Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Natal 2019

Natal: um Deus de carne

NOTA DO AUTOR

Eis um número diferente de nossa Revista Eletrônica. Desta vez, não vamos tirar tesouros que se acumularam no baú da vida. Apresentamos a todos uma belíssima e atual meditação sobre o Natal escrita por Ermes Ronchi, religioso, servo de Maria, inspirado escritor das coisas de Deus. Foi publicada há algum tempo pela revista “Forma Sororum”, da Irmãs Clarissas da Itália. A meditação destas inspiradas páginas sirvam de preparação para mais um Natal de nossas vidas.

Frei Almir Ribeiro Guimaraes, OFM

freialmir@gmail.com

No evangelho de Lucas apenas sete versículos falam do nascimento do Menino. A sobriedade, a extrema concisão destas poucas linhas respeitam a escolha de Deus: ele se torna homem, mesmo um menino, longe da sede do poder, no silêncio, entre os pobres, com a humilde liturgia de cada filho de homem que nasce e passa a depender dos outros.

O mesmo Deus que, no começo, havia feito o homem do pó da terra, se faz pó deste solo. O oleiro se torna argila de um minúsculo jarro, frágil e belíssimo.

Como acontece comigo de chorar, também ele aprenderá a chorar.

Como eu devo morrer, também ele conhecerá a morte.

No Natal, a Palavra é um Menino que não sabe falar. O Eterno é um recém-nascido com poucos momentos de vida. Um pequenino que seguramente não inspira medo: confia, só pode viver se alguém o amar e dele cuidar. Como todo e qualquer recém-nascido. Jesus viverá somente se for amado. Deus, mendigo de amor.

Prodígio ainda maior: Deus de carne. Palavra revolucionária: o impensável de Deus, a vertigem da história, a partir do qual se dividem os anos, antes e depois dele. Deus de carne.

A grande roda do mundo tinha sempre girado no mesmo sentido: do baixo para o alto, do pequeno para o grande, do fraco para o forte. Quando Jesus nasce, quando o Filho de Deus é gerado por uma mulher, por um momento, o movimento da história se interrompe e passa a se fazer no sentido oposto: o forte se torna servo de fraco, o eterno caminha por entre as idades do homem, o infinito cabe no fragmento.

No Natal tem fim a eterna viagem de Deus à procura do homem e começa, para o homem, a maior de todas as aventuras: tornar-se Verbo e Filho de Deus. “Se Cristo tivesse nascido mil vezes em Belém, sem nunca nascer em ti, teria então nascido em vão (A. Silesius). Destino de cada criatura é tornar-se sílaba de Deus, carne empapada do Céu.

Deus se fez homem para que o homem pudesse se fazer Deus. Nunca teríamos podido desejar maior aventura. Seu nascimento é, na verdade, êxtase da história, um novo marco do tempo em torno do qual giram séculos e dias.

O recenseamento

Lucas nos apresenta os fatos em seus detalhes e no contexto da história do mundo. O primeiro dado histórico que situa o nascimento de Jesus é um censo. Jesus nasce em Belém porque a grande máquina imperial pretende ter o controle de todos os habitantes, provavelmente para atualizar o cadastro das arrecadações. Há algo de ameaçador quando se dá um nascimento: tua vida serve para que eu alimente o caixa de um Estado ao tirar Maria, José e o Menino do anonimato.

Na profunda maldade desse mecanismo, quando o homem é reduzido a número e quantidade, precisamente nesse momento, dá-se o nascimento do homem novo. Quando o homem conta apenas como um número, quando sua dignidade é reduzida a quantidade, a história vira de pernas para o ar. A pressão das trevas na história como que força Deus a revelar a luz.

Enquanto Roma decide a sorte do mundo, enquanto o Império mantém a paz com a espada das legiões, nesse mecanismo perfeitamente azeitado cai um grão de areia, nasce uma criança capaz de mudar a direção da história.
A nova capital do mundo é Belém. Deus parece brincar com a história dos homens. Trata-se de sua misteriosa e nunca revogada escolha: a de fazer história com quem não tem história, de escolher o que no mundo é frágil para confundir o que no mundo é forte.

Faixas de pano e a manjedoura

Maria “deu à luz o seu filho primogênito, envolvendo-o em panos e o deitou numa manjedoura” (Lc 2,7). Maria teve o parto num lugar aleatório, reservado para os animais, não aquele que se poderia ter.

