Março 2020
- Quaresma: O indispensável e urgente silêncio
- Tentações
- Chegando às coisas essenciais
- Transparências que podem incomodar
- Prece quaresmal
- Resumo
Quaresma: O indispensável e urgente silêncio
♦ Não podemos perder nenhuma oportunidade que a vida nos apresenta para fortalecer nosso homem interior. Somos discípulos do Senhor. Estamos sempre a caminho, sempre com o rosto levantado para o horizonte. “Sois capazes de rejuvenescer o mundo, sim ou não? O Evangelho é sempre jovem. Vós é que estais velhos!” (Georges Bernanos). Nunca o empenho de fidelidade e busca de limpidez foi tão difícil adquirir como em nossos dias. Estamos face ao imprevisível. Nada de neurose, é claro, nada de pessimismo. Mas os ventos sopram violentamente. Termina uma ventania, sopra logo outra. Será preciso fincar os pés em terreno sólido. Sem medo, procurando ler o mapa do caminho. Trata-se, dentro do possível, de detectar um futuro que já anda sendo esboçado nos sinais dos tempos e em nossa irritabilidade com tudo aquilo sem sentido que nos prendeu a um momento de nossa vida e que andou ceifando o melhor de nós mesmos. Lutar, perseverar, auscultando os gritos ou o murmúrio de certos sinais precursores do amanhã. “Oxalá, ouvísseis hoje a voz do Senhor e não endureçais os vossos corações”.
♦ A Quaresma é um tempo favorável. É tempo de dialogar com o Invisível. Tempo de leitura com sabor. Capacidade de ouvir a Palavra. Tempo de concentração para ouvir o que ainda não nos foi dito e que a Vida anda sussurrando. Tempo de cultivar silêncio externo e interno para que a Palavra deite raízes nos que a acolhem. Quem sabe , trata-se ouvir o Senhor pela primeira vez. Nunca é tarde.
♦ Escuta e silêncio caminham juntos. “A dominação soberana da mídia, que dita as ideias e as convicções pré-fabricadas, que suscitam necessidades e estabelecem o primado da ficção sobre a realidade; o uso bobamente difundido do que se denomina “música de fundo” que cria o hábito de ouvir desatento e casual… Por que não reagir a essa dominação que aliena nossas faculdades interiores, e nos tornam cada vez menos capazes de comunicar com os outros e de viver conosco mesmos? Em nossos tempos vivemos mais frequentemente fora de nós mesmos do que em nosso interior. Por que não nos rebelamos contra essa condição de expectadores-ouvintes, forçados a viver conversas “portáteis”, que quebram o silêncio e se impõem com predominância a todos e em todos os lugares, dos trens aos lugares públicos, das salas de reuniões às salas de cursos, dos refúgios das montanas às praias ensolaradas” (Enzo Bianchi).
♦ Leitura, espaço receptivo para a escuta. Hoje se fala muito de leitura orante da Bíblia. “A leitura da Sagrada Escritura é o Verbo de Deus que vemos como num espelho, como em enigma. O amor que produz em nós essa leitura é imagem da processão o Espírito Santo que é amor de Deus. O Pai nos faz o dom da Escritura para que nela aprendamos a conhecer o Filho” (Guigues II, cartuxo).
♦ “A leitura é meditativa, até mesmo a própria meditação, é orante e até mesmo a própria oração; ela é contemplativa senão a própria contemplação. A meditação, a oração, a contemplação não se acrescentam a ela como que sendo ajuntadas, mas estão virtualmente contidas em germe. A leitura se transforma em olhar e amor o que, na verdade, é a contemplação, sendo que esta não necessita ser uma experiência mística” (Dom Guy-Marie Oury, osb).
♦ A modernidade significa o triunfo do barulho. A Quaresma pode começar a nos vacinar contra a pandemia do barulho com o antídoto do silêncio.
