tempo todo.  Quando em família há sempre um  clima de julgamento,  de cobrança, de condenação as pessoas não se sentirão acolhidas. A “correção da rota” precisa ser feita. Não pode ser postergada, mas será feita sempre  no pano de fundo da confiança e da paciência vigilante.

Todos nós  temos sonhos, vivemos conflitos, trazemos traumas que herdamos de nossa infância e da família de origem.  Há pessoas que tiveram uma juventude e um começo de vida madura  marcados pelo negativo e ruminam sentimento de culpa.  Ora, a família  é um espaço de terapia de nossas doenças, de cura das feridas, de fortalecimento de nosso interior.  “A felicidade consiste em assumir o que é preciso assumir, em libertar-nos do que pode nos causar mal, em curar mutuamente nossas feridas, em nutrir-nos do calor de nossa comunidade familiar, de nossa comunhão, para depois nos dispersarmos e construirmos o mundo”.

Criamos uma família que busca a felicidade na medida em que nos dispomos a acolher o diferente, em perdoar os momentos de explosão intempestiva, em ajudar o outro a reencontrar o norte da vida depois de loucuras e desvarios.

Questões:

●  Quais as melhores lembranças de nossa infância?
●  O que haveremos de nos lembra agora, no atual momento da vida da família?
●  Nem sempre pais e filhos  podem reunir-se. O que significa uma presença de qualidade dos pais na vida dos filhos e  vice-versa?

V. UM CERTO FRANCISCO DE ASSIS

“Nossa Irmã Morte”

 

Francisco se deita nu na terra nua

 

Novembro nos faz lembrar os irmãos e irmãs, parentes e amigos, que se foram, todos esses que ocuparam um lugar importante em nossa viagem através do tempo e largaram suas mãos de nossas mãos. Nem sempre conseguimos  encarar com serenidade a chegada desse final inevitável para todos, esse fantasma da morte. Temos uma ânsia incontrolada de vida e, de repente, vemos a vida interrompida. Por vezes é um irmão, um filho que sofre com a luta contra a morte. Todos nós temos que “enfrentar” o mistério da morte.

Francisco de Assis experimentou a alegria de viver, júbilo de percorrer os campos e prados da doce Assis.  Sempre teve profunda alegria de conviver com seus irmãos e com as irmãs que Deus lhe havia dado.

Sua morte torna-se uma experiência de comunidade. Assis, a cidade, quer que seu grande Irmão morra dentro de seus muros, protegido e guardado no palácio episcopal.  Teria uma morte controlada.

Francisco queria ter uma morte “pública”. As coisas se passam diferentemente em nossos tempos.  Hoje, as pessoas morrem “escondidamente”  em clínicas, ou em casa, ou até mesmo sem ninguém nas unidades de tratamento intensivo. Em muitos lugares não há mais a proximidade e a presença de familiares. As pessoas morrem assistidas por enfermeiros e cuidadores. A vida moderna não tem jeito de abordar a morte. Como o homem se sente incapaz de prolongar a vida prefere distanciar-se do fato. Há pessoas que não querem assistir a morte de ninguém nem ver o falecido. Basta um caixão e uma coroa de flores…

A morte do Poverello será um fato inesquecível para todos os que ali estavam presentes.  Há todo um cerimonial de morrer que respira esperança. Anteriormente, em seu Cântico das Criaturas, Francisco havia dado à morte o delicado nome de Irmã, Irmã Morte… Porque ela nos leva à terra dos vivos.

O Pai Francisco não quer morrer no isolamento do palácio episcopal. Quer passar os últimos momentos de sua vida em sua amada Porciúncula. Abençoa sua cidade. Envia uma mensagem de consolação às Irmãs de São Damião. Faz com que venha ter com ele sua amiga Jacoba de Settesoli, degusta ainda uma vez o doce de amêndoas que tanto apreciava. Quer ainda ouvir uma vez o Cântico do Irmão Sol. Fala de seus sentimentos e deixa que os frades exprimam o que se passa em seu interior.

Quando percebe que está chegando a sua hora, celebra com seus íntimos mais íntimos uma refeição imponente antes de  esperar nu na terra nua a “Irmã Morte”. O Poverello vive sua morte numa celebração pascal. Esse italiano da Úmbria cria um modo novo de morrer…

Francisco se deu conta que os irmãos estavam tristes. Pediu que lhe trouxessem um pão, abençoou e deu um pedacinho a cada um. Pediu também que lhe fosse trazido o códice dos evangelhos e que fosse lida a passagem que começa:  Antes da festa da Páscoa… Queria efetivamente recordar a Páscoa de Jesus e associar sua passagem com essa passagem… Toda a sua vida tinha transcorrido de passagem em passagem… E chegou a hora… Tendo sido realizado para com ele todos os mistérios de Cristo… Ele voou de maneira feliz para Deus.

Francisco não morre sozinho. Faz-se acompanhar dos seus íntimos mais íntimos. Há uma dor compartilhada e uma esperança vivenciada. A morte passa a ser um sinal de esperança para quem morre e para quem fica. Essa cultura hodierna de fazer a pessoa morrer sozinha, ou longe de seus entes queridos, na frieza de uma unidade de terapia intensiva priva ao que morre e aos que ficam dessa bela experiência de uma comunidade de fé.

Não posso me privar da alegria de  transcrever umas poucas linhas de  Fernando Felix Lopes  no seu  O Poverello. S. Francisco de Assis, com seu estilo todo português: “Daquele corpo em destroços, ali estendidos no chão, cresce e sobe a apagar-se na distância das Alturas, a melodia do salmo. E, subindo a voz, como se fora de um homem renascido na justiça original, voz de criança, argêntea e bela, abre nas trevas da noite esteira de tanta luz que arrasta consigo um bando de cotovias entontecidas por aquela madrugada nova”  (p. 493).

Assim morreu esse Francisco de Assis exalando um perfume de esperança…