Sobre esse filho do homem que nasce se volta a ternura da mãe. Ele é envolvido não somente de faixas de pano, mas sobretudo de amor. Esse “enfaixamento” de Jesus logo após seu nascimento aponta para outro “enfaixamento” lembrado por Lucas (cf. Lc 23,53), o envolvimento de seu corpo descido da cruz, preparado para ser levado ao sepulcro. O que de imediato está a indicar seu destino de solidariedade total com toda a carne, do berço ao sepulcro.

As faixas constituem ainda sinal dos cuidados amorosos de Maria e de José que cumulam o Menino com o mais alto dom da humanidade: o duplo afeto materno e paterno. Sua mãe o alimentará com leite, mimos e sonhos, seu pai o nutrirá com trabalho e proteção. O pequeno Jesus poderá sobreviver na terra somente porque pessoas cuidam dele. Será feliz na terra porque amado. Deus vive pelo nosso amor. Cabe, pois, aos homens cuidar de Jesus. Jesus nos ensinará a fazê-lo na primeira parte do Pai nosso quando pede ao homem que se interesse pela causa de Deus, de seu nome, de seu reino, de sua vontade.

A manjedoura que, na emergência a mãe tem como berço, é o lugar do alimento. Não alimento para os homens, mas para os animais. Manjedoura, pequeno artefato que, por assim dizer, reúne nela todo o criado: a erva dos campos, os animais, a mão do homem para tornar-se naquela noite o sinal de uma pequena, silenciosa aliança com o que vive debaixo do sol.

Na manjedoura (em latim praesepium) se entrelaçam uma nota de exclusão e outra de comunhão, um sinal de aliança com a totalidade do cosmos e a marginalidade que será sempre uma característica de Jesus. Nasce ali aquele que em sua vida não terá lugar para repousar a cabeça, mais pobre que as raposas e os pássaros que têm tocas e ninhos (cf. Lc 9,58). Até mesmo sua sepultura lhe será dada como empréstimo (cf. Mt 27,60).

Faixas de pano e manjedoura que, se de um lado constituem o sinal pobre de um Deus enamorado pelo cotidiano, de outro, lado são sinal da antecipação do Evangelho total. Tanto é verdade que há muitas ícones orientais que representam o nascimento do Menino num berço em forma de sarcófago e envolvido em faixas como um defunto.

O mistério do Natal já se abre para o mistério da Páscoa, a madeira da manjedoura já evoca o lenho da cruz, o Menino já é o Cristo total.

Casa do pão

Em Belém, em hebraico, “casa do pão”, nasceu um Menino que um dia haveria de dizer: “Eu sou o pão” (Jo 6,35ss), sou um Deus a ser consumido, para alimentar, para dar vida.

O pão é, ao mesmo tempo, sinal belíssimo e terrível. É triturado no moinho e assado no fogo. É esmagado e arde, faz-nos viver e se anula por nós, alimenta-nos e desaparece. A esse ponto chega a encarnação. O amor não protegeu a Deus. Ao contrário, o expôs. O amor expõe, desarma, coloca Deus em risco, ao risco de ser rejeitado.

Deus, porém, não pode rejeitar o homem. Esta é a força invencível do Natal.

O Verbo se fez pão. Não sei explicar, mas olho o Menino que suga o leite do peito da mãe e digo: o Verbo se fez fome.

Não são os anjos, mas uma moça inexperiente, mas generosa que se ocupa dele: o Verbo se fez necessidade.

Penso nos abraços que Jesus recebeu e depois reservaria para os pequenos e para os amigos; o Verbo se faz carinho.

Penso no pranto de Jesus diante do túmulo de seu amigo Lázaro: o verbo se fez lágrimas.Penso naquele bocadinho de lama que Jesus colocou nos olhos do cego e digo: o Verbo se fez pó, mão e saliva, e olhos novos.

Depois penso na cruz o Verbo se fez cordeiro, carne dentro da qual grita a dor. E como nós que choramos ele também aprenderá a chorar e devemos morrer ele também haverá de conhece a morte.

Aquele que passeia pelo tapete das galáxias se torna um pequenino e tudo recomeça a partir de Belém, de uma manjedoura.

Aquele que separou a luz das trevas, firmamento da terra se deixa pregar numa cruz. Em tão desarmado amor deve existir uma força. Deus se faz presente onde a razão se escandaliza e a lógica se sente presa.

Contemplo o Menino: seus olhos são os olhos de Deus, sua fome é fome de Deus, as mãos que voltam para sua mãe são as mãos de Deus que se estendem para mim.

Se na história de Jesus dois vértices foram a manjedoura e a cruz nossa fé não pode ser a não ser de Deus e não invenção humana. Em Belém não há nenhum engano, nenhum embuste, nenhuma mentira. Garantem-no uma manjedoura e uma cruz.

