Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Março 2017

MARÇO 2017

Nossa Revista Eletrônica de março é dedicada ao tema da Quaresma. Queremos abri-la com um pensamento tirado da Prefácio da Quaresma I:  “Pai santo… vós concedeis aos cristãos esperar com alegria, cada ano, a festa da Páscoa. De coração purificado, entregues à oração e à prática do amor fraterno, preparamo-nos para celebrar os mistérios pascais, que nos deram vida nova e nos tornaram filhas e filhos vossos”.

Frei Almir Ribeiro Guimarães
freialmir@gmail.com

I. PARA COMEÇO DE CONVERSA

Retrato do Cristão

 

Tempo de renovação espiritual. Tempo da Quaresma. Tempo de examinar nosso perfil cristão. Tempo de exame. Tempo de combate e de luta.  Sirva de ponto de partida para nossa caminhada quaresmal este texto de homilia de um autor espiritual do século IV, verdadeira joia tirada do baú da tradição da Igreja. O cristão maduro é guiado pelo Espírito.

Todos os que são considerados dignos de se tornarem filhos de Deus e renascerem do alto pelo Espírito Santo, trazendo em si a Cristo –  que os Ilumina e regenera  –  são guiados de diversos modos pelo Espírito e conduzidos invisivelmente pela graça, tendo no coração a paz espiritual.

Às vezes, desfazem-se em lágrimas e gemidos pela humanidade, pelo gênero humano elevam preces e choram, ardendo de afeto por todos os homens.

Outras vezes, de tal maneira se inflamam pelo Espírito, com tamanho entusiasmo e amor que, se possível fosse, acolheriam em seu coração todos os homens, sem distinção entre bons e maus.

Entretanto, outros, pela humildade de seus espíritos, colocam-se abaixo de todos, julgando-se os mais abjetos e desprezíveis.

Por vezes são guardados pelo Espírito numa alegria inefável.

Ora, eles são como um valente, que, revestido com toda a armadura do rei, desce para o combate e luta contra os fortes inimigos e os vence.  Assim o homem espiritual, munido com as celestes armas do Espírito, ataca os adversários e, no fim da peleja, calca-os aos pés.

Ora, em absoluto silêncio, repousa a alma em paz e sossego, entregue unicamente ao gozo espiritual e a uma paz indizível, no perfeito contentamento.

Por vezes, por certa compreensão e sabedoria inefável e conhecimento secreto do Espírito, é instruído pela graça  sobre coisas que a língua não consegue dizer.

De outras vezes é como qualquer pessoa.

E assim, a graça habita e age de várias maneiras na alma, renovando-a conforme a vontade divina, provando-a de modos diferentes  para torná-la íntegra, irrepreensível e pura  diante do Pai do céu.

Oremos, então, também nós a Deus, oremos no amor e imensa esperança de que ele nos concederá a celeste graça de seu Espírito. A nós também o próprio Espírito nos governe e leve a realizar toda a vontade divina e nos restaure com a riqueza de sua paz a fim de que, conduzindo-nos e fazendo-nos viver sempre mais em sua graça e progresso espiritual, nos tornemos dignos de alcançar a perfeita plenitude de Cristo, segundo disse o Apóstolo: Para que sejais plenificados com toda a plenitude de Cristo.

Liturgia das Horas III, p. 139-140

II. LEITURA DA QUARESMA

Travessia da Quaresma

 

Como os hebreus que deixaram o Egito, hoje, no tempo da Quaresma, nós, discípulos do Senhor, somos convidados a atravessar outros desertos. As semanas que nos separam na Páscoa  constituem oportunidade de renovação da caminhada do Povo eleito.  Assim como o Senhor acompanhou os seus diletos com a Nuvem e a Palavra  no êxodo, da mesma forma,  hoje,  somos guiados nesse tempo favorável, nesse tempo de conversão que é a Quaresma pelas visitas do Senhor.

 

Cinza e pó

Nossa caminhada quaresmal começa muito simplesmente. Caminheiros e peregrinos nos dirigimos ao templo no primeiro dia da Quaresma, na Quarta-feira da poeira, das Cinzas, das coisas insignificantes, exatamente quarta-feira do pó, do nada. Nada de vantagens a serem enumeradas. Nada de glórias a serem decantadas. Entramos humildemente diante do Senhor. Curvamos o corpo. Tomamos a decisão de recomeçar o processo de conversão.  Fizemos pouco, quase nada. Há que retomar tudo de maneira nova. Não somos os donos de nosso destino. Alguém que chamamos de Tu, de Mistério, de Abismo está pedindo que acolhamos seu amor, sua presença, seus projetos. Esse Alguém é o Senhor. Apresentamos nosso coração contrito, única fresta e porta que podemos abrir para que o Senhor tome conta de nós. Quarta-feira das coisas insignificantes.  Não adianta rasgar as vestes,  como fala Joel.  É preciso rasgar o coração. Brado e apelo de conversão. O amargo precisa tornar-se doce e o doce, amargo. Mateus fala de oração, jejum e esmola.

