Vida Cristã - Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil - OFM

Maio 2019

Apresentação

TIRANDO DO BAÚ COISAS NOVAS E VELHAS

Reinventando a vida da cada dia
Edição de maio de 2019

Amigos, vamos terminando a vivência do tempo da Páscoa, tempo das alegrias, tempo das manifestações do Senhor. Textos fortes aqui estampados podem nos ajudar a viver com galhardia, tirados do baú ou recolhidos na literatura cristã de
nossos dias.
Boa leitura.

Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
freialmir@gmail.com

Aprender o segredo de viver

Aprendi a adaptar-me às necessidades; sei viver modestamente, e sei também como haver-me na abundância. Estou acostumado a toda e qualquer situação; viver saciado e passar fome; ter abundância e sofrer necessidade. Tudo posso naquele
que me conforta. Entretanto, fizeste bem em participardes da minha aflição.
Filipenses 4, 12-14

♦ Uma das mais carinhosas cartas de Paulo foi a que dirigiu aos cristãos de Filipos. Lá no final da epístola ele agradece os auxílios que os Filipeneses lhe propiciaram. “Vi florescer vosso interesse por mim”. As linhas acima transcritas
respiram serenidade e exalam o delicado perfume da gratidão.

♦ Fazemos também nós esta experiência. Há pessoas que se interessam por nós, por nossa pessoa, pela obra de nossas mãos, pelos nossos  sonhos e aspirações, socorrendo-nos nas turbulências de nossa viagem e mostrando interesse por nós. Com tais atitudes aquecemo-nos do frio. De nossa parte há uma questão a ser sempre respondida: Nosso interesse “floresce” pelos outros? Quando não “floresce” para nós perdemos a tranquilidade?

♦ Paulo foi aprendendo o segredo de viver, de viver na abundância, como viver na necessidade. Sofremos quando tudo rareia: comida, afeto, esperança, alento, futuro. Sabemos que a vida tem seus desafios. Comemos menos, aprendemos a viver mais sozinhos. Quando tudo corre tranquilamente as coisas mudam. Temos sempre que pensar: cuidar que a abundância não nos venha entorpecer. Não devemos nos acostumar demais com qualquer tipo de sucesso. O tempo da abundância é a estação da partilha. Deus nos emprestou bens e vida feliz para podermos existir para os outros. Basta-nos a abundância das coisas necessárias.

♦Precisamos aprender a viver com o jeito de Jesus convivendo com ele e como ele vivendo. Um viver com sabedoria.

>> Valorizar o que tem valor: intimidade com o Senhor, persistência em desobstruir o coração de pedras e terra, abrir-se ao Mistério. Seres abertos e não acabados.
>> Ter o cuidado de não deixar o Senhor com frio e com fome nas sarjetas da vida.
>> Sabedoria da fidelidade nas pequenas coisas.
>> Discernir a mentira da verdade.
>> Saber aceitar o contraditório com rosto sereno.
>> Ter um reverente respeito pelo outro.

♦ Há uma frase de Paulo que se tornou para muitos um lema de vida: “Tudo posso naquele que me conforta”. Nada de lamúrias. Há uma misteriosa presença que nos impede de cair no desalento.

♦ Para terminar um pensamento: Seguir Jesus não significa evocar um passado já realmente passado. Trata-se de viver hoje com atmosfera de Jesus e não ao sabor do vento que sopra (Pagola, Lucas p.166).

♦ Sabemos viver na abundância como na necessidade?

Conduzidos à fonte do batismo

O batismo, sinal da paixão de Cristo

Sabemos todos que o Batismo é o sacramento da vida nova. Quase todos fomos batizados com apenas meses de vida e fomos privados de vivenciá-lo no momento em que acontecia. Faz bem ler e meditar nesta página das Catequeses de Jerusalém atribuída a São Cirilo, sec. II. É como viver aquilo que marcou o início de nossa vida em Cristo: um morrer para viver.

Fostes conduzidos à santa fonte do divino Batismo, como o Cristo descido da cruz, foi colocado diante do sepulcro.

A cada um de vós foi perguntado se acreditava no nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Vós professastes a fé da salvação e fostes por três vezes mergulhados na água, e por três vezes dela saístes; deste modo, significastes, em
imagem e símbolo, os três dias da sepultura de Cristo.

Assim como nosso Senhor passou três dias e três noites no seio da terra, também vós, na primeira emersão, imitaste o primeiro dia em que Cristo esteve debaixo da terra; e na imersão, a primeira noite. De fato, como aquele que vive nas
trevas não enxerga nada, pelo contrário, aquele que anda no dia está envolvido em plena luz. Assim também vós na imersão, como que mergulhados na noite, nada vistes; mas na emersão, fostes como que restituídos ao dia. Num mesmo instante, morrestes e nascestes, e aquela água de salvação, tornou-se para vós, ao mesmo tempo, sepulcro e mãe.