Tentações
Tentações, sugestões que nos são feitas para apequenar a vida. Atraentes convites a aproveitar a vida a nosso jeito. Sem outra preocupação. Sem atenção ao grito de plenitude que ecoa em nossos momentos de verdade. Sem atenção aos murmúrios do Senhor por aqueles que perderam a força de viver e clamam à beira dos caminhos da vida.
♦ O tempo da Quaresma sempre foi tido como um tempo de luta espiritual, de combate contra forças que sempre perturbaram e continuam perturbando a implantação do Reino que o Senhor Jesus veio instaurar com suas palavras e sua vida. Jesus, tentado no deserto, resiste aos convites do poder, do prestígio e da autorreferencialidade.
♦ Não somos autônomos. Não existimos porque tenhamos inventado a nós mesmos. Há uma infinidade de indicações de que fomos “inventados” pelo Mistério. Escutaremos sempre a sua voz, seus apelos para permanecer em seu amor. Dependemos do Senhor e caminhamos fraternalmente com companheiros de viagem. Vivemos numa definitiva interdependência. Não há como sair. Eu + tu ou eu e TU.
♦ O diabo havia sugerido que Jesus transformasse pedras em pães. O homem não vive só de pão. Jesus “não fará de seu próprio pão um absoluto. Não colocará Deus a serviço de seu próprio interesse, esquecendo o projeto do Pai. Sempre procurará primeiro o Reino de Deus e sua justiça. Em todo momento escutará a Palavra. Nossas necessidades nunca ficam satisfeitas com o fato de termos assegurado nosso pão material. O ser humano necessita de muito mais. Inclusive, para resgatar da fome e da miséria os que não têm pão, precisamos escutar Deus, nosso Pai, e despertar em nossa consciência a fome de justiça, a compaixão, a solidariedade. Nossa grande tentação hoje é transformar tudo em pão. Reduzir cada vez mais o horizonte de nossa vida à satisfação de nossos desejos, viver obcecados por um bem-estar sempre maior ou fazer do consumismo indiscriminado e sem limites o ideal quase único de nossa vida (José Antonio Pagola)
♦ Não existimos sozinhos. Vivemos em teia de relacionamentos. Há a tentação do “cada um por si e Deus por todos”. Nossa vida, nosso caminho, nossa história, nossos negócios, nossos sucessos e nossos êxitos… cultuar-se a si mesmo num dança Nossas coisas, minhas coisas…o Evangelho nos aponta para caminho de viver com e tomar como nossa a causa e sonhos dourados do coração do outros e do Outro.
♦ Terrível a tentação do poder, do dominar, do deixar de ouvir o murmúrio que vem do coração dos outros que acontece em nossas vidas, na sociedade e na Igreja. O poder é sempre um “aguardente” que Quanto mais se tem, mais se procura. Francisco de Assis compreendeu este fato. Queria que o nome de seus seguidores e dele próprio fosse de irmãos, de frades menores. “E nenhum irmão se chame de prior, mas todos, indistintamente se chamem irmãos menores. E lavem os pés uns dos outros (Regra não bulada 6,3).
♦ Na medida em que vamos eliminando nossas falsas necessidades do ter, do aparecer, do poder e do prestigio tornamo-nos seres leves e profundamente felizes. Chega-se ao essencial, ao que basta, ou seja, ao Senhor e para que mais?
Chegando às coisas essenciais
Nem sempre , em nosso caminhar, conseguimos ver as coisas da vida com clarividência. Misturamos o essencial com ilusões. Quando conseguiremos ver as coisas essenciais?
O tempo da enfermidade e a estação da velhice costumam purificar nosso jeito de viver. Por vezes pode acontecer que tenhamos perdido tempo com aquilo que não tinha valor nem a menor importância. As pessoas se irritam, se revoltam, esbravejam, perdem o apetite e o sono. De que seve tudo isso?
Ao longo da vida vamos acumulando dinheiro e bens, sucesso e vaidades. Não há dúvida. Para viver precisa-se de gente ambiciosa e com garra. Nem sempre, no entanto, conseguimos fazer a seleção daquilo que tem valor na cesta de propostas que a vida nos apresenta do que nos deteriora como gente.