Tentações – No primeiro domingo já são denunciados alguns impasses. Não é abundância de bens que consegue plenificar o homem, torná-lo um ser de plenitude. Nada de confiar em qualquer tipo de posse e de bens. Não é na fascinação por fenômenos estranhos, miraculosos, mirabolantes em margem à vida que se pode encontrar Deus. Jesus se recusa ser o Messias onipotente e opta pela estrada do serviço. Os caminhos do futuro podem ser abertos quando nos libertamos de bens, de poder e toda manifestação de vaidade. O homem não vive somente de pão, mas da audição de toda confidência carinhosa que vem  de Deus.

Transfiguração – No alto do monte  houve uma metamorfose, uma mudança de aspecto. Jesus se transfigura. Aquele humano tão humano que é esconde em si a Luz eterna. Colocado em oração, Jesus percebe-se envolto na luz. Os apóstolos ficam maravilhados. Ouve-se voz do alto: “Este é meu filho amado  no qual eu pus todo o meu agrado.  Escutai-o!” Nunca esquecerão esta cena e terão a experiência gravada no fundo de seus corações.  Discípulos do Senhor  já temos fagulhas de luz em nossa carne mortal.  Um dia haverá de manifestar a glória que existe em nós, no momento apenas no lusco-fusco da fé. Descendo da montanha da manifestação, Jesus retoma o caminho duro que o levará a Jerusalém.  Os apóstolos não deviam dizer nada a respeito do que tinham visto montanha da transfiguração.  Nós, cristãos, somos seres em processo de transfiguração.

A mulher de Samaria – No terceiro domingo da Quaresma encontramo-nos à beira do poço  de Jacó.  Chega uma mulher de Samaria. Ignoramos seu nome. A população daquela região era desprezada pelos judeus.  Para eles, era uma gente cheia de misturas religiosas. Haviam mesmo construído um templo, rival daquele de Jerusalém.  A mulher em questão já estava no sexto marido. Talvez estivesse mesmo naquele período em que as mulheres não podem se aproximar dos homens.  Muitas razões impediam que Jesus conversasse com ela. Uma pecadora, uma samaritana!  Jesus dela se aproxima.  Ele tem uma água escondida que pode renovar a vida da mulher do cântaro.  Mas o que diriam os habitantes se vissem a conversa da mulher com Jesus? Nada retém Jesus, nem o passado nebuloso, nenhum o tabu.  No tempo da Quaresma, no deserto da quaresma Jesus convida a todos a matar a sede com a água que ele dá, que é ele mesmo. Que sedes andam ardendo em nossas gargantas?

O cego de nascença –   No quarto domingo da Quaresma  um cego abre os olhos e passa a enxergar.  Muita reação: as autoridades não aceitam. Monta-se uma operação para investigação. Essa cegueira: quem pecou? Os pais do cego são convocados. Imaginem: Jesus havia feito uma lama com saliva, num dia de sábado… tudo isso causa escândalo.  Nesse domingo os caminhantes da Quaresma que somos nós  sentimos que somos convidados a abrir os olhos e enxergar a vida à  luz do Senhor. Olhos abertos e livres. Ver o que está por detrás das aparências.

O quinto domingo da Quaresma nos leva até o lugar onde haviam colocado o corpo de um homem. Este é domingo da ressurreição de Lázaro.  Há um grito de Jesus: “Lázaro, vem para fora!” “O morto saiu, atado de mãos e pés com os lençóis mortuários e o rosto coberto com um pano”. Jesus novamente: “Desatai-o. Deixai-o caminhar”. Os que estão mortos, secos, sem Deus e que caminham pelas sendas da Quaresma, esses peregrinos que somos nós, fomos arrancados do abismo do não sentido e da morte e elevados à vida.  Estamos às portas da Semana Santa. Normalmente falando, neste quinto domingo, deveríamos estar prontos para viver a atualização Mistério Pascal em nossas vidas na Semana Santa.

III. MEDITAÇÃO

Orações para o Tempo da Quaresma

 

1. Entranhas de misericórdia

Se eu tivesse entranhas de misericórdia…sairia…
sairia de minha casa para encontrar-me com os necessitados;
de minha apatia para ajudar os que sofrem;
de minha ignorância para conhecer os ignorados;
de meus caprichos para conhecer os famintos;
de  minha atitude crítica  para compreender os que falham;
de minha suficiência para estar com os incapazes;
de minhas pressas  para dar meu tempo aos abandonados;
de minha preguiça para ajudar os cansados de gritar;
de minha postura burguesa para compartilhar com os pobres.
Quem dera que eu tivesse entranhas de misericórdia!
(F. Ulíbarri)

2. Nos feridos à beira do caminho

Senhor, nos pobres e marginalizados de sempre,
nos migrantes e desempregados sem horizonte,
nos viciados e alcoólicos sem presente,
nas mulheres maltratadas,
nos anciãos abandonados,
nas crianças  indefesas,
nas pessoas machucadas,
em todos os feridos à beira do caminho,
queremos buscar-te, encontrar-te,
ver-te, descobrir-te, acolher-te, abraçar-te.
(F. Ulíbarri)

IV. LEITURA ESPIRITUAL I

Jejum, Oração e Misericórdia

 

Um dos maiores e mais profundos escritores dos primeiros séculos da vida da Igreja foi  São Pedro Crisólogo (380-450).  O sermão que transcrevemos une  jejum com oração e misericórdia.