Apesar de situar-se em outro contexto, a vós se aplica perfeitamente o que disse Salomão: “Há um tempo para nascer e um tempo para morrer…”. Convosco sucedeu o contrário: houve um tempo para morrer e um tempo para nascer. Num mesmo instante realizaram-se ambas as coisas, com a vossa morte, coincidiu o vosso nascimento.

Liturgia das Horas II, p. 535

Francisco, atravessador de muralhas

Michel Sauquet escreveu um livro assaz interessante sobre São Francisco como “atravessador de muralhas” (Le passe murailles. François d’Assise: un héritage pour penser l’interculturel au XXIe. siècle). Francisco, um homem que inova, que atravessa fronteiras. O homem que prima pelo inesperado.

Francisco de Assis foi designado por alguns autores como atravessador de fronteiras, de paredes, de muralhas. Gwénolé Jeusset fala que o Pobre de Assis foi levado a atravessar três paredes ou mesmo a quebrar três barreiras: muralha sanitária quando encontrou e abraçou o leproso; muralha moral quando dialogou com bandidos e os designou de irmãos; muralha religiosa quando se encontrou com o sultão Al-Malik Al-Kâmil, em Damieta. Esse tipo de comportamento parece corresponder ao que hoje o Papa Francisco pensa quando usa a expressão de “dirigir-se às periferias”. Um jeito de descomplicar a vida com coisas simples.

O que andou acontecendo no encontro de Francisco como o sultão? Estamos em 1219. Já la se vão 800 anos!!! O episódio é muito conhecido. Mostra o risco que correu São Francisco, no contexto de uma cruzada, atravessando o campo de batalha dos inimigos e a linha divisória, desarmado, dirigindo-se ao encontro do sultão em favor de uma trégua. Faz-se acompanhar por um frade chamado Frei Iluminado. Correu o risco de ser enforcado ou degolado pelo sultão e pelos muçulmanos. Por que o homem de Assis teria atravessado os mares? Por que teria abandonado o acampamento dos cruzados?

Francisco não era contrário à iniciativa das cruzadas. Tratava-se de uma decisão da Igreja, instituição à qual queria permanecer firmemente ligado. Segundo André Vauchez, a cruzada não era, como hoje se pode imaginar, uma guerra de religião ou uma espécie de expedição colonialista, mas uma peregrinação armada cuja finalidade era a defesa e reconquista dos Lugares Santos, um novo êxodo de Deus para a Terra Prometida e a cidade santa de Jerusalém onde deveria acontecer a conversão dos infiéis e a reconciliação do gênero humano, com a aproximação do reino de paz do Messias.

Ora, Francisco se dá conta que tal “peregrinação” acontece de maneira escandalosa por seu caráter cruel. É o que ele experimenta com a aproximação de Damieta. Essa crueldade nada tem a ver com o Evangelho nem com seu jeito de viver. Sua preocupação primeiramente é de atingir e corrigir os próprios correligionários antes de se dirigir aos infiéis. Em carta dirigida ao papa em 1220, Tiago de Vitry, bispo de São João de Acre, queixa-se amargamente, segundo Vauchez, que vários membros de sua proximidade, tanto clérigos como leigos, fascinados pela personalidade de Francisco abandonaram a sede Damieta para seguir São Francisco e ingressarem em sua Ordem.

Mesmo aceitando, em tese, o empreendimento da Cruzada, Francisco não podia tolerar a brutalidade dos cruzados e ao tomar a decisão de ir ter com o sultão não o fez com espírito belicoso. Segundo a maioria dos historiadores, sua intenção era converter o sultão e seu povo. Para ouros sua intenção fora a de buscar o martírio. Seja fazer com que o outro abraçasse a sua fé ou ganhar, pelo martírio, a glória do paraíso. Tudo indica que esses dois desejos habitavam o interior de Francisco.

As coisas, porém, aconteceram de outra maneira. O sultão e seus dignatários vão receber os frades durante alguns dias. Houve dificuldades de entendimento devido à língua. O tradutor teria tido dificuldade em fazer sua tarefa. O entusiasmo de Francisco facilitaria as coisas. Francisco impressiona-se com a atenção que lhe é prestada; por sua parte o sultão ficou impressionado com a pobreza e simplicidade do dois frades, vestidos de trajes que nada tinham de militantes. Segundo o relato de São Boaventura o sultão ouvia a Francisco com prazer e queria que sua visita se prolongasse.