Um anjo para os que vigiam à noite

Os pastores são como que envoltos numa nuvem de canto: “Paz na terra aos homens que ele ama” (Lc 2, 14). E se dirigem para o local indicado pelos anjos.

É particularmente belo que Lucas tenha mencionado somente esta visita, a de um grupo de pastores com odor de lã de leite. É prazenteiro para todos os pobres, os últimos, os anônimos, os esquecidos. Trata-se de uma boa noticia: a história muda seu rumo.

Deus aposta naqueles em que a história não aposta. Deus entra no mundo no ponto mais baixo, escolhe os últimos da fila.

O trabalho que os pastores faziam era desprezado e considerado impuro. Eles não frequentavam a sinagoga, não observavam o sábado, sempre às voltas com seus rebanhos. Ora, Deus a eles escolhe. Opta pelo caminho da periferia.
Naquela noite o espaço rota da história, por um momento fica bloqueada. Aconteceu um novo “no princípio” Alguma coisa começou a girar no sentido contrário. O sentido da história passou a ter outra direção: Deus voltado para o homem, o grande para o pequeno, o céu para baixo, uma cidade para uma gruta, o templo para um campo de pastores. A história recomeça pelos últimos.

Natal é chave de um mundo que ainda não existe e que desejaríamos que existisse, um julgamento do mundo, um novo ordenamento de todas as coisas.

No Natal não celebramos uma recordação, mas afirmamos profecia.

Natal não é festa sentimental, é a conversão da história.

Deus na humildade: é esta a palavra revolucionária, a palavra apaixonada do natal.

Deus ama o que é pequeno: esta é a força explosiva do Natal que deixa de fixar a atenção no grande, no famoso, no sagrado, mas na carne de uma criança, num canto escuro sem refletores, num pequenino que não tem outra vaidade a não ser de poder dizer-se homem e isso basta.

O tempo da admiração

“Maria conservava todas essas coisas, meditando-as em seu coração” (Lc 2, 19). Maria, mestra de admiração e do estupor, ajuda-nos a salvar nossa capacidade de admiração, de reencantar a vida. “Os conceitos criam ídolos, apenas o estupor pode colher atingir a verdade” (Gregório de Nissa). Amar é também ter a capacidade de admiração. Quem ama é pródigo não em adulação ou mentira, mas em bênçãos, louvores e jubiloso encantamento.

“Conservava e meditava seu coração”: “conservar” é o verbo que recupera o passado e “meditar” é o que salva o presente. Maria guardava para que nada viesse a se perder; meditava, buscava nos mínimos fragmentos dos acontecimentos o fio de ouro que os mantivesse unidos e a assegurar-nos que também em nossas existências há um secreta unidade, Sua descoberta nunca acaba como nunca acabou para Maria.

Somente depois da Páscoa, Maria alcança a compreensão madura do mistério do qual participa. Sua fé cresce, não sem empenho, mas no meio de dificuldades e no exercício da contínua interpretação das poucas palavras e do muito silêncio de Deus.

“Cheia de graça” (Lc 1,28) não significa capacidade de compreender cada coisa e cada palavra, mas indica a energia de que dispõe para o ininterrupto trabalho de meditação e de acolhimento, de expectativa e de confiança. A graça para Maria e para todos os fiéis é o deslumbramento diante da Palavra como a que ardeu no coração dos discípulos de Emaús.

Graça é conservar as coisas, fazer com que não caiam no esquecimento, com que continuem vivas, meditar sobre elas, procurar seu sentido mais profundo. Não era fácil nem óbvio compreender o que está acontecendo, seu aspecto contraditório, a não plausibilidade deste nascimento: a glória de Deus na pequenez desta Criança, o canto dos anjos e a estrebaria, os Magos, a matança dos inocentes em Belém. Ter unidas coisas que nos parecem contraditórias, a gloriosa liturgia do céu e a humildade liturgia dos pastores sem eliminar uma ou outra. Um dia tudo haverá de se esclarecer. É no encontro desse contraditório que reside a plenitude do cristianismo, colocar lado a lado o semblante de Deus com o rosto do homem (“o que fizeste ao menor dos meus irmãos foi a mim que o fizeste”: (Mt 25,40).

Maria conservava acontecimentos e palavras (em grego rhémata). A revelação divina acontece através de eventos e palavras intimamente conexos que se reclamam e se iluminam reciprocamente: as palavras explicam os fatos, os fatos interpretam e realizam as palavras; exegese da palavra e exegese da vida, inseparavelmente.

No coração

Duas vezes Lucas lembra que Maria “guardava” e “meditava” (cf. Lc 2, 19.51). A história de um filho é antes de tudo escrita pelo coração da mãe.