Há três coisas, meus irmãos, três coisas que mantêm a fé, dão firmeza à devoção e perseverança à virtude. São elas a oração, o jejum e a misericórdia. O que a oração pede, o jejum alcança e a misericórdia recebe. Oração, misericórdia, jejum: três coisas que são uma só e se vivificam reciprocamente.

O jejum é a alma da oração, e a misericórdia dá vida ao jejum. Ninguém queira separar estas três coisas, pois são inseparáveis. Quem pratica somente uma delas ou não pratica todas simultaneamente, é como se nada fizesse. Por conseguinte, quem ora, também jejue; e quem jejua, pratique a misericórdia. Quem deseja ser atendido nas suas orações, atenda às suplicas de quem lhe pede; pois aquele que não fecha seus ouvidos às súplicas alheias, abre os ouvidos de Deus às suas próprias súplicas.

Quem jejua, pense no sentido do jejum;  seja sensível  à fome dos outros, quem deseja que Deus seja sensível à sua; seja misericordioso quem espera alcançar misericórdia; quem pede compaixão, também se compadeça;  quem quer ser ajudado, ajude os outros.  Muito mal suplica quem nega aos outros aquilo que pede para si.

Homem, sê para ti mesmo a medida da misericórdia; deste modo alcançarás misericórdia como quiseres, quanto quiseres e com a rapidez que quiseres; basta que te compadeças dos outros  com generosidade e  presteza.

(…)

Homem, oferece a Deus a tua alma, oferece a oblação do jejum,  para que seja uma oferenda pura, um sacrifício santo, uma vítima viva  que ao mesmo tempo permanece em ti e é oferecida a Deus.  Quem não dá isso a Deus não tem desculpa, porque todos podem se oferecer a si mesmos.

Mas, para que esta oferta seja aceita por Deus, a misericórdia deve acompanhá-la; o jejum só dá frutos  se for regado pela misericórdia;  pois a aridez da misericórdia  faz secar o jejum.  O que a chuva é para a terra, é a misericórdia para o jejum. Por mais que cultive o coração, purifique o corpo, extirpe os maus costumes e semeie as virtudes, o que jejua não colherá frutos se não abrir as torrentes da misericórdia.

Tu que jejuas, não esqueças que fica em jejum o teu campo, se jejua a tua misericórdia; pelo contrário, a liberalidade da tua misericórdia  encherá de bens os teus celeiros. Portanto, ó homem, para que não venhas a perder por ter guardado para ti, distribui aos outros para que venhas a recolher; dá de ti mesmo, dando aos pobres, porque o que deixares de dar aos outros, também não o possuirás.

Lecionário Monástico  II, p.  273-274

V. LEITURA ESPIRITUAL II

Quaresma, tempo de conversão

 

Converter-se é acolher na fé a iniciativa gratuita, imprevisível de Deus que decidiu em Jesus  visitar-nos em pessoa para nos salvar, ou seja,  fazer-nos entrar numa felicidade sem fim.

Converter-se é mudar a direção da vida , é ter força e fé para deixar de ser o centro absoluto de tudo e alguém autossuficiente.  Converter-se é aceitar, de fato, seguir a Jesus. Converter-se é tornar-se discípulo de Jesus e não mestre de si mesmo.

Converter-se não é, antes de tudo, passar do vício para a virtude, mas antes viver interior e exteriormente uma mudança radical. É tomar a decisão de empreender a aventura da vida com outros e com o Outro. Não querer fazer “suas coisas” a ferro e fogo.  Não consiste numa ginástica espiritual. É, antes de tudo, acolhida da iniciativa de Deus.

Conversão e fé caminham juntas. Por isso a conversão é difícil. Demanda morte a si, Páscoa do eu humano. A conversão é combate à semelhança da luta de Jacó com o anjo.

Converter é aceitar que nossos projetos sejam desarrumados por Alguém. É fazer morrer ideias-feitas que temos a respeito de Deus, morrer às nossas ilusões. Não é o homem que busca a Deus, mas Deus que busca o homem. “Adão, onde estás?”

Assim escreve Michel Hubaut a respeito da fé-conversão de São Francisco de Assis:  “Ao longo de sua vida, Francisco cultivará  uma  fé acesa, vigilante, disponível ao chamado do Senhor e ao seu Espírito.  Ter fé significa liberar  nossas fontes interiores: escutar a Deus, buscar o Senhor, deixar-se amar e modelar por  Deus;  mesmo na noite deixar-se  conduzir pela esperança que teve  seu rosto em Jesus;  despertar-nos de nosso torpor espiritual. Francisco tem esse projeto evangélico. Descobre que  Deus é  dinamismo de amor , que não ameaça nossa liberdade, mas nos estrutura e nos constrói, levando-nos à plena realização”.

Inspirado em Michel Hubaut
Chemins d’intériorité avec saint  François
Éditions Franciscaines, Paris, p. 24-26