Na medida em que certas enfermidades mais ou menos graves nos visitam, o tempo de chegada ao porto-vida se torna mais curto e aprendemos a fazer a seleção. Vão caindo certas ilusões e se desvela a falsidade de não poucas atitudes e comportamentos e começa a aparecer aquilo que é indispensável para “ajustar” a vida. O que, de fato é importante aos olhos do doente e do idoso, bem idoso? Certamente, o amor e o bem-querer das pessoas, o valor da liberdade, a saúde, a amizade, a paz e a esperança. O enfermo capta com facilidade o que é importante e o que e secundário. Cresce nele uma sabedoria de viver e de buscar o essencial. Pena que seja tão tarde. Poderia ser antes…
A enfermidade grave despoja a pessoas de máscaras e ilusões, e a interpela profundamente. Do mais profundo de seu ser, o enfermos se sente chamado a adotar uma postura diante de sua enfermidade e de seu futuro. Esta interpelação é absolutamente pessoal. Ao enfermo se lhe pede algo que só ele pode fazer, justamente nestas situações-limites, quando o ser humano se sente mais sozinho. Ninguém pode substituir o enfermo. Ele poderá ter perto de si as pessoas mais queridas que o ajudem, mas elas nunca terão condições de agir em seu lugar. É o enfermo que sofre na própria carne, que tem medo e que, talvez, já vislumbre a possibilidade de uma morte iminente. Para ele chegou o momento da verdade.
Inspirado em Pagola: É bom crer em Jesus – Vozes p. 133
Transparências que podem incomodar
Jean Sulivan é o pseudônimo de Joseph Lemarchand que nasceu na França em 1913. Sua formação se deu num seminário em vista do sacerdócio. Foi ordenado presbítero em 1938. Posteriormente abandonou o seu estado eclesiástico e tornou-se crítico, sempre mostrando um profundo amor por Cristo e pela Igreja que ele queria que fosse toda límpida e transparente. Foi literalmente o que os franceses chama de enfant terrible. Sofreu um acidente de carro que o levou a óbito em 1980. Os pensamentos que seguem foram extraídos do livro: Provocação ou a fraqueza de Deus, ed. Herder, São Paulo 1966
Senso de “humour”
A idade adulta começa quando, abandonadas a ilusões da infância, um ouve sua morte que caminha ao mesmo passo que ele e percebe com clareza que está sem futuro. É preciso ter desesperado do tempo para crer realmente no futuro eterno, para tomar altura.
A fé é humour, porque dá distância e altura.
O humour sabe explicar sem desenvolver, não se deixar prender pelo secundário, amar a felicidade sem estreita-la demais. Tomar tudo tragicamente é falta de humour. O cupim torna-se montanha. Uma questão doméstica, questão de Estado. Uma telha cai: a casa desaba. Cem reais perdidos, é a ruína. Doente, vou morrer. E o mundo reboa com a lamentação de pessoas sérias.
O humour distingue a importância relativa das coisas. Nada do que acontece merece ser tomado inteiramente a sério. Tudo é sinal, convite para ver além. O homem mais convicto de sua virtude, carece dela. Só a possuir com exuberância o que não tem consciência dela e confia no outro. Não torneis Deus pesado.
Dois oficiais. Um diz: a situação é grave, mas não desesperada. O outro: é desesperada mas isso não é grave.
Quem se prende às aparências, julga-se realista: é muitas vezes cego. A fé ultrapassa os cenários.
Provocações, p. 28
O profeta é o diário de Deus
O profeta não é alguém que se diverte. Não observa o voo dos pássaros e não lê nas linhas da mão ou na borra do café. Sua missão não consiste em anunciar o futuro, mas em compreender o presente. Porque para compreender um momento do tempo é indispensável a visão do tempo em sua totalidade. Como para entender uma palavra precisa-se da frase, e para um versículo, a Bíblia toda. O profeta, em vez de divertir, dispersando como o prisma, concentra toda a luz difusa num foco incandescente, na atualidade do acontecimento. Tudo quanto acontece é pleno de passado e de futuro. O profeta é o diário de Deus.