Na Sagrada Escritura o coração é mencionado 913 vezes como algo muito diferente e muito mais profunda do que um mero símbolo de sentimentos e de afetividade: é o lugar da unidade do homem onde se discerne, se compreende, se ama a verdade e se escolhe a vida, onde nascem ações e atos e onde Deus nos seduz. O coração, templo do silêncio, no dizer de Péguy é lugar de incessante renascimento, lugar para onde sempre se volta onde Deus se revela como o “Deus sensível ao coração” (Blaise Pascal). A vida toda é uma peregrinação para o lugar do coração onde o Espírito nos recorda as palavras de Cristo (cf.Jo 14,26).

Maria guarda para que nada venha a se perder, tem sempre acesa a lâmpada da memória, claridade para os passos da fé quando esta pede esforço ao coração.

Conserva com cuidado: para que palavras e eventos não venham a se desvanecer no esquecimento, uma vez que são elementos preciosos e frágeis que precisam de atenção e perseverança.

Meditar: Mulher sábia, rica em lembranças que lê e interpreta o que viveu e ouviu juntamente com o grande silêncio de Deus. Necessário é muito silencio para ouvir o silêncio de Deus.

Em vista de que

Se me fosse perguntado por que Deus se fez homem, diria: para que Deus nasça na alma e a alma nasça em Deus. Por isso foi escrita toda a Escritura e por isso Deus criou o mundo; para que Deus nasça na alma e alma nasça em Deus (Meister Eckhart).

Neste momento é o tempo da meu natal: Cristo nasce para que eu nasça. O nascimento de Jesus quer meu nascimento: que eu nasça diferente e novo, que nasça do Espírito de Deus, que nasça tão pequeno e tão livre que seja de fato incapaz de agredir, de odiar, e ameaçar. Humilde e ingênuo para que possa pensar com o coração.

Meu Deus, meu Deus Menino,
pobre como o amor, pequeno
como um pequeno do homem,
humilde como a palha onde nasceste.
Meu pequeno Deus
que aprendeste a viver nossa própria vida
que suplicas atenção e proteção
que buscas a luz
meu Deus incapaz de defender-te
e de agredir e de fazer o mal,
meu Deus que vives apenas se fores amado
que não sabes fazer outra coisa
senão amar e pedir amor
ensina-me que não há outro destino
senão tornar-me como tu
como carne impregnada do céu,
silaba de Deus,
com Tu que nos apertas para sempre num só abraço
o sofrimento de toda tua criatura
doente de solidão.

O oleiro e a argila

Deus estabelece novo começo em Belém. A eternidade se encaixa no tempo, o todo no fragmento, a realidade de Deus passa a ter o sabor do pão. Um Deus que não se impõe. Um Deus que tem necessidades.

O Criador não plasma mais o homem do pó da terra, do exterior mas se faz ele mesmo poeira plasmada, menino de Belém e carne universal.

Jeremias que aplica a Deus a imagem do oleiro que retoma em suas mãos a argila e não a lança fora se um jarro não sai a contento, mas trabalha de novo (cf. Jr 8, 3-4). Fala de ânforas, mas de jarros de terra, barro, do solo e da terra.

Está escrito: O Verbo se fez carne (Jo 1,14). Não se fez apenas menino, nem aquele Menino, não somente se fez homem, aquele homem, mas se fez carne universal. Assim, o texto grego sugere que os dois termos são próximos, não separados de outras expressões: hó logos sarx, o Verbo carne se fez. Desde então a proximidade do Logos e da carne é absoluta. Há um fragmento do Logos em toda carne, alguma coisa de Deus em cada ser humano. E muita luz em cada vida.

Natal e a certeza de que nossa carne nalguma de suas raízes é santa, que nossa história nalguma de suas páginas é sacra: ninguém pode dizer que aqui termina o homem e começa Deus, porque Criador e criatura se abraçaram. Finito e infinito estão dentro de nós em amálgama prodigiosa em vista da grandiosidade dos projetos e da força na transformação.

A encarnação não terminou; Deus acontece ainda na concreto de meus gestos.

Mora em meus olhos para que saiba olhar com bondade e com profundidade.

Habita em minhas palavras para que tenha luz.

Habita minhas mãos para conceder a paz, para enxugar as lágrimas e pôr fim a injustiças.

A humildade é a palavra revolucionária do Natal. Luz escondida num vaso de barro.

Paulo escreve a Timóteo: vindo ao mundo “Cristo destruiu a morte e fez brilhar a vida” (2Tm 1,10). Belíssima metáfora formulada por Paulo usualmente tão pobre em imagens: Jesus revestiu de esplendor a existência, fez brilhar o futuro, reacendeu a chama das coisas e ensinou belíssimas canções ao nosso coração, colocou fragmentos de estrelas em nosso sangue, palavras fortes e novas correm dentro das artérias d mundo.

Natal e salvação

Grande parte da teologia interpretou a salvação da humanidade como resgate da queda, cancelamento do pecado, remissão do débito, tudo realizado por Cristo no alto da cruz.

Na esteira da comunidade joanina, há outra interpretação não tão amplamente difundida e cujo mais importante representante é Irineu de Lyon que nos fala das palhas de ouro, disseminadas de modo particular na liturgia e afirma: a salvação é no Natal. Vejamos alguns exemplos:

Na missa da vigília do Natal: amanhã será destruído o pecado da terra. Como a luz destrói as trevas, como a primavera espanta o inverno e como o jardim faz desaparecer o terreno sem vida. Amanhã acontecerá, 33 anos antes da primeira Páscoa, numa manjedoura e não no alto de uma cruz, numa criança que nada faz senão chorar e respirar e procurar o seio da mãe. Mesmo em tal singeleza salva. Como se já a encarnação, o ingresso de Jesus na carne tivesse mudado sua composição, a densidade da terra, a direção da história tivesse penetrado no desamor do homem para curá-lo.

Na missa do dia a antífona da comunhão reza: “todos os povos viram a salvação de nosso Deus”. Viram-na noite de Belém e consistia num Menino colocado numa manjedoura, não num sepulcro. Viram a salvação já presente e atuante: Deus chegou até à humanidade, ninguém pode se dizer perdido porque ninguém pode viver de tal forma que fuja ou escape desse abraço.

Ainda na missa do dia de Natal a coleta evoca: “Fazei com que possamos partilhar a vida divina com aquele que conosco partilhou a natureza humana”. Salvação é esse intercâmbio, osmose, circulação de vida que acontece no Natal. O Espírito se faz carne para que a carne possa se fazer espírito.

O estábulo de Belém sou eu, esta minha tenda de argila é a gruta da natividade perene e ininterrupta do Filho de Deus.

Cristo nasce como filho da terra para que eu nasça como filho do céu: “A todos que a receberam (a luz do Verbo) deu o poder – não só a possibilidade, mas o poder: a energia, a força, o dinamismo- de se tornarem filhos de Deus” (Jo 1, 12). É o poder que emana simplesmente da encarnação.

O Verbo se fez carne” (1, 14).Não é dito que o Verbo se fez Jesus de Nazaré, nem mesmo que o Verbo se fez homem, não, muito mais: o Verbo se fez carne, esta carne frágil, impetuosa e tórrida que é a nossa.

O oleiro do Éden que havia plasmado o homem com o pó da terra, se faz argila deste jarro; não somente entra na humanidade em toda carne de todo homem e de toda mulher, como algo que lhe é acrescentado ou um elemento estranho que se lhe é sobreposto, mas que se faz aquela carne. Não somente entra em “mim”, Mas se faz “eu”. Se Deus está em mim, se me compõe em minha parte mais profunda, como minha respiração e meu sonho e tornei-me outro, substancialmente diferente.

“Ó homem, toma consciência daquilo que tu és (…) considera a tua dignidade real: carregas Deus em ti” (Gregório de Nissa). Como parte tua, a parte melhor. Sem Natal nada sou. O específico da humanidade é Deus em nós. O que faz com que o homem seja homem é respiração de Deus nele, encarnação do Verbo no vento do Espírito.

Evento nunca concluído. O Verbo se encarna continuamente, como a luz nas trevas, como o fermento na massa, como pitada de sal que dá sabor a todo o prato, como o amor em todos os amores. E não se distingue mais o fermento do pão.

Ele se faz carne, e o sinto como força de atração para o alto, uma força de gravidade para o céu, que se ergue para o alto.

Encarnação significa salvação, A salvação é Jesus vindo no interior da carne como fermento leve e poderoso de cada existência, como parte de mim e não como algo acrescentado. Cada fiel é então um Cristo incipiente, um Cristo inacabado: “eu não sou/ ainda e nunca/ o Cristo/ mas sou esta/ infinita possibilidade” (D.M. Turoldo).

A salvação é a infinita possibilidade de ser Cristo. Ao humanizar-se de Deus – em Dante – corresponde, em paralelo, o “endeusar-se” do homem.

“Endeusar-se”, belíssima expressão do nosso comum destino que os padres orientais ousaram de designar de divinização do homem, a théosis.

Tudo isso acontece no Natal, precisamente com o abraço de Deus.