O encontro desses dois homens fez com que se criasse uma vontade de diálogo. Os participantes deste encontro questionam as ideias que uns tinham dos outros. O sultão se dá conta que esse personagem vestido tão estranhamente não é cruzado sedento de guerra, mas um homem de Deus. Francisco não encontra no sultão um perseguidor da fé cristã. Este é o nó do episódio. Um encontro que desarmou os espíritos.

Julien Green: “Esta visita aparentemente infrutuosa só deveria ter sucesso mais tarde. Parece evidente que Al-Malik Al-Kamil recebeu de Francisco uma impressão inolvidável e que o próprio Francisco descobriu na pessoa de seu anfitrião uma humanidade nova. A ideia que ele tinha do Islã modificou-se: a fé em seu princípio, a fé em Deus, podia se encontrar em outros pontos além do cristianismo, e essa fé devia ser respeitada. Uma visão tão ampla do problema continha uma força enorme, quase revolucionária. Não se ganha almas a não ser pela doçura e o exemplo. Que sentido tomavam as cruzadas. Ele fez essa pergunta a seu espírito, sua resposta. Dez anos mais tarde, exatemente, conquistado talvez às ideias do Poverello, Al-Malik Al-Kamil devolveu Jerusalém a Frederico II. E, mesmo se havia algum cálculo político de parte a parte, o acordo não tinha custado vidas humanas”.

Vem, Espírito de Amor

Uma belíssima e profunda oração dirigida ao Espírito Santo, da autoria de Karl Ranher, um dos grandes teólogos da segunda metade do século passado. Tempo de transformações. Tempo de invocar o Espírito.

Vem, Espírito do Pai e do Filho.
Vem, Espírito de amor.
Vem, Espírito de infância de paz,
de confiança e de alegria.
Vem, alegria secreta que brilhas
através das lágrimas do mundo.

Vem, vida mais forte que nossas mortes.
Vem, pai dos pobres e advogado dos oprimidos.
Vem, Luz da verdade eterna
e Amor derramado em nossos corações.

Não podemos te obrigar a vir;
por isso mesmo temos confiança.
Nosso coração receia tanto a tua visita
porque és pouco parecido com nosso interior
tão sem delicadeza sempre girando em torno de si mesmo.
Tal garante tua visita apesar de tudo.

Vem, pois, renova e dilata tua visita a nosso interior.
Colocamos em ti nossa confiança.
A ti amamos porque és o Amor.
Em ti temos a Deus por Pai
porque gemes dentro de nós dizendo:
Abba, Pai amado!”

Permanece em nós e não nos abandones
durante o combate nem naquele momento
em que chegaremos ao fim e estaremos inteiramente sós.

Vem, Espírito Santo!

No tempo do inverno da vida

Coisas que passam por nossas cabeças e acontecem no tempo da velhice. Francesc Torralba escreveu um livro oportuno e útil sobre o tema da transparência. Penetra na alma dos que ficam velhos.

A velhice é o período da despedida, o momento de se preparar para deixar o mundo. Justamente por esse motivo o velho retira a máscara, se desinibe, porque não tem nada a perder, nem mesmo a ganhar. Sente a necessidade de dizer o que pensa, de manifestar o que experimenta dentro dele, mesmo que não agrade, mesmo que surpreenda. É a última ocasião que a vida lhe oferece para ser sincero consigo mesmo e com os outros, para praticar a transparência para deixar aos outros uma lembrança verdadeira de quem é.

No transcurso da vida humana, a transparência e a opacidade se alternam dialeticamente. Há períodos de mais revelação e períodos de mais ofuscação, mas os níveis máximos de transparência se dão na infância e na velhice. No início e no final da vida há um ponto de encontro na transparência.

A criança, a primeira figura da transparência, mostra-se assim como é. Desconhece a linguagem da hipocrisia, o baile de máscaras dos adultos. Na velhice diminui a capacidade receptiva dos sentidos, aparecem deficiências orgânicas, declinam a fidelidade e a firmeza da percepção, torna-se mais difícil se acomodar a novas situações e desaparece o impulso de lutar, mas em compensação, se alcança mais sabedoria humana e níveis de transparência.

O velho perde o desejo de obter afeto e simpatia dos outros. Não se preocupa com a impressão que sua própria conduta causará nos outros. Não precisa se comportar bem. Não precisa agradar. Não espera ocupar nenhum cargo. Não espera ganhar nenhuma luta. Distancia-se da vida. Esse retirar-se do mundo, permite ao velho uma melhor compreensão dos outros e o reconhecimento do valor que lhes corresponde.

Francesc Torralba
Quanta transparência podemos digerir?
Vozes, p. 145-146