Padre
Padre. Sê-lo mais por dentro do que por fora. Criai à vossa medida o vosso sacerdócio, em vez de recebê-lo já pronto e não apresentar ao mundo senão um uniforme, atitudes já feitas, palavras estandardizadas, uma experiência pronta, condensada, falsa. Então não é mais a vós que o mundo vê, mas o esquema do padre pré-fabricado. Podeis gritar – ele cola sobre vossas palavras as mesmas palavras desgastadas que lhe foram repetidas desde a infância e pelo restante da vida afora.
Um bom meio para vós mentirdes é dizer: Sou padre. Eles não verão mais do que a caricatura que trazem em si. Não digais: Sou padre. Que o adivinhem imediatamente e não fiquem com medo, pois que Deus caminha no mundo desarmado.
“Onde estás, Adão?”
O Senhor não esperou os teólogos para se explicar em poucas palavras. Todo o esforço de Deus desde a criação tem sido, por todos os meios, fazer o homem compreender que o amava. Esgotados todos os argumentos, apresenta a maior prova. “Não há maior prova de amor do que dar a vida por aqueles que amamos”. Eis tudo. Depois disso não há mais nada a dizer. Quem quiser que compreenda. Aí está o livro aberto sobre a cruz. Toda infelicidade dos homens vem do amor inimaginável que Deus lhes tem. O único pecado é o da recusa. Só se recusa o que oferecido. “Se eu não tivesse vindo, eles estariam sem pecado. Agora não têm mais desculpa”.
O Cristo na cruz traduz para o homem em uma linguagem universal, em um sinal tão simples como o pão e a água, o amor incompreensível que o consome. Eis por que não há pecado senão na infidelidade. Os moralistas podem esforçar-se por organizar listas e calcular as contas; é um meio ou outro de escapar do amor. É verdade que os caminhos que permitem fugir são numerosos. Não importa o nome que se toma: o pecado é o afastamento. Cristo morreu por correr atrás do homem que o atraiu a uma sociedade que sempre mata a quem a atrapalha.
Em vez de dizer que a Paixão foi a salvação para a humanidade, seria mais exato ver nela o derradeiro apelo: “Adão, onde estás?”
É o grito que escapa por todas as chagas do Crucificado e impede o autêntico cristão de dormir tranquilo.
- 111-112
Prece quaresmal
Quando penso apenas em mim
Senhor,
quando eu estiver com fome, dá-me alguém que tenha necessidade de comer.
Quando eu tiver sede, envia-me alguém que tenha necessidade de água.
Quando estiver com frio, envia-me alguém para aquecer.
Quando for ferido, dá-me alguém para consolar.
Quando minha cruz se tornar pesada, que eu possa ajudar um outro a carregar a sua.
Quando estiver na indigência, leva-me a quem seja pobre.
Quando eu não tiver tempo, dá-me alguém a quem possa ajudar por instantes.
Quando me sentir humilhado, dá-me alguém que eu possa elogiar.
Quando eu estiver sem coragem, dá-me alguém para animar.
Quando eu tiver necessidade da compreensão dos outros, dá-me alguém que tenha necessidade da minha.
Quando eu tiver necessidade que alguém se ocupe de mim, dá-me alguém para cuidar.
Que não fique eu pensando sempre em mim, mas volte meus pensamentos para o outro.
Oração das Irmãs de Santa Teresa de Calcutá
Resumo
TIRANDO DO BAÚ COISAS NOVAS E VELHAS
Inventando a vida da cada dia
Março de 2020
Esperamos, realmente, que as “águas de março fechem o verão”. Chuva, chuva demais, alagamentos, transtornos em quase todo o fevereiro. Chuvaradas e nossa mente agora ainda lembrando da poeira das cinzas. Em suas mãos, amigas e amigos, o número de março de nossa revista que tira coisas velhas e novas do fundo do baú. O que importa mesmo é reinventar a vida e, insistimos, com coragem. O tempo da quaresma é favorável para começar tudo de novo